OS DIREITOS HUMANOS NA EUROPA E SUAS DIFERENTES ESFERAS DE PROTEÇÃO



1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é esboçar a justaposição de três diferentes esferas jurisdicionais de proteção dos Direitos Fundamentais, mais precisamente no Direito Nacional dos Estados-membros, na Convenção Européia dos Direitos do Homem e no Direito da União Européia, tentando responder, ou, pelo menos, trazendo luzes para a discussão sobre os seguintes questionamentos: Como se define o respectivo âmbito de jurisdição? Quais os riscos de divergência jurisprudencial? Que caminho deve seguir o particular para invocar o direito subjetivo de que é titular? Qual o tribunal competente?.

Desse modo, ao mesmo tempo em que a problemática da justaposição de diferentes esferas jurisdicionais de proteção dos Direitos Fundamentais é trazida a baila, faz-se imprescindível analisar mais profunda e especificamente essa matéria.

2 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO INÍCIO DA INTEGRAÇÃO EUROPEIA

Para Duarte (2008) o texto originário dos Tratados institutivos das três Comunidades Européias omitiu qualquer referência ao princípio da tutela dos Direitos Fundamentais. Nesse sentido, várias das suas disposições, em particular do Tratado de Roma, estabeleceram regras de conformação das liberdades econômicas que, indireta e instrumentalmente, repercutiam na esfera jurídica dos cidadãos europeus sob a forma de direitos – v.g. o direito à não discriminação em razão da nacionalidade; a igualdade de remuneração entre homens e mulheres; o direito de livre circulação e de acesso ao exercício de uma profissão ou atividade econômica no território de um Estado-membro diferente do Estado de nacionalidade[1].

Em sentido oposto, Quadros (2008) assevera que a idéia da salvaguarda e da proteção dos direitos fundamentais encontra-se presente no processo da integração européia desde seu início. Mesmo reconhecendo que do Tratado institutivo das três comunidades , na sua versão original, não constasse nenhum preceito específico sobre a matéria, não era suficiente para concluir-se que já no período de lançamento e criação das Comunidades a salvaguarda dos direitos fundamentais fosse ignorada pelos fundadores da integração, por várias razões:

"primeiro, com o Plano Schuman,com objetivos da integração européia, como " a paz e a liberdade" e o " progresso econômico e social".

Depois, com a adoção pelos Tratados institutivos das três comunidades como núcleo essencial do sistema jurídico comunitário, as "quatro liberdades" ; as liberdades de circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais.

E, por último, pelo reconhecimento pelos Tratados institutivos de importantes direitos fundamentais dos cidadãos dos Estados-membros como a livre iniciativa privada e a não discriminação em razão da nacionalidade, o direito de petição, dentre outros.

Segundo Duarte (2008), foi o Acto Único que inscreveu, pela primeira vez, na matriz institutiva das Comunidades Européias, uma fórmula genérica de declaração de direitos. Em seu preâmbulo, os Estados-membros comprometeram-se:

"a promover conjuntamente a democracia, com base nos direitos fundamentais reconhecidos nas constituições e legislações dos Estados-membros, na Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Carta Social Européia, nomeadamente, a liberdade, a igualdade e a justiça social"

Todavia, ressalta ainda, que o verdadeiro salto qualitativo seria dado com o Tratado de Maastricht, em virtude de duas alterações fundamentais:

"o então artigo F, n° 2 ( atual artigo 6º.UE) passou a vincular a União europeia ao respeito dos "direitos fundamentais tal como os garante a Convenção europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (...) e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário;

"a previsão de um estatuto de cidadania da União, reconhecido a todos os cidadãos dos Estados Membros e envolvendo a titularidade de certos direitos, incluindo direitos políticos ( v. artigos 17º a 22º do tratado da Comunidade Europeia).

3 ÂMBITO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

No dizer de Silveira (2008), a União Européia não é um Estado (na concepção moderna), mas cria direito como se fosse, isto é, cria normas jurídicas que vinculam obrigatoriamente os Estados-Membros e seus cidadãos. Ou seja: o sistema europeu funciona enquanto ordem jurídica, ou como um conjunto organizado de normas jurídicas.

