O Direito Como Produção Humana - Resenha Crítica



O professor José Joaquim Calmon de Passos é considerado o principal jurista vivo da Bahia, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Livre-docente da Faculdade de Ciências Econômicas da mesma Universidade e atual coordenador e professor do curso de especialização em Processo do Centro de Cultura Jurídica da Bahia, em parceria com a Faculdade Baiana de Ciências.

Personalidade crítica e inquieta, Calmon de Passos é também membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, ocupando a 20ª cadeira. Foi membro do Ministério Público do Estado, aposentando-se como Procurador da Justiça, depois de ter alcançado o ápice da carreira, chefiando a Instituição.

Como escritor, pode-se citar: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. III, Rio de Janeiro: Forense; Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais; Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 2000; A constitucionalização dos direitos sociais. Revista Diálogo Jurídico, 2001 e, Direito, poder, justiça e processo:julgando os que julgam. Rio de janeiro: Forense, 2003.

Este ultimo livro é uma tentativa de tornar compreensível o conhecimento jurídico aos cidadãos que não possuem saber técnico, buscando incentivar os profissionais do Direito para a ousada experiência de mudança de paradigma. O trabalho tem como foco a Teoria Geral do Processo e foi utilizado como instrumento pedagógico na disciplina de mesmo nome. Além de citar diversas aplicações do uso do Código de Processo Civil, Passos enfatizou a importância do caráter interdisciplinar do Direito em seus aspectos econômicos, políticos e jurídicos.

O professor Calmon de Passos no primeiro capitulo do seu livro Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam, intitulado Direito e cultura, objeto desta resenha crítica, busca demonstrar que o Direito, embora seja uma produção essencialmente humana, não é um produto da transformação de uma matéria pré-existente na natureza, a qual o homem altera, constrói, inventa e re-inventa e lhe atribui significado e, ainda que separado do seu criador, continua a existir, mesmo que tenha alterado o seu significado, a sua função.

O autor se vale do exemplo da construção de uma cadeira, para demonstrar a posição do homem como ser capaz de modificar o meio natural ao qual está inserido. A cadeira, nada mais é do que a transformação da árvore em um objeto concreto, cujo processo se encerra quando da finalização da construção, com uma função determinada e que, na ausência do homem, perde tanto o seu nome – cadeira, quanto a sua função, podendo lhe ser atribuído outro significado ou, caso isso não ocorra, voltar a ser árvore , ainda que morta, simples madeira, mas que não desaparece na ausência do seu criador. A natureza se reordena de forma dissociável do homem, por ser dotada de concretude – a árvore morta que foi cadeira, retornará à natureza, fechando o ciclo natural.

Com o Direito ocorre de forma diferente. Ele não é uma matéria encontrada pelo homem no seu habitat terreno e que simplesmente fora transformado para atender às necessidades humanas. O Direito é algo que compete ao homem produzir para ordenar aquilo que por si só jamais se ordenaria, que é a convivência social. O Direito, então, não é o fim da produção, mas o processo de sua elaboração, existindo apenas quando cada ato é produzido ou quando está sendo aplicado.

Calmon, com isso, chama a atenção para a responsabilidade do agir humano consigo próprio, indissociável da responsabilidade que ele tem para com os outros homens, ao que chama de solidariedade vinculada à totalidade do mundo. Disso tem-se a necessidade de definir a conduta para que se possa ordenar a convivência social, que não pode se ordenar por si só.

Nisso teremos a ação do homem, separada dos integrantes naturais da natureza. Esse agir, para ordenar a convivência social, é um agir exclusivamente humano, fundado na palavra, no discurso, na comunicação, levando-se em conta o homem como ser singular, por que é diferente e único, e plural, porque se assim não fosse seria incapaz de compreender-se entre si, aos seus ancestrais e prever as necessidades para as gerações futuras.

Por isso, insiste Calmon em nos dizer que o Direito não nos é dado e sim elaborado pelo homem, não podendo ser separado da vontade humana e que somente o é enquanto processo de sua criação ou de sua aplicação na concretude da convivência humana. Sem a atuação contínua do homem o texto escrito das leis, as normas, os decretos, os códigos seriam silêncio.

O autor na sua contextualização sobre processo diferencia-o acerca do sentido em diferentes produções, para que o leitor possa alcançar o verdadeiro sentido de processo no que concerne ao Direito. Na fabricação da cadeira o processo fora um instrumento, um meio em que o homem utilizou-se, além das próprias das mãos, de ferramentas e tecnologias por ele desenvolvidas para facilitar o seu trabalho de adaptação da natureza às suas necessidades e, findo o processo, o seu produto ganha autonomia, independe da ação do homem para cumprir sua função, perder ou mudar de função.

Outro exemplo é a música, que inexiste como fenômeno fora do processo de produção. Quando o cantor silencia ou o músico deixa de tocar o instrumento, tudo cessa. A partitura não é som, não é melodia, nem harmonia nem acordes, não existe para o ouvido. Cada vez que o autor ou outra pessoa reproduz a melodia será um ato de criação, quer seja marcado por novas aquisições sentimentais do próprio criador, quer impresso pela personalidade de um executor distinto, podendo, inclusive, por ineficiência, desfigurar a obra original. Assim como a música, o Direito só o é quando em processo, num fazer contínuo, nunca acabado, jamais pronto.

Diferentemente dos outros seres vivos, desprovidos do que se chama de razão, consciência, querer, vontade, desejo e liberdade, o homem é um ser condenado a fazer escolhas, agir e fazer acontecer coisas, que sem sua ação não teriam acontecido, isto o coloca como ser responsável de si mesmo e de sua socialidade, sendo necessário o Direito para disciplinar tais atos advindos da sua capacidade de viver a liberdade.

Portanto, a relação entre o processo do direito e o resultado que é produzido não é um fim em si mesmo, como ocorre com as demais produções oriundas do trabalho humano. O direito é produzido em cada ato, separado o mundo natural e, focando nossa observação na cultura, propriamente, no nosso objeto de estudo que é o Direito, vemos que ele é, antes de tudo, sistema. Um mundo de normas e princípios cheio de sentido e significação.

A solução dos conflitos que ocorrem na convivência social é seu verdadeiro objeto. E como tal, criado dentro de uma lógica, de uma organicidade, necessária à compreensão do ser humano, que só assim pode dele se utilizar. Não se pode pensar o Direito criado como fruto da experiência e da observação, pois ele não é algo dado, como são dadas as realidades do mundo físico. Ele é produzido, cada ato de sua produção concretiza-se com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado. Tem, por fim, o Direito, sua funcionalidade intrínseca como produto da vontade do homem.

Rosaury Francisca Valente Sampaio Muniz

Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Salvador.

Referência

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Direito, poder, justiça e processo:julgando os que nos julgam. Rio de janeiro:Forense, 2003, p.2-25.


Autor: Rosaury Sampaio


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