O Ponto de Mutação



  • Que tal sairmos hoje praquele choppinho hein Fortunato?

    Toda quarta-feira era sempre a mesma história e quase sempre a mesma desculpa,

  • Não dá, amanhã tenho que levantar bem cedo para preparar aquele servicinho extra que eu faço por fora entende? E os colegas já nem insistiam muito, já iam se levantando, pegando seus casacos, carteiras, apetrechos diversos, soltando o colarinho já pensando no “colarinho” do chopp, 3 dedos bem espessos de um líquido quase sólido, gelado e refrescante.

    Fortunato era técnico de contabilidade muito metódico, muito ordeiro, nunca tivera grandes arroubos criativos, sempre fora um aluno quase medíocre, daqueles que passam e os colegas, depois de alguns anos, têm dificuldades de lembrar de quem foram, tão opacos que foram. Gostava de números mas não gostava de mapas, tinha muita dificuldade de se localizar no espaço, depois de muito tempo ele descobriu que o Sol não nascia no Norte e a capital do Japão não era Londres. Com muito esforço terminou o curso técnico de contabilidade e desde então vinha trabalhando nesta área, e para reforçar o orçamento também fazia serviços avulsos de contabilidade, os tais servicinhos extras que serviam de desculpa para nunca acompanhar os colegas de trabalho. Casou logo, teve 2 filhos e uma vida sob medida para suas pretensões, uma vida pacata e sem destaques, uma planície infindável.

    Nesta quarta-feira Fortunato estava se sentindo levemente estranho ao acordar, mas não conseguia definir o que era. Seguindo sua rotina imutável foi para o trabalho, fez seu almoço habitual, porém não conseguia se concentrar em seus afazeres. Pensou “o que está acontecendo?”. Sabia suas tarefas de cor e salteado, algo mecânico, só que nesta quarta-feira nada parecia dar certo. Dentro de sua limitação, de alguém que têm muita dificuldade de elaborar pensamentos ou perscrutar seu íntimo, Fortunato está bastante inquieto. Por fim toma uma decisão: “Já sei, acho que estou precisando daquele chopinho que os colegas tanto me chamam, hoje eu vou acompanhá-los, senão eles nunca mais me chamarão, ficarei com fama de chato. Afinal o que há de mais nisso? Ligarei para a Conceição e ela entenderá, ela mesmo já disso que eu estava precisando mesmo espairecer um pouco.”

    Dezoito e trinta e todos já surpresos, quase incrédulos aguardam Fortunato na porta do bar. E ele chega, alguns aplaudem, outros riem, se sentam. Brindam na primeira rodada, todos alegres conversando assuntos do trabalho, notícias de casa, os filhos que crescem, o futebol, a política, os planos pessoais, conversas truncadas, gargalhadas, um atira um amendoim no copo do outro, todos adultos com suas vidas em construção. Fortunato olha tudo e se sente um pouco deslocado, está um pouco nervoso pois não está acostumado a sair da rotina. Toma mais um chopp e depois mais um e mais um. Relaxa mais e procura se entrosar, até tenta contar uma piada, que os colegas riem para não afugentar aquele colega tão esquivo, mas bastante considerado no escritório, um sujeito decente, prestativo e ordeiro.

  • O tempo voa quando as pessoas estão alegres e se divertindo, já passam das nove horas de um meio de semana, alguns colegas já se levantam e partem, mas Fortunato está contente agora e não quer ir embora. O álcool já subiu à sua cabeça e ele ri sem motivo, já com os olhos um pouco turvos. Por fim ficaram só o Almeida e o Bonfim um pouco “altos” mas sob controle. Às dez horas eles decidem ir embora e Fortunato sem companhia e um pouco contrariado acompanha-os. Na calçada se despedem, se abraçam e prometem uma nova saída na semana seguinte. Cada um em uma direção e Fortunato com a vista turva se dirige para o ponto do ônibus que o levará para casa. O álcool cobra seu preço aos desavisados, aos desguarnecidos e um homem pacato, ordeiro, limitado e trocando as pernas vai para a outra calçada, na direção oposta. Com a vista turva dá sinal ao primeiro ônibus que passa, e nem consegue ler o destino escrito no visor do coletivo.

  • Fortunato está contente e bastante relaxado, sua persona pública de homem correto e de família em tempo integral lhe é conveniente e o deixa em paz consigo mas teve um efeito colateral sutil ao longo do tempo: a rigidez de sua conduta, sempre com a preocupação de não estar sendo ridículo e não estar em destaque, sempre com suas roupas sóbrias em oposição ou em ignorância às novidades da moda. O álcool dissipava lentamente estes véus apertados que o mantinham sempre digno e polido, sentou-se no banco vazio do coletivo com a cabeça solta e o vento lambendo sua narinas trazia os aromas de uma cidade que ia dormindo aos poucos, mas a cidade não dorme por inteiro, seu outro lado desperta e espreita, como uma selva que espera o dia esfriar para iniciar suas atividades mais ocultas, esta fauna peculiar que não gosta de ser reconhecida e não quer ou não pode encenar a peça que está em cartaz por muito tempo: nossa vida normal.

