Ordenações do Reino - Raízes Culturais do Direito Brasileiro



A compreensão do Direito em sua dimensão científico-filosófica na lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, é zetética; ou seja, uma questão aberta. Diferente da dogmática jurídica, que é a disciplina que estuda o Direito enquanto norma, ocupamo-nos nesse trabalho da História no âmbito da historicidade das "Ordenações". A importância em estudar as "Ordenações do Reino" reside no fato de a própria História do Direito implicar numa análise espaço-temporal do fenômeno jurídico enquanto realidade material. Ao analisar as conjunturas e estruturas do direito português a partir do século XV, tornar-se compreensível o processo de codificação do ordenamento jurídico brasileiro desde o Período Colonial, passando pelo Império e pela República. O objetivo do presente texto é analisar sumariamente as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas e indagar quais teriam sido as suas principais influências em nosso o direito.

Ao entrar em contato com os autores que se debruçaram sobre o tema em questão, encontramos uma série de nomes e personagens, datas e locais onde as leis teriam sido promulgadas, suas influências etc. A propósito da inter-relação entre o Direito e a História, daremos ênfase não em dados puros, como datas e nomes de reis e autoridades políticas. O importante é compreender e interpretar de forma crítica, o processo histórico que engendrou as principais estruturas político-sociais de seu tempo. O dado por si só não explica e não esclarece o real. Contudo, é inevitável a citação de alguns elementos para a contextualização e entendimento do assunto.

No século XV já havia em Portugal diversas leis emanadas das culturas da Antiga Roma, dos germanos e a cultura eclesiástica. Mas faltava certa sistematização que possibilitasse a idéia de uma unidade jurídica. Precisava, assim, determinar quais seriam as fronteiras do Direito Canônico e do Direito Romano bem como definir suas relações com os princípios do Direito Natural. Ainda no século XIV, durante o reinado de D. João I (1385-1433), a Corte se queixava do problema. Depois de algum tempo, o corpo legislativo, resultado de uma compilação que se pretendia exaustiva, foi publicada em 1446, recebendo o nome de Ordenações Afonsinas em homenagem ao rei Afonso V.

A compilação das Ordenações Afonsinas continha elementos de Direito Canônico, Direito Germânico e de Direito Romano[1]. Quando o assunto era de ordem temporal e se não envolvesse nenhuma espécie de pecado, prevalecia o Direito Romano. Quando o assunto era de ordem espiritual (relativo ao mundo supra-sensível) prevalecia o Direito Canônico. Em casos de problemas temporais e que não tivesse previsto na legislação, o Direito Canônico era invocado a fim de suprir a lacuna. Quando os dois "direitos" (Romano e Canônico) fossem omissos, recorria-se, em última instância ao rei. [2]

Diz-se que as Ordenações Afonsinas teriam cumprido o papel desejado que, de início, era a sistematização do ordenamento jurídico da Corte Portuguesa. A técnica legislativa usada para a elaboração daquelas, conforme análise de Paula, foi a compilação - que consiste na transcrição na íntegra de fontes anteriores com a declaração dos termos em que esses preceitos eram confirmados, alterados ou afastados. Contudo, a quantidade de leis, distribuídas em cinco volumes, tornava onerosa e lenta a sua reprodução. O original ficou, talvez, na Chancelaria e as primeiras cópias teriam sido enviadas aos Tribunais superiores: Casa da Suplicação e Casa do Cível. Ademais, de acordo as considerações de Pacheco:

"Não podemos considerar um verdadeiro código, na acepção rigorosa da palavra, as Ordenações do Reino. Um código significa a disposição sistemática de um ramo determinado de direito, segundo os princípios científicos que o informaram. Ora, as Ordenações do Reino de D. Afonso IV agrupam em livros ou sectores autônomos as regras aplicáveis, atendendo à sua origem e não aos seus objetivos. Constituem-se nas seguintes partes: as leis provindas dos monarcas ou aprovadas nas cortes, desde Afonso II até àquele tempo; os forais ou diplomas em que se estipulavam as prerrogativas e as obrigações dos concelhos; o direito consuetudinário, com os usos e os costumes tradicionais das terras; o direito canônico, formado da legislação conciliar e pontifica e pelas concordatas; enfim, o direito romano das glosas e Acúrsio e de Bártolo. As Ordenações dispunham a precedência de aplicabilidade na hermenêutica dos seus preceitos, em caso de contradição: primeiro, as leis gerais da nação e os seus usos e costumes; segundo, as leis canônicas em matéria que envolva o pecado; terceiro, as leis romanas; quarto, as glosas de Acúrsio e de Bártolo". (PACHECO, José da Silva apud PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. 2002, p. 145).

