OS JAGUNÇOS: O BAILE, OU MELHOR: A QUADRILHA



OS JAGUNÇOS: O BAILE, OU MELHOR: A QUADRILHA

Adelita estava no baile. De braço dado com o Tião Oliveira, vestidos para a quadrilha. Ela, de chita, cabelos em tranças, umas pintas feitas a lápis nas faces coradas. O Tião de calça axadrezada, um maço de palha de milho no bolso traseiro. E pintada também a cara dele. E mais um bigodão pintado sobre o bigodinho verdadeiro. Estava meio que assim meio gordinho o Tião, se não se prestasse demais atenção à barriga prosperosa que se derramava pela calça xadrez.

Havia mais de vinte casais ensaiados para a dança. Todos igualmente tal e qual nas roupas: xadrez e chita, trancinhas e chapéus de palha.

Júlio assistia à dança, embevecido, mas se sentia meio deslocado com sua calça jeans e camisa azul-clara. Só nas botas é que se igualava a alguns deles, embora muitos dos dançarinos calçassem botinas.

Homem vistoso como aquele, bem vestido, simpático, alto e forte, um sorriso confiável e cativante de trinta e tantos dentes brancos de causar inveja, e de olhos azuis, herdados do pai estrangeiro, fez sucesso no meio das moças, brancas e negras. Este era o Júlio, o engenheiro, orgulho da peonada mais velha, que ficara na roça, analfabetizada, cumprindo a obrigação do destino.

Muita moça desejou trocar de par e pegar aquele bonito moreno desconhecido, mas não faltara nenhum parceiro e havia que ficar com o que havia. Começou a dança.

E, muita moça, de novo, errou o passo, entretida que estava a olhar o moreno quieto lá no canto, o mulato de olhos azuis e um sorriso de derreter sogra. E quase nenhuma delas reconheceu nele o Julinho, o moleque da fazenda.

O marcador da quadrilha gritava, orientando a dança:

Caminho da festa! / Os cavaleiros cumprimentam as damas!

As damas cumprimentam os cavaleiros. / Cavaleiros ao meio.

Balanceio. Faz que vai mas não vai.

E a sanfona arfava barulhenta e enfisemática a sua melodia de par com os violões sedutores e graves. E iam os pares, em quase perfeita harmonia, dançando a quadrilha ao comando do marcador. O marcador da quadrilha era o Gastão da venda, que vivia, nesta época do ano, naquela festa, o seu apogeu. O Gastão da venda continuou, orgulhoso de sua ciência, marcando a dança aos gritos:

Olha o duplo.

Cavaleiros do lado direito das damas.

Formar a grande roda.

As damas pra dentro e cavaleiros pra fora. / Formar a grande estrela.

Caminho da festa. / Formar um grande círculo.

As damas com as mãos para trás. / Passar as damas para trás.

Caminho da festa. / Olha o túnel.

Foi aí que um cavalheiro caiu. Ia a quadrilha lá pelo meio quando caiu um tonto demais. E saiu carregado, imprestável. Empurraram Julio pra dança pra alegria da parceira. Entrou o Júlio, meio destreinado, mas se lembrando muito bem de seu tempo de rapazola, quando, invejoso de ver os mais velhos dançando, treinava e treinava em casa, e num demorou a pegar o jeito, para agrado de sua dama. Seguia o marcador:

Formar a grande roda. / Cavaleiros pra dentro e damas pra fora.

Formar a grande estrela. / Caminho da festa. / As damas passam os cavaleiros pra frente.

Foi nesta hora que Júlio deu de encontro com Adelita. E ficaram se olhando sem nada dizerem. E ficaram se olhando, encantados. E ficaram se reconhecendo, devagar, esquecidos de sentir vergonha com seu encantamento. O marcador de quadrilha marcava:

Olha a chuva./ Já parou. / A ponte quebrou. / É mentira. / Olha a cobra. / Já matou.

E ficaram se olhando sem nada dizerem. E nada dos dois prestarem atenção à voz do Gastão da venda, apenas se olhavam, rodopiando. Encantados. Enfim alguém tomou um do outro:

Direita com direita. / Damas ao passeio. / Cavaleiros ao passeio. / Passeio geral.

Vai começar o grande baile!

Nest'ora, [perdoa-me leitora, esta "Nest'hora" é a animação do baile que me contagiou! Lembrei-me do Camões que escrevia assim! E se não escrevia devia ter escrito!] Naquela hora, não sei se por milagre ou malícia, os dois se viram de novo abraçados:

Começou o miudinho. / Entram os padrinhos./ O padrinho com a noiva.

E se viram separados novamente. Novos rodopios, mais voltas pelo salão e outra vez um nos braços do outro:

Baile Geral. / Caminho da roça.

Ao final, vendo-a suada e ofegante, ele deu-lhe o lenço para enxugar a fronte. E foram envolvidos pelo festejar dos pares, e foram afastados pelo revirar da multidão. O lenço dele ficou guardado entre os seios dela.

Agora entendemos por que Adelita fugira com um preto, deixando de se casar com um branco rico?

Hein? Pergunto de novo, leitor meu e leitora minha:

"Agora entendem por que Adelita fugira com um preto, deixando de se casar com um branco rico?!"

- Eu entendi!

CAPÍTULO DA DÚVIDA E DAS QUESTÕES INACABADAS

E a flor? E o livro? E os olhos de Júlio?

Que aguardem.

CAPÍTULO DA DONA CREUZA E SUAS FLORES

Dona Creuza podia ser um tanto fofoqueira, mas em algumas coisas ela era passada de boa: sua leitoa à pururuca ninguém fazia igual. E a roupa que lavava e passava ficava branquinha e cheirosa. Seus canteiros de flores não encontravam rivais. As cores das pétalas pareciam não ser pintadas só pelo Criador, parecia que ele pedira ajuda de uma legião de anjos e de uma legião de beija-flores. Flores que, além de Deus, um Van Gogh ajudara a pintar.

E Júlio sabia disto, foi lá e roubou um botão de rosa, quase tão vermelho quanto o vermelho dos lábios de Adelita. Isto foi de madrugada. E quando Adelita acordou, depois daquele baile, viu em sua janela uma rosa. E soube, no mesmo instante, quem a colocara lá.

CAPÍTULO DO LEITOR DE POUCO ENTENDIMENTO

"Como é que ela soube?!", pergunta meu leitor, que é ilustrado no comércio e nas industrias da vida, mas de pouca sutileza nessas coisas da sabedoria da mulher, que sabe que sabe e pronto, desses mistérios.

- Ela soube, e pronto! – respondo eu, já com a paciência encurtada, e com razão. – Ela sabe e pronto!

"E não poderia ter sido o filho do fazendeiro rico, o noivo, o tal Sebastião, ou Geraldo, num me lembro mais o nome?"

Quase que eu, desesperançado de esclarecer os ignorantes, os incrédulos e os curtos de entendimento, deixo esta história por acabar e me vou prum bar dançar num forró.

CAPÍTULO ZERO.DOIS - O AUTOR QUEM SABE PELA ÚLTIMA VEZ

Disse, um desses que entende das coisas, que na vida o que importa, em verdade, é mesmo o amor. Que o bom da vida é a paixão, é um gostar de uma. (Ou, pra não ofender minorias majoritárias, um gostar de um, uma gostar de uma, pois que, nos dias de hoje...)

"Epa! Continue contando a história, sem digressões!"

Ah, sim: sem digressões! Pois, eis que senão quando... Oh, me ajude, leitora, não me alembro... onde é que estávamos?

"Nos lábios vermelhos de Adelita!"

Sim, sim! Os lábios vermelhos de Adelita... Eram assim carnudos e...

"Poupe-nos dos detalhes..."

Ah, bom...

CAPÍTULO ZERO.TRÊS – TIRANDO, ENFIM, O AUTOR DE CENA.

Era de manhã, ele foi esperá-la no regato, levando nas mãos um punhado de flores e no coração canções... Ela chegou envolta nos raios de sol e...

"Ei, assim não! Sai! Sai! Não estrague a história!!", interrompe-me o leitor que, já notei, não é daqueles dos mais bem educados. Deve de ter sido a mãe dele que... Ah, deixemos pra lá!

"Volta com os jagunços! Cê num sabe falar de amor, quero saber é dos jagunços", me ordena o leitor.

- Ta bem! Ta bem! Melhor que eu não tivesse nenhum leitor! Ô, droga!

"Sai! Sai! Deixa a gente continuar vendo o filme!"

- Que filme?!

"A história, porra! Sai! Sai!"

- Ah, era pra falar da flor, do livro e dos olhos do Júlio e me apareceu um lenço e...

"Sai! Sai! Deixa que a história se conte por si mesma!"

A HISTÓRIA SE CONTA POR SI MESMA?

Talvez nunca saibamos da flor, do livro e dos olhos do Júlio, mas agora já entendemos por que Adelita fugira com ele, deixando de se casar com um branco rico.

QUARTA HISTÓRIA: GAUDÊNCIO

Gaudêncio matara a mulher e os dois filhos, o sogro e a sogra. Depois que viu em quem atirara, deu um tiro na boca. E ficou assim com aquela bochecha furada e o queixo meio torto.

Era um homem bonito, o Gaudêncio, mas depois do tiro na boca ficara assustador. Olhassem-no, o cabelo negro e lustroso, os olhos escuros, as sobrancelhas acentuadas, o nariz atrevido, mas olhassem-no do lado em que a boca não era torta! Muita mulher poderia se dizer: "Que homem!" Mas se olhasse a boca! A boca já não era mais como antes, agora era torta e furada.Porém Gaudêncio ainda enganava muita mulher em lugares de pouca claridade.

A voz de cantador ainda se conservava, mesmo que à custa de um modo novo de cantar. Isto quando ele cantava. O mais que fazia Gaudêncio era chorar. Mesmo quando era contratado para empreitadas.

Foi assim que Gaudêncio matou tanta gente:

Voltava dum serviço labutoso, trabalhando numa derrubada de mata nos cafundós do Pará, onde se arriscara a pegar maleitas e outras doenças brabas, e onde gastara oito meses, e suara toneladas de suores, pensando sempre em guardar dinheiro. Doía-lhe ficar longe da esposa, Maria Aparecida, e dos dois meninos, Luizinho e Teodoro. Teodoro, o caçula, fora batizado com este nome em homenagem ao pai de sua mulher, o velho Teodorão. O sogro e a sogra moravam com eles desde que o velho vendera sua fazendinha de terras fracas e andara gastando o dinheiro nuns negócios mal explicados. Gaudêncio desconfiava que era com jogo e mulher.

Mas valera a pena o sacrifício de Gaudêncio: guardara um bom dinheiro; agora poderia comprar mais um pedaço de terra, e enfim poderia se chamar "fazendeiro". Voltou pra casa e comprou mais aquele pedaço de terra.

CONTINUA...


Autor: Onivaldo Paiva


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