  • Fortunato não gostava de mapas e não sabia se localizar no espaço, fazia sempre o mesmo percurso, havia nascido e morado sempre no mesmo bairro, na mesma rua, na mesma casa, casou e foi morar nos fundos do terreno de seus pais, pois era muito ligado à família e gostava de pensar que cuidaria de seus pais quando estivessem idosos. Não era ambicioso e se entendia bem com sua esposa Conceição, também ela uma pessoa de horizontes curtos e vida recatada. Quando era pouco mais que um garoto havia se aventurado uma única vez ao outro lado da cidade e a medida que o tempo passava nesta aventura, e as ruas ficavam cada vez mais estranhas, ia ficando mais e mais desconfortável, achando que todos o olhavam e sabiam que não era dali, um vislumbre de uma cena de caça cruzou como um raio em seu cérebro, e se viu como a prêsa enredada nos galhos de uma árvore, alvo fácil de um predador astuto. Antes que pudesse tornar realidade esta idéia, saiu correndo pelas ruas estranhas até achar o ponto do ônibus e embarcar de volta ao seu mundo seguro. Aquela lembrança havia causado uma grande mancha em sua memória e ele concluiu que não havia nascido para ser como Sir Livingstone ou como Anhangüera, explorar não era seu forte, mapas o deixavam enjoado, a cidade havia encolhido para ele.

  • De repente um técnico em contabilidade de vida regrada sentado num banco de ônibus acorda de seu torpor etílico numa quarta-feira à noite quando percebe que não reconhece os arredores. Tomado de confusão e surprêsa se levanta e pede para descer. Já na rua bastante vazia pára e procura a placa. “Rua Capitão Borges”- Não tenho idéia de onde seja esta rua, não tenho idéia de onde estou, que bairro é este ? Quando fica nervoso Fortunato costuma coçar a barriga, já flácida, e procura por alguém que o informe onde está. A fauna noturna aos poucos vai saindo das tocas, afiando as garras, aguçando o olhar, se apossando de seu território. Fortunato meio aturdido esbarra num sujeito apoiado num muro, se desculpa meio sem jeito e o sujeito reclama: “Não tá vendo por onde anda não?”, Fortunato se desculpa de novo e pergunta para o sujeito que bairro era aquele. O sujeito farejando um animal assustado percebe a confusão e o mêdo já evidentes no rosto de Fortunato e se aproveita: “Camarada é o seguinte, tô cum fome e a coisa tá preta. Te digo onde tu tá se tu me der 20 paus preu matar minha fome, certo?” Fortunato é meio devagar para entender as coisas, mas o senso de perigo é uma forma de defesa inata dos seres, ele meio sem saída consente em dar 20 reais para o sujeito. O sujeito pega a cédula e fala : “Camarada tu tá na Vila dos Desesperados, na rua sem saída. Acho que você é do outro lado da cidade e tá perdido, mas tu é um cara legal, é o seguinte: Segue em frente e dobra na segunda rua à direita, depois a esquerda que no final dela têm um ponto final: De lá sai o Expresso da |Meia-noite. Vai fundo que é firmeza” E sai andando com um riso malicioso na cara barbada.

  • Fortunato aliviado de ter se livrado daquele sujeito cumpre as instruções, e a medida que se dirige para o suposto ponto de ônibus aquele alívio vai ficando para trás, se dissipando na presença do mau cheiro perceptível agora que o efeito do álcool se foi. A adrenalina agora começa a inundar sua corrente sanguínea quando ele se depara com os habitantes, os passantes, a fauna local daquele pedaço de cidade decadente. Mulheres com roupas minúsculas, saltos enormes, maquiagem grotesca ao lado de indivíduos mal encarados, com roupas estranhas, muitas tatuagens e cicatrizes, toucas e correntes. Um intenso movimento em casas decrépitas, pichadas, mofadas, música estridente em equipamentos de som estalando em chiados, bêbados bamboleando, alguns vomitando e escorregando no próprio vômito, outros já caídos, indolentes. Fortunato segue em frente tocado pelo medo, uma mulher se aproxima e fala -”E aí tio, quer subir prá brincar um pouquinho?”. Ele olha para o letreiro em neón abóbora onde está escrito “Hotel Finesse” e fala entre os dentes quase inaudível: “Não, não!” Quase correndo agora, se desvia de três homens que mais pareciam zumbis e percebe mais zumbis, muitos zumbis. Chegou numa praça, ou algo parecido com uma praça, mais para um terreno baldio coalhado de lixo, seringas e cachimbos de plásticos. -Meu Deus aonde vim parar? E como vou sair daqui?