Como estava estruturada a Justiça em Portugal na época das Ordenações Afonsinas? Quem responde essa questão de forma bem elucidativa é Milton Duarte Segurado[3]. Havia os Magistrados Singulares, os Tribunais Colegiados de 2ª. Jurisdição e os Tribunais Colegiados de 3ª. Jurisdição. Os Magistrados Singulares consistia em: a) Juiz Ordinário que não era bacharel em direito, eleito pelos "homens bons", possuía uma vara vermelha e era o Presidente nato da Casa da Câmara; b) Juiz de Fora que era bacharel em direito, nomeado pelo rei, possuía uma vara branca e podia substituir o juiz ordinário; c) Juiz de Órfão: com competência para processar causas de interesses de menores, inventários e tutoriais; d) Juiz de Vintena que exercia a função equivalente ao juiz de paz em localidades que possuía até 20 famílias; e) Almocatéis que tinham a competência de apreciar os litígios sobre servidão urbana, crimes praticados por funcionários corruptos; f) Juiz de Sesmaria, competente para apreciar os litígios oriundos das terras (sesmarias); g) Juiz Alvazis dos Avençais e dos Judeus, para dirimir questões entre os funcionários régios e questões entre judeus. Os Tribunais Colegiados de 2ª. Jurisdição consistia em: a) Desembargo do Paço: apreciava questões cíveis e relativas à liberdade do indivíduo (graça, perdão, indulto e privilégios); b) Conselho da Fazenda: a função primordial era de solucionar litígios acerca da arrecadação de tributos; e c) Mesa da Consciência e Ordem: responsável pela apreciação dos recursos dos demais juízes. Os Tribunais Colegiados de 3ª. Jurisdição consistia em: a) Casa da Suplicação: exercia a terceira e última instância da justiça portuguesa e com competência delimitada.

Nesse mesmo plano de análise, observa-se que o Rei exercia o papel de Governador da Casa da Justiça na Corte, o cargo mais alto da Justiça Portuguesa.

Com o surgimento da imprensa em Portugal no último quartel do século XV, a discussão e o debate sobre a legislação da corte encontrariam um ambiente favorável para reformas e revisão, já que a dinâmica das relações sociais, políticas e econômicas exigiam reformas no antigo corpo legislativo.

No primeiro quartel do século XVI foram compiladas as leis que foram revisadas ou reformadas do antigo ordenamento dando origem às Ordenações Manuelinas. O que aconteceu com o antigo corpo legislativo? D. Manuel teria mandado a todos que desfizessem das antigas leis. O juiz que utilizasse ou invocasse qualquer aspecto da antiga lei, seria condenado à multa. A desobediência a essa regra tornava o infrator um criminoso público, passível de ser punido com o exílio das Colônias de além-mar.

Quais teriam sido as modificações mais importantes que podem ser observadas nas Ordenações Manuelinas em relação as anteriores (Ordenações Afonsinas)? Em se tratando da parte formal, não houve alterações. As leis continuaram dividas em cinco livros, em títulos e parágrafos. Quanto ao conteúdo, observa-se que no final do século XV (1496) os judeus foram expulsos do Reino. Assim, as leis que lhes diziam respeito foram abolidas. E por fim, as Ordenações Manuelinas, ao contrário das anteriores, não faziam referência direta às leis antigas. Aquelas foram redigidas na forma de decretos como se novas fossem.

E o que dizer das novas leis ou decretos redigidos após a promulgação das Ordenações Manuelinas? Os decretos redigidos compunham aquilo que ficou conhecido como Leis Extravagantes, que não faziam parte do corpo original das Ordenações. No final do penúltimo quartel do século XVI (1569), as Leis Extravagantes foram compiladas resumidamente e consideradas como fontes de direito destarte às Ordenações. Foi durante o século XVI que, pelas Leis Extravagantes, a maioria dos degredados (expulsos da Corte) veio para o Brasil. O capitão precisava de um alvará autorizando e indicando o número de prisioneiros para partir do porto. Se desobedecesse, seria penalizado com multa.

Mais uma vez a dinâmica das relações sociais, políticas e econômicas colocaria a legislação da Corte num estado de obsolescência. A quantidade "infinita" de leis decretadas após a compilação das Leis Extravagantes, um ordenamento paralelo às Ordenações Manuelinas, mas de igual valor jurídico, deixava os juristas numa situação complicada.