Assim como o Estado cria direito e vincula-se a ele, a União Européia cria direito e vincula-se ao direito que ela própria cria. Para isso a ordem jurídica é dotada de instituições próprias, de processos tendentes a emitir e interpretar as normas européias, e de mecanismos tendentes a sancionar a sua eventual violação. Por isso a União Européia funciona como uma União de direito, ou seja, o exercício do poder público da União deve estar submetido ao direito, tal como o exercício do poder público do Estado está submetido ao direito.Portanto, ao exercer os poderes que os Estados-Membros lhe devolveram, a União afeta a esfera jurídica dos particulares – logo, a sua atuação deve reger-se por normas e procedimentos jurídicos.

Para Quadros (2008), o Tribunal de Justiça, através da construção jurisprudencial , não esperou muito tempo para considerar os direitos fundamentais como patrimônio jurídico das comunidades. E num dos mais céleres casos da jurisprudência comunitária, o caso Internationale Handelsgesellschaft[2], o tribunal acrescentava que "a salvaguarda desses direitos, inspirando-se nas tradições constitucionais comuns aos estados membros, deve ser assegurada no quadro da estrutura e dos objetivos da Comunidade" ou seja, para o TJ o âmbito dos direitos fundamentais que o direito comunitário tem de salvaguardar forma um sistema global e coerente, e é ditado pelas tradições constitucionais comuns aos Estados membros e por todos os instrumentos internacionais sobre Direitos do Homem nos quais os Estados membros sejam partes pela construção jurisprudencial comunitária da proteção dos direitos fundamentais.

Portanto, para Quadros (2008) a proteção dos Direitos Fundamentais é hoje assumida, no TUE, pela União no seu todo e não apenas pela Comunidade. E destaca que será com base em três fontes, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, na Convenção Européia dos Direitos do Homem e nas tradições constitucionais comuns aos Estados membros, onde a Carta ocupe um lugar central, que será construído o Direito da União Européia sobre os Direitos Fundamentais.

4 RISCOS DE DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL

A jurisprudência é uma fonte que cedo obteve uma grande importância no Direito Comunitário. Isso tem a ver com relevantíssimo papel que ela assumiu na criação e no desenvolvimento do Direito Comunitário a partir dos Tratados. O papel da jurisprudência na formação do Direito Comunitário afasta-se da função que a jurisprudência assume nos Estados da família jurídica românica para se aproximar do papel que ela ocupa nos sistemas anglo-saxônicos, onde assistimos, com normalidade, à criação do direito por via pretoriana, sem prejuízo, contudo, para a hierarquia das fontes de Direito.

Quadros (2008) afirma que se o Direito Comunitário alcançou densidade e o progresso que hoje apresenta, isso se deve muito à jurisprudência comunitária, que soube suprir, tantas vezes, a paralisia dos órgão políticos de decisão.

Para Duarte (2008),o trabalho realizado pelo Tribunal de justiça desde o caso Stauder até os nossos dias é notável, porque "abriu" a ordem jurídica conformadora à relevância conformadora dos Direitos fundamentais e procurou, no quadro das vias processuais previstas nos Tratados, garantir o seu respeito em caso de violação imputável ao decisor comunitário ou ao decisor nacional sobre matérias que integram o âmbito de aplicação do Direito da União Européia.

Portanto, o primado sobre o Direito estadual constitui um atributo próprio do Direito da União. E foi criado e elaborado pela jurisprudência do TJ, que passou a admitir em vários acórdãos.

Nesse sentido, as questões prejudiciais em Direito Comunitário, tais como os Tratados as prevêem, consistem, sem dúvida, no primeiro e no mais importante instrumento da interpretação uniforme do Direito Comunitário. Como se observa, as questões prejudiciais dão oportunidade ao juiz nacional, como juiz comum da aplicação do Direito Comunitário na ordem interna dos Estados, e mesmo antes de se aplicar a norma comunitária a um litígio, a um caso concreto, de obter do TJ um critério uniforme para a interpretação e a apreciação da validade da norma ou do ato em causa e, por outro lado, erguem o TJ na garantia dessa uniformidade.

5 O CAMINHO DO PARTICULAR DE INVOCAR SEU DIREITO

Um dos direitos conferidos ao particular é o direito a petição previsto no art.21º, par.1, CE. Consiste no direito de petição ao Parlamento Europeu. O objeto deste direito, bem como os termos de seu exercício, encontram-se regulados no artigo 194º. (ex-artigo 138º-D) CE. Merece destaque , neste preceito, o amplo âmbito do direito de petição: ele pode incidir "sobre qualquer questão que integre nos domínios de atividade da Comunidade e lhe diga diretamente respeito".

Outro direito é o de queixa ao Provedor de Justiça. Ele está previsto no artigo 21º., par.2. O exercício desse direito está disciplinado no artigo 195º ( ex-artigo 138º-E) CE, merecendo referência especial o seu objeto : ele pode dizer respeito à violação do dever da boa administração ( casos de má administração) na atuação de instituições, organismos comunitários, com exceção do TPI e do TJ quando atuem no exercício de suas funções.

6 TRIBUNAL COMPETENTE

No tema em análise, para Duarte (2008) abrem-se várias hipóteses:

1- O Tribunal Nacional no caso de existirem atos nacionais de aplicação do ato comunitário alegadamente contrário aos Direitos Fundamentais. A decisão do Juiz nacional sobre a suposta ilegalidade do ato comunitário exigiria, de harmonia com a jurisprudência comunitária, a colocação de uma questão prejudicial de invalidade ao Tribunal de Justiça (v. artigo/ 234º.CE)[3];

2- O Tribunal de Primeira Instância (TPI), chamado a pronunciar-se no quadro de um recurso de anulação do acto comunitário em causa (v. artigo 230º, parágrafo quarto, CE) ou de um recurso por omissão instaurado contra as instituições ou órgãos comunitários alegadamente responsáveis pela abstenção que viola Direitos Fundamentais (v. artigo 232º, parágrafo terceiro, CE). Da sentença proferida pelo TPI, poderia ainda o particular recorrer para o TJCE.

3- O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, competente para apreciar as petições individuais com fundamento em violação da CEDH (v. artigos 32º e 33º), poderá, em princípio, exercer esta competência em relação às queixas dos particulares fundadas na alegação de inobservância do princípio da tutela judicial efectiva no quadro da ordem jurídica da União Europeia ou baseadas na suposta violação do âmbito de outros direitos previstos na CEDH, resultante de interpretação restritiva do Juiz comunitário. Em qualquer uma destas hipóteses, a petição individual envolveria uma acusação directa de violação do Direito Europeu dos Direitos do Homem que poria em causa uma decisão anterior do TPI ou do TJCE, levando, por consequência, o TEDH a controlar a interpretação e a aplicação preconizadas pelo Juiz comunitário.

Para Duarte (2008), no estágio atual de evolução do Direito da União européia, e na perspectiva da sua evolução futura, existem razões sérias para, não apenas admitir, mas defender a necessidade de um controle a posteriori por parte do TEDH no quadro de um triangulo judicial ativo sobre Direitos fundamentais no espaço europeu. Pelas seguintes razões:

" o principio do juiz natural, manifestação típica no plano da tutela judiciária do primado do direito, que faz do TEDH o tribunal competente para julgar as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção submetidas por iniciativa de qualquer Parte contratante (v. artigo33º) ou por iniciativa dos particulares, uma vez esgotadas as vias de recurso internas ( v. artigos 34º e 35º)"

" a deficiente ou insuficiente garantia comunitária do direito à tutela judicial efetiva, em virtude da dificuldade ou mesmo impossibilidade de um particular impugnar a legalidade de um ato comunitário de natureza normativa ainda que o fundamento se prenda com a alegada violação de Direitos Fundamentais( v. supra nº 11)"

" por razões históricas conhecidas, na última década do século passado iniciou-se um processo político de aproximação acelerada entre a "Pequena Europa", do grupo restrito dos Estados-membros das Comunidades Européias, e a "grande Europa", que alberga quase todos os Estado europeus. O elo mais forte e conseqüente do ponto de vista jurídico que liga a Pequena à Grande Europa é, justamente, a vinculação à CEDH e a sujeição ao respectivo sistema jurisdicional de garantia, revigorado com a reforma de 1998 introduzida pelo protocolo nº 11."