  • A praça parecia um depósito de seres que lembravam vagamente um ser humano, ou o que parecia ser um ser humano pelos padrões sociais vigentes, e pelo que Fortunato entendia e conhecia de uma pessoa comum. Aquelas não poderiam ser pessoas normais, dizendo coisas desconexas, gritando, guinchando, com feições e expressões que mais lembravam máscaras distorcidas num quadro cubista, isso quando tinham expressão, o que não era o mais comum por ali, rostos completamente vazios, com olhos nulos e inúteis, amarelados e mirando o nada absoluto. Empilhados uns por cima dos outros, sujos, fedidos e perdidos. O horror não poderia ter melhor representação.

  • O desespêro toma conta de Fortunato, ele coça tanto sua barriga que ela começa a ficar ferida. Pensamentos intensos cruzam sua cabeça, lembrou dos filhos e da mulher, que já devia estar preocupada, se deu conta que havia esquecido o celular no escritório, parece uma conspiração, um conluio de energias ruins, como se tivesse sido pescado por um turbilhão. Ele sabia é claro do lado tarja preta das cidades, mas não tinha nem a mais pálida noção de que pudesse ser deste jeito, esta realidade fictícia para ele, assim como para a maioria das pessoas que dormem cedo porque têm de trabalhar no dia seguinte, porque têm de levar os filhos na escola, porque têm que arrumar a casa, porque têm um mundo para carregar nas costas. Aquilo tudo era tão real que ele não acreditava. Um dos seres que estavam ao redor se aproxima, sua expressão não era ausente, muito pelo contrário, era de uma ferocidade assustadora, Fortunato fica gélido e paralisado. Quando o homem se aproxima com a intenção de rachar sua cabeça, surge algo inesperado.

  • Um homem em trajes puídos, de aspecto cansado, de olhar profundo mas que, em contraste com aquele ambiente, refletia uma nobreza e uma altivez inesperadas deteve o ataque iminente apenas com um olhar. O ser de aspecto feroz parou como que congelado por um raio, dobrou-se e retirou-se, indo juntar-se aos outros infelizes à deriva. Parecia um milagre para Fortunato, pálido e com a respiração tão acelerada quanto um corredor próximo a linha de chegada. Ele mal conseguia falar. O recém chegado estendeu a mão e tocou-lhe no ombro, imediatamente Fortunato foi envolvido numa onda de tranquilidade, e aquilo para ele foi um bálsamo em meio ao terror que estava passando nesta aventura inesperada. Aos poucos, se recompondo, conseguiu falar devagar e bem baixinho, com medo de atrair mais encrenca para o seu lado: - O que aconteceu? Quem é você? Que lugar é este?

  • - Tenha calma, uma pergunta de cada vez, só tenho uma boca para responder, disse-lhe o homem com voz firme. -Primeiro, o que aconteceu? Aconteceu de você tomar contato com o lado obscuro de nossa sociedade, aquilo que está varrido para debaixo do tapete e fora das estatísticas oficiais. É um choque em alta voltagem, é um soco na boca do estômago, é o cheiro do lixo que não pode ser disfarçado. Segundo, que lugar é este? Aqui foi um bairro operário que perdeu sua razão de ser com as mudanças que o tecido das cidades sofre com o tempo, com as migrações e com a especulação imobiliária. Quem pôde saiu a tempo, quem foi rápido vendeu sem muito prejuízo e quem não hoje se esconde com muito medo e só sai de manhã. Terceiro, quem sou eu? Já não sei mais. Costumava ser um trabalhador, um professor. Tive família, mas ela se foi. Foi um golpe muito duro. Perdi minha casa, que era perto daqui. Chorei todas as lágrimas que tinha e então me purifiquei. Foi minha ascese, depois que fiquei na rua tendo as árvores como parede, o asfalto sujo como assoalho e o céu como teto. Pensei em Buda muitas vezes, pensei nos mártires e nos excluídos, e me vi como um deles, e de certa forma era como eles. Mas algo aconteceu, e aos poucos a compreensão de meu significado foi se tornando mais clara. Não havia sobrado muita coisa de meus bens, o que eu tinha cabia numa mochila e eu decidi sair andando por aí, virei um mendigo, sem lugar fixo. Minha consciência e meu intelecto ainda estavam intactos, porém minha estrutura emocional estava abalada para assumir qualquer compromisso. Então eu andava, observando o ritmo do mundo, ia vendo como as pessoas estavam se tornando mais e mais distantes, mais descontentes, menos tolerantes, presas a objetos inúteis, não o Super-homem de Nietzsche, mas os adoradores dos ídolos de pés de barro. Este é claro que não é o mundo todo, esta cidade não é o mundo, mas é um resumo dele.

  • - À medida que andava, e a medida que menos posses eu tinha, estranhamente fui ficando mais aliviado, mais depurado, entendia melhor certas coisas antes obscuras, e vi que há muita mistificação no mundo. A vida merece ser simples e nós precisamos ser sábios, porque nós seremos deuses um dia, conforme o dito esotérico. Eu fui professor no passado e gostava de ensinar, mas gostava mais de aprender. E aprendi a tocar as pessoas e restituir sua paz interior. No começo foi difícil pois as pessoas repelem facilmente o que não é familiar, então eu aprendi como me aproximar sem causar repulsa, meu olhar foi ganhando esta feição de aconchego e severidade ao mesmo tempo, ao mesmo tempo conforta e causa respeito, apesar do resto de minha figura. Ao descobrir esta habilidade vi que podia ajudar muita gente e tenho feito isto desde então. Andava pelos bairros e percebia muita tristeza e desamparo nas pessoas, me aproximava com cuidado e as tocava, quanto mais eu fazia mais feliz me tornava ao ver estas pessoas se livrarem pelo menos um pouco da carga emocional pesada que havia se apoderado de seus ombros, de seus corações e suas mentes. Então vim parar aqui de volta, como um círculo que se fecha, eu que morava aqui e fui feliz um dia, perdi tudo e agora sei o que tenho de fazer.

  • Fortunato estava perplexo com esta história, em sua mente limitada e tão aferrada às rotinas e às convenções tal personagem era inconcebível, ele tinha dificuldades para digerir aquilo tudo, ainda mais durante esta noite tão fora de seus padrões. Com o coração mais tranqü ilo havia se afeiçoado quase que imediatamente àquela figura, de roupas puídas e olhar cansado mas cândido, pensou mesmo ver uma aura, um halo de luz em sua volta, mas não sabemos se ainda era efeito tardio do álcool ou se era da neblina que começava a tomar conta da madrugada, sim pois já era madrugada, ele não havia percebido quanto tempo havia transcorrido em sua aventura. Muito mais havia sido dito pelo homem misterioso, suas andanças pelos bairros da cidade, pela periferia pobre, pelos bairros de comércio e pressa, seus encontros com pessoas tristes e confusas que voltavam a sorrir agora com os ombros mais leves.

  • O céu está clareando, o mesmo espetáculo diário que o cansaço e o sono impedem que a grande maioria das pessoas participe e saboreie, o ciclo sem fim da vitória da luz sobre as trevas. Fortunato olha para os primeiros raios de Sol desta quinta-feira e uma brisa suave refresca sua face. Ele se lembra de seus afazeres, de suas tarefas, mas de súbito pára e pensa para si: -Quanto tempo que eu não saio para passear com os meninos e com a Conceição! Estou tão prêso nesta rotina que até esqueço deles às vezes, mas hoje será diferente. Me darei este dia de folga, e amanhá também, ora bolas! Me darei esta alforria.

  • Nosso técnico em contabilidade está tão eufórico com esta decisão, que nem lembra que não dormiu, mas o que importa? Era como se descobrisse uma fonte nova de energia, como se despertasse de um longo sono de sonhos pequenos. Virou-se para o homem misterioso que o fitava, e este homem sabia que havia ajudado mais um em sua longa missão. Fortunato então lhe pergunta: - Nossa, nós conversamos tanto e você foi tão legal comigo, me ajudou tanto, e eu nem perguntei seu nome? Qual é o seu nome?

  • - Chame-me de “Amigo”, é o suficiente. E ele parte para mais um dia de seu trabalho, agora que teria muito pela frente de volta a seu bairro de origem, tão necessitado de ajuda e purificação. Agora, mais do que nunca, ele sabe o que tem de fazer, sabe que nasceu para isto.

  • Fortunato depois de alguma hesitação consegue descobrir como voltar para casa. Quando chega encontra sua esposa muito ansiosa, muito nervosa pelo sumiço do marido. Ele então dá um longo abraço, acaricia seus cabelos e fala: -Acorde os meninos, troquemos de roupa e vamos passear, no caminho eu lhe conto tudo! E este dia foi o mais feliz que esta família experimentou em não se sabe quantos anos, um dia para ser lembrado pela vida toda, um dia que poderia resumir uma vida inteira. Por precaução, no caminho Fortunato achou melhor comprar um mapa. IVAN HENRIQUE ROBERTO-04/2008


Autor: Ivan Henrique


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