As Ordenações Filipinas viriam substituir as Ordenações Manuelinas num cenário político peculiar: momento em que as Coroas Portuguesa e Espanhola foram unidas por circunstâncias históricas. Pensava-se que haveria uma ruptura radical, o que não ocorreu. No final do século XVI (1595) as Ordenações Filipinas foram aprovadas e entraram em vigor no início do século XVII (1603). Não são nada inovadoras e preservam, num sentido formal, o mesmo aspecto das Ordenações anteriores. O "novo" corpo legislativo é composto em cinco livros, divididos em títulos e parágrafos. A legislação portuguesa foi reagrupada no sentido de dar novamente uma unidade e uma sistematicidade perdida ao longo do século XVI com as Ordenações Manuelinas. Três anos depois da desvinculação das Coroas Portuguesa e Espanhola, as Ordenações Filipinas seriam confirmadas por D. João IV, legitimando assim o antigo corpo legislativo[4].

Tendo sido esboçado o momento histórico em que foram promulgadas as Ordenações Reais, cabe questionar o fundamento e a validade de tais leis. Qual a origem ou o princípio de legitimação do Direito Português naquela ocasião? Quais as fontes? Quem tinha autoridade legítima para aplicar e fazer valer a vontade do legislador? Qual o papel que a religião e a Igreja desempenhavam na produção e compilação de textos legislativos? Essas questões são importantes no sentido de que alguns princípios básicos da ciência jurídica são universais e que, o Direito, enquanto ciência pauta-se sempre na dinâmica das relações humanas. Pauta

O Corpus Jus Civilis e o Direito Canônico manifestam uma influência assaz importante. Violar a lei não significava somente desobedecer ao rei, mas em muitas situações, profanar a ordem divina. Em alguns casos, o crime, para além de ser de lesa-majestade (conceito que será esclarecido mais adiante), significava um pecado grave diante de Deus e da Igreja. Sobre as sanções, observa Geraldo Pierone, doutor em História pela Universidade de Paris-Sorboné (França):

"Ainda que fossem extremamente rigorosas, e com ameaça freqüente de pena de morte, sua prática variava segundo a categoria social de cada um: para um mesmo tipo de crime, um 'fidalgo honrado' e uma 'pessoa vil' sofriam penas diferentes. Não se podia açoitar os nobres e, às vezes, são eles isentos de torturas. Em geral, uma pessoa condenada ao degredo e mesmo castigada com uma pena pecuniária, uma multa por exemplo, torna-se desonrada aos olhos da sociedade, quer dizer que ela não pode mais exercer cargos públicos até que seja reabilitada pelo rei"[5].

Em todas as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) o Livro V é dedicado ao Direito Penal. As penas são consideradas severas pela maioria das nações que compõe o Ocidente. A pena de morte ocorria de duas formas: morte física e a morte civil. A expressão morra por ello designa a morte física e a expressão morra por isso significava a morte civil, sendo o condenado excluído do meio social pelo degredo.

Uma das heranças do Direito Romano presente nas Ordenações Filipinas, é a tortura. Mas adverte Geraldo Pierone que nessas, a mutilação e a marca a ferro ardente, por exemplo, são mais raras. E a pena de açoite é reservada às pessoas comuns. Essas são consideradas vil e humilhantes. Aos nobres não lhes era aplicada essa pena pelo fato do seu caráter público, que desonrava os condenados. Apesar de os nobres estar isentos da pena de açoite, o que se observa é que, quando cometiam algum crime, eram punidos e condenados. A pena mais severa era o degredo para o Brasil e eles (nobres) raramente conseguiram escapar a essa sorte.

Uma realidade importante que se pode verificar nas Ordenações Filipinas, é a possibilidade de substituir a pena de morte pela pena de degredo. Excetuando-se a pena de morte, aquela era a pena mais severa. E as pessoas comuns, para não serem desonradas na cidade pela pena de açoite, preferiam a pena do degredo.

O Tribunal do Santo Ofício, estabelecido na Corte Portuguesa a partir do século XVI, ocupava-se dos crimes relativos à doutrina da Igreja Católica. O Livro V das Ordenações Filipinas cuida de definir quais são os crimes contra a Igreja. O crime mais grave era a heresia. Nas Ordenações Filipinas, como nas anteriores, não se separava o que era de interesse do Estado ou de interesse da Igreja. Mas na prática, a partir dos anos 1500, haverá distinção entre os juízes seculares e os juízes da Igreja. Por quê? Porque somente a Igreja tinha a prerrogativa de discernir a verdadeira doutrina das falsas e diferenciar o fiel autêntico do herege. O primeiro assunto tratado no Livro V das Ordenações Filipinas define heresia como sendo "o ato de dizer, de crer e de afirmar proposições que são contra Deus e a Santa Madre Igreja". [6]

O senso comum tende a conceber o processo inquisitorial como uma "aberração jurídica" nos dias hodiernos. Pensa-se que o processo era diligenciado sem critérios e que bastava o juiz suspeitar que um fiel apresentasse comportamento herético para ser condenado à morte. Ao aproximar-nos das fontes históricas, afastamo-nos dessa idéia simplória da realidade. A Igreja abominava o derramamento de sangue, conforme pode ser visto em alguns depoimentos de juízes Eclesiásticos. O herege condenado pela Igreja era enviado aos juízes seculares acompanhado de seu processo. Este era revisto pelos juízes da Corte Suprema. A execução somente era autorizada após ter-se verificado sua conformidade com o Direito Real. Não era a Igreja que definia a pena. Ela somente julgava. Cabia aos juízes seculares analisar o processo e exarar a sentença final, sendo anuídos pela Corte Suprema com o consentimento do rei. Mas nesse particular é antiga a relação estabelecida entre Igreja e Estado, conforme pode ser atestado no título 27 do Livro V das Ordenações Afonsinas:

"Porque todo Rei católico, como braço da Santa Igreja, pertence fazer e mandar cumprir e guardar suas sentenças que diretamente são dadas e fazer que seus sujeitos sejam obedientes a elas nos casos que são da sua jurisdição, para serem eles guardados na da sanha de Deus e dos muitos danos e perigos em que caem por essas sentenças, especialmente por sentença de excomunhão de que a Santa Igreja toma espada espiritual e corta a alma que é a melhor e mais nobre parte do corpo"[7].

Ainda conforme a análise de Geraldo Pierone, o combate principal dos tribunais inquisitoriais era contra o judaísmo.

Quanto aos crimes contra o rei, encontramos desde as Ordenações Afonsinas, um fundamento jurídico de ordem romana. O crime de lesa-majestade como já mencionado, era um crime contra a pessoa do rei. O segundo título do Livro V desenvolve pormenorizadamente a idéia de crimes contra o rei. Em geral, a traição manifestava-se em três vícios contrários à lealdade: infidelidade, vileza e mentira.

Nas Ordenações Filipinas, o crime de lesa-majestade é comparado à lepra. Diz-se que "assim como esta enfermidade enche o corpo, sem nunca mais poder curar e empece aos descendentes de quem a tem [...] assim o erro da traição condena quem a comete e infama os que de sua linha descende". É importante observar a análise magistral de Geraldo Pierone:

"Existem dois graus de classificação de crime de lesa-majestade: os de primeira cabeça e os de segunda cabeça. Os primeiros são aqueles que ofendem a pessoa do rei por uma traição. Tais delitos são punidos com o confisco de todos os bens e com uma 'morte cruel'. Nesta categoria entram todos aqueles que 'tratam da morte do rei, da rainha sua mulher, ou de algum descendente ou ascendente, por linha reta do monarca, irmão deste, tio, primo co-irmão ou sobrinho, filho de irmão do rei. Aquele que 'matar ou ferir de propósito, na presença do rei algum homem ou alguma mulher que estivesse na companhia dele', 'aquele que tratar da morte de conselheiros do rei', aquele que bandear-se com inimigo, em tempo de guerra, para combater contra o Reino; aquele que 'corresponder-se com inimigo do rei ou do seu Real Estado, e, finalmente, aquele que quebrar ou derribar com intenção de desprezo, imagem do rei posta nalgum lugar".

Como se vê, o Rei gozava de uma poder praticamente absoluto entre os seus súditos. Os demais crimes, considerados hodiernamente como de menor potencial ofensivo, classificados como crimes de segunda cabeça não eram punidos com a pena de morte, mas com açoites ou mesmo com o degredo. Crimes como quebrar ou violar de qualquer modo a segurança real, matar, ferir, ou ofender reféns em poder do rei, sabendo que o eram, e sem justa razão, ou ajuda-los a fugir desse poder, matar ou ferir juiz ou oficial de justiça por fato relativo ao exercício das suas funções; falsificar ou mandar falsificar o sinal de algum desembargador, ouvidor, corregedor ou qualquer outro julgador. Todos esses delitos eram punidos com o degredo em alguma das colônias da Corte Portuguesa (Brasil, Ceuta, São Tomé).