Ressalta que a CEDH é o instrumento normativo que exprime de forma mais rigorosa e exigente uma vontade política fundamental de " convergência européia no domínio dos direitos Fundamentais", com uma dupla incidência: no plano substantivo, a aceitação de um núcleo básico de direitos e liberdades; no plano judiciário e processual, o reconhecimento da competência natural do Tribunal de Estrasburgo, garantia efetiva de um duplo grau de jurisdição.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parafraseando e concordando com a professora Maria Luisa Duarte a Comunidade Européia deve viver sob o paradigma fundamental da subordinação do Direito pelo Direito, onde exista um sistema completo e eficaz de vias processuais que garantam ao titular dos direitos o recurso aos tribunais, necessariamente investidos com o poder de fiscalizar e controlar os atos de autoridade dos poderes públicos.

Em suma, o Direito Europeu dos Direitos do Homem não pode deixar de se "encontrar" com o Direito da União Européia segundo as regras substantivas e processuais instituídas pela CEDH, a qual fundamenta e renova a legítima aspiração de uma "Europa de Direito" – que partilha os mesmos valores e converge sobre a necessidade de uma trincheira comum de defesa da "Europa dos direitos".

REFERÊNCIAS

DAL RI JÚNIOR, Arno. O Dilema dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais no Sistema Jurídico Comunitário e na União Européia. In: Revista Seqüência, nº 43, Florianópolis-SC, 2001

Duarte, Maria Luísa. O Direito da União Europeia e o Direito Europeu dos Direitos do

Homem – uma defesa do "triângulo judicial europeu" ,Lisboa, 2008.

GUERREIRO, Sara. As fronteiras da tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na convenção européia dos direitos do homem. Coimbra: Almedina, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Globalização econômica, integração regional e direitos humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002.

Quadros, Fausto de. Direito da União Europeia, Coimbra: Almedina, 2008.

SITE OFICIAL DA UNIÃO EUROPÉIA. Disponível em < http://curia.eu.int/pt/pres/cjieu.htm >. Acessado em 07 de fevereiro de 2009.

SITE OFICIAL – EUROPEAN COURT OS HUMAN RIGHTS. Disponível em < http://www.echr.coe.int/ >. Acessado em 07 de fevereiro de 2009.

Silveira, Alessandra. Constituição, ordenamento e aplicação de normas europeias e nacionais, Braga, 2008.

SOARES, F. S. Guido. União Européia, Mercosul e a proteção dos direitos humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002.

TULKENS, Françoise e CALLEWAERT, Johan. A carta dos direitos fundamentais da união européia: o ponto de vista de uma juíza da Corte Européia de Direitos Humanos. In: Direitos humanos, globalização econômica e integração regional: desafios do direito constitucional internacional (PIOVESAN, Flávia –ORG) São Paulo: Max Limonad, 2002.


[1] Sobre a importância destes direitos, e da interpretação que deles foi feita pelo Tribunal de Justiça com vista ao reconhecimento de um verdadeiro estatuto de cidadão comunitário que sucedeu ao estatuto de mero agente econômico, v. Maria Luisa DUARTE, A Liberdade de circulação de pessoas e a ordem pública no Direito Comunitário, Coimbra, 1992,p.241 e segs.

[2] Ac. 17-12-70, Proc.11/70, rec., pags.1.125 e segs.

[3] O Tribunal de Justiça interpreta a sua competência de controle da legalidade dos actos comunitários no sentido de vedar ao Juiz nacional a possibilidade de declarar a invalidade do acto comunitário, pelo que, neste caso, deverá suscitar a adequada questão prejudicial (v. Acórdão de 22 de Outubro de 1987,Proc. 314/85, caso Foto-Frost, Col. 1987, p. 4199).


Autor: José de Ribamar Lima da Fonseca Júnior


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