O Problema do Sentido Histórico e de suas Variações Axiológicas



O PROBLEMA DO SENTIDO HISTÓRICO E DE SUAS VARIAÇÕES AXIOLÓGICAS

Resumo: Este artigo faz algumas referências à importância do conceito de sentido (Sinn) para a história científica. Para isso, é necessário mostrar como a teoria de Max Weber foi construída com base numa problematização do conceito de sentido. Após isso, serão apresentadas três implicações epistemológicas do conceito de sentido para a história científica: sentidos diferentes constituem o mesmo evento do passado; a impossibilidade de um conhecimento desinteressado; e a necessidade de apreciações de valor para que algo, em meio a infinitude abrangente do evento histórico-cultural, possa ser recortado e investido com significado.

Palavras-chave: sentido, história, causalidade histórica

Summary: This article makes some references to the importance of concept of meaning (Sinn) for the scientific history. It takes notice of how Max Weber proposed pertinent solutions for the problem of historic meaning. For this, is necessary to introduce how the Weber's theory was formed with foundation to a problematization of concept of meaning. After it, will be presented three epistemological implications of meaning's concept for the scientific history:different meanings constitute the same events of past; the impossibility to a disinterested knowledge; and in the necessity of valuation to that something, among the infinity of historic cultural event, may be outlined and invested with meaning.

Keywords: meaning, history, historical causality

Ulisses do Valle

Talvez a questão que melhor represente a modernidade, tomada de maneira geral e nos seus aspectos filosófico e antropológico, seja a questão do sentido e significado da vida. A pergunta pelo sentido da vida, sem dúvida, é o sintoma mais evidente de um certo desfecho da modernidade. Apenas a modernidade, como contexto histórico, forneceu as condições suficientes para que, primeiro, pudesse surgir alguma "dúvida" e desconfiança para com o sentido da vida e do universo e, por último, para que essa dúvida quanto ao sentido da vida viesse a se transformar em um conflito latente com a existência humana, na medida em que esta é essencialmente interpretativa. Mas o que quer dizer o fato de apenas a modernidade – e isso é exatamente o que, aqui, para nós, a qualifica -, como época histórica, ter oferecido condições para o surgimento de uma dúvida latente quanto ao sentido da vida? Porque, dentre todas as outras culturas, apenas a modernidade ocidental favoreceu tal experiência – que até teve e continua tendo implicações decisivas em nossas vidas? Pode-se compreender, na obra de Weber, indicações e sugestões explicativas para tais questões. É mesmo plausível que tais questões o motivaram, embora não tenha deixado em seus escritos uma resposta sistemática e definitiva. Esse aspecto de sua obra acabou dando margem a múltiplas interpretações.

Tratando a ciência experimental e o capitalismo como o eixo principal de valores da modernidade, por um lado, e a religião e suas teodicéias racionais como a matriz valorativa da "Idade Média" e da "tradição", autores vinculados a uma certa corrente de interpretação, leram Weber entendendo que, para ele, nesse sentido, havia uma profunda oposição, típica do Iluminismo, entre fé e razão; epígonos de uma outra corrente, mais recentemente, interpretam a obra de Weber de uma maneira essencialmente distinta e, no mínimo, não menos plausível. Embora partidário inequívoco da ciência, para tal corrente a obra de Weber não estabelece uma oposição absoluta entre o racionalismo religioso e o racionalismo científico, mas, muito diferentemente, admite uma escala de diferenciação gradativa de uma para o outro. E é por isso mesmo que, a despeito de seu partidarismo em favor da ciência, Weber sentia-se seguro para afirmar que "apenas um delgadíssimo fio de cabelo separa fé de ciência". Pelos olhos dessa corrente, se a ciência moderna a serviço do capitalismo e o capitalismo mesmo celebram ambos a vitória do racionalismo científico sobre o racionalismo religioso, isso não faz de ambos uma oposição. Um não é o contrário do outro. A obra de Weber, podemos entender, denuncia mesmo pontos centrais e comuns às duas espécies de racionalidade.

O fato de a modernidade, do alto de sua auto-proclamada auto-consciência, conceber a si mesma como uma postura de negação da tradição, não lhe retira o seu locus histórico, não faz com que ela possa se livrar de sua origem e genealogia; a despeito da ilusão com que a própria modernidade e a "consciência moderna" se auto-interpretam, ilusão que consiste no sentimento de uma ruptura radical com a tradição, podemos hoje – senão em um período posterior à modernidade, pelo menos em um mais amadurecido reflexivamente em relação aos seus problemas centrais -, abstraindo de todo grito e ordem de guerra contra a Idade Média, sem a sutileza dessa vingança que se expressa nos "castigos" com que tantos historiadores modernos deram ao período medieval ao interpretá-lo como a dicotomia do moderno, podemos enfim avaliar e interpretar tais questões sob uma outra ótica. Não importa mais vê-los como dois pólos de uma existência que terminou partida; de nossa época, para nossa época, não importa proclamar e reafirmar a novidade moderna sobre a caducidade medieval: importa mais reavaliar e procurar com suspeita nos fundamentos do moderno se não fomos enganados, procurar o que neles ainda persiste de antigo, de medieval, de tradicional, e mesmo o que apenas graças a isso pode florescer.