Apesar de raros, havia também os crimes de lesa-majestade por descumprimento das ordens dos tribunais. Considerada uma falta de respeito às ordens reais, o rei Afonso V puniu severamente quem não cumprisse as ordens daqueles. Um exemplo claro: se o degredado deixa o lugar do degredo antes do tempo determinado pela justiça, deve cumprir o dobro do tempo que lhe restava. Se fosse degredado por 10 anos ou mais e interromper o seu degredo antes do tempo determinado pela justiça, seria condenado à perpetuidade. Se esta for desrespeitada, era aplicada a pena de morte.

A diferença clássica entre moral e direito proposta no Direito Moderno, não é clara na Corte Portuguesa na época das Ordenações Reais. Se um homem desonrasse uma mulher, mesmo com o consentimento desta, e se propusesse a se casar, ainda assim a pena não poderia ser comutada. As Ordenações Manuelinas e as Afonsinas degredavam para a África o homem que cometesse tal crime. Seduzir uma virgem, um crime previsto o título 9 do Livro V das Ordenações Afonsinas, aplicava-se pena pecuniária - se fosse nobre, ou ao degredo às pessoas comuns.

Um privilégio da nobreza pode ser observado quando analisado o crime de adultério. No título 18 do Livro V das Ordenações Afonsinas, prevê-se que seja degredado o marido ultrajado que encontra sua mulher em flagrante delito de pecado com um nobre e o mata. Mas se o adúltero for um vilão ou homem de 'pequena qualidade', o assassino será somente açoitado. Mas se o marido traído tiver o título de cavaleiro ou de fidalgo, ele poderá matar os amantes sem ser punido pela justiça.

Apesar de não ser tão clara a distinção entre moral e direito, observa-se que em alguns casos, como o crime de adultério, por exemplo, a aplicação da pena dependia da opinião dos envolvidos. Teoricamente, seriam punidos com a morte todos os adúlteros. Mas se o marido perdoasse a mulher e denunciasse o rival à justiça, este não morreria, e era punido com o degredo no Brasil. Se o marido perdoasse a mulher e o amante, este teria uma pena menos rigorosa: sete anos de degredo na África. Se fosse provado que o homem consentiu com o ato de adultério cometido por sua esposa, ambos seríamos açoitados publicamente: cada um deveria trazer na cabeça uma guirlanda de chifres e seriam degredados para o Brasil. O adúltero era sempre punido, mesmo se uma mulher fosse "casada de fato e não de direito".[8]

Em suma, eram considerados crimes passíveis de morte ou de degredo: a sodomia, a cafetinagem ou rufinagem e o concubinato entre clérigos, sendo punidos, neste último caso, tanto os prelados como as mulheres que se envolviam com os mesmos. As penas variavam de acordo a posição social e, como era de praxe, aos nobres eram assegurados a não exposição à vergonha pública.

Os crimes contra a pessoa, sua honra e reputação constavam no Direito Português desde as Ordenações Afonsinas. Ao crime de homicídio estava prevista a pena de morte; e à tentativa de homicídio, o degredo ao Brasil. Já a injúria e a difamação constituíam sérios crimes contra a pessoa e a sua honra. Apesar de estarem previstos desde as Ordenações Afonsinas, observa-se uma maior tipificação do crime nas Ordenações Filipinas. No título 49 do Livro V, lê-se: "Dos que dizem, ou desobedecem aos Officiaes da Justiça, ou lhes dizem palavras injuriosas", o acusado poderia ser condenado à morte ou ao degredo no Brasil ou na África.

Quanto aos crimes contra o patrimônio, observa-se que desde as Ordenações Afonsinas, a pena era o açoite em praça pública ou o degredo. É sempre interessante enfatizar que os nobres não eram expostos ao vitupério, mas não eram poupados do degredo e, em geral, aumentava-se os anos de exílio. Por exemplo, se um homem de pequena condição destruir as vinhas de alguém, será açoitado e degredado dois anos em Ceuta. Se o mesmo crime for praticado por um nobre, este não será açoitado, mas será degredado para Ceuta com o dobro de tempo daquele. Para os crimes de roubo, proteção a escravos fugitivos, apropriação indevida de propriedade de outrem, são aplicados a pena de degredo no Brasil.

Observa-se que em todas as Ordenações do Reino a pena de morte era prevista quando o prejuízo material era "muito grande". Não obstante, a pena poderia ser comutada em degredo no Brasil. Geraldo Pierone entende que com todas essas possibilidades, a justiça da época aproveitou amplamente desta margem legalmente concebida para multiplicar o degredo, sobretudo porque a coroa queria povoar as novas terras e aquela seria a maneira mais simples de fazê-lo. Ficou evidente de que o princípio de isonomia previsto na Constituição Brasileira de 1988 (Art. 5º. Caput) de que todos são iguais perante a lei, estava longe das Ordenações do Reino. Os degredados enviados ao Brasil, por exemplo, quando nobres, tinham condições de transporte privilegiadas. Os pobres eram transportados com correntes ao pescoço, enquanto os outros, amarrados a cadeiras nos pés.

Podemos compreender através das análises aqui realizadas que múltiplas foram as causas do degredo ao Brasil. Foram enviadas, efetivamente, centenas de pessoas durante os três séculos de colonização. Historiadores observam que seria demasiadamente oneroso para a Coroa Portuguesa manter todos aqueles criminosos em cadeias. Teriam, assim, transformado os seus "criminosos públicos" em agentes da colonização e do povoamento de suas colônias. Essa é uma das grandes heranças portuguesa legada ao Brasil. É importante lembrar que o Brasil, mesmo após a Independência formal em 1822, não possuía um ordenamento próprio.

CONCLUSÃO

Não nos ocupamos em analisar os aspectos culturais das diversas culturas que participaram do grande empreendimento colonial e suas influências no Direito Brasileiro. Todavia, não podemos ignorar a realidade de que o Brasil, na condição de Colônia, ficou subjugado por mais de três séculos por um sistema político-econômico que dispunha de pouca ou nenhuma disposição para a mudança ou para o diálogo. Afinal, conforme observa Cláudio Valentim Cristiani, "o Brasil nunca foi visto como uma verdadeira nação. Pelo contrário, os portugueses viam no País uma empresa temporária, uma aventura, em que o enriquecimento rápido, o triunfo e o sucesso eram os objetivos principais"[9].

O que foi o Direito Português na época da colonização? Afirma Machado Neto que o esse:

"[...] pode ser caracterizado como um aspecto da evolução do direito ibérico. Deste participa em suas origens primitivas, na paralela dominação romana, na posterior influencia visigótica, na subseqüente invasão árabe, na recepção do direito romano justinianeu, apenas separando suas trajetórias históricas quando Portugal separou seu destino das monarquias espanho-luso de então, seguindo, daí por diante, o seu direito, uma independente evolução nacional".[10]

O que observamos, é que do ponto de vista formal, as Ordenações do Reino eram as mesmas. Walter Vieira Nascimento ressalta que no Livro I, constavam matérias de Direito Administrativo; no Livro II, matéria de Direito Eclesiástico, do Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; no Livro III, Processo Civil; no Livro IV, Direito Civil e Direito Comercial e; no Livro V, Direito Penal e Processual Penal.[11]

Finalmente, reconhecemos que o direito nacional brasileiro nunca representou os interesses do bem comum da coletividade. O público e o privado não representam uma dicotomia para o ordenamento jurídico português. Infelizmente o Brasil herdou de forma genuína essa característica. O primeiro Código Civil brasileiro, cujo mentor mais importante foi Clóvis Beviláqua, criado no primeiro ano após a Proclamação da República (1890), viria substituir as Ordenações do Reino e estatuir definitivamente um Direito Civil brasileiro. Espera-se que o simples fato de acumular conhecimentos históricos do passado não faz com que os problemas contemporâneos sejam resolvidos, conforme análise de Cláudio Cristiani. Porém, se tais procedimentos forem devidamente analisados e trazidos para o presente, de forma crítica, tornam-se extremamente úteis para a compreensão dos problemas existentes em nosso contexto atual.

BIBLIOGRAFIA

CRISTIANI, Cláudio Valentim. O Direito no Brasil Colonial. In: WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. (331-347)

PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro. Das Origens Lusas à Escola Crítica do Processo. Barueri: Editora Manole, 2002.

PIERONI, Geraldo M. A pena do degredo nas Ordenações do Reino. JUS Navigandi, v.1, 2001.




Autor: Joilson José da Silva


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