A história da ciência, tal como Alexandre Koyré[1] nos narrou, serve exemplarmente bem para não caracterizarmos equivocadamente a modernidade como a época que definitivamente rompeu com a tradição; a ciência mesma, arquétipo da consciência e comportamento tipicamente modernos, guarda origens ancestrais, sem as quais jamais teria chegado ao nível de abstração por ela conseguido e com o qual ela se sentiu a vontade e gabou de si mesma diante do passado mítico e de suas representações sobre a natureza, por um lado e, de outro, da própria natureza, que àquela altura de seu próprio orgulho, supunha poder inteiramente dominar.

Sim, a ciência moderna é mais que o fruto repentino de uma avassaladora revolução. Ela é mais a continuação potente e catalisada de processos culturais lentos, gradativos, do que a irrupção de uma brusca pausa no devir histórico que sinalizaria um novo começo. A modernidade, pois, deve hoje ser apreciada não como um momento da ruptura, mas como o momento do cume, do ápice e da consecução de processos complexos que há tempos esboçavam seus primeiros desenvolvimentos. A ciência, o melhor arquétipo que representa tudo que se quer moderno, é o melhor exemplo que temos para provar que a modernidade, como tudo que é histórico, não começou ontem. Ela prova, aliás, algo mais e maior. No domínio da história é ambíguo, improfícuo e problemático apontar qualquer começo, qualquer ponto na linha múltipla do tempo onde o passado seja absolutamente esquecido em nome da novidade radical do futuro. Apenas há transições, mais ou menos fluídas, mais ou menos perceptíveis como tais. Aquilo que é visto e interpretado como "novo" em relação ao passado, não o pode ser sem um juízo de valor, diria Weber. O racionalismo científico, inimigo inconciliável do racionalismo religioso, é mais a sua continuação do que sua oposição lógica.

Adiantemos: Weber não encara a modernidade como a época da ruptura com a tradição. Para ele, a modernidade é a época que atinge um grau excelente de abstração e racionalização, ao ponto que e no sentido de que, com isso, ela tenha indiretamente alcançado algo maior e mais complexo, e que definitivamente a caracteriza melhor do que qualquer idéia de ruptura: o desencantamento do mundo.

Se na modernidade o desencantamento atinge seu estado mais evidente, isso não quer dizer, entretanto, que ali ele tenha começado. Séculos e séculos foram precisos para que a Europa moderna visse a si mesma abstraída de todos os poderes misteriosos e mágicos que antes circundavam suas interpretações sobre o mundo.Em sua sociologia da religião, Weber se esforça por traçar o longo desenvolvimento cultural que culmina numa cultura desencantada. Nestes estudos, Weber deixa a marca incontestável de sua concepção sobre a passagem da história. Se a religião racional sucede à magia, isso não se dá, entretanto, à maneira de uma oposição. Quando se vai de um segmento da história para outro, apenas pode-se falar de uma oposição entre eles através de conceitos ideal-típicos; não pode haver na realidade histórica, concreta, em sua passagem de um momento a outro, nenhuma oposição, nenhuma negação absoluta, mas apenas a intensa continuidade de um devir que só pode ser apreendido, experimentado, vivenciado e, sobretudo, memorizado, registrado, parcialmente, pontualmente; ao contrário do que pensou Hegel, para Weber uma mudança histórica não surge como uma negação de um estado antecedente; essa é geralmente a maneira típica com que os agentes e sujeitos da mudança histórica interpretam e justificam a si mesmos seu papel em relação a seu tempo: é a maneira com que tais agentes lutam contra o que é "antiquado", isto é, contra aquilo que elegeram como seu "Demônio" no momento em que afirmaram o seu "Deus" em específico.

Assim, ao ler-se Weber, constitui também em erro distinguir, à maneira de uma oposição, os dois tipos básicos de culturas (condições culturais), isto é, entre uma cultura encantada como o contrário de uma cultura desencantada. A passagem de uma à outra, diria Weber, é inteiramente fluída. E o mesmo serve, portanto, da passagem do racionalismo religioso ao racionalismo científico: mesmo no auge de seu conflito com a religião, a ciência guarda heranças religiosas ou mesmo concepções religiosas, de modo que tomá-la por oposição ao comportamento religioso provém mais de um esforço retórico a partir do qual a ciência afirma seu próprio valor, do que da realidade de sua situação prática; se a fé – cristã, no caso – e sua expressão prática sobre a conduta de vida é o aspecto do período medieval que melhor o representa, e que o mesmo valha para a ciência em relação à modernidade e se, por sua vez, apenas "um delgadíssimo fio de cabelo separa fé de ciência", então não convém falar de um período como oposição ao outro.

Por isso, de agora em diante, quando falarmos de uma condição cultural desencantada[2], estaremos falando da modernidade. A modernidade é o período em que todos os processos do mundo deixam de ser observados com base numa relação significativa de causalidade, ou com base numa relação ética de causalidade, e passam a apresentar-se como o resultado de um processo natural que segue de uma causa a um efeito e assim por diante: o movimento de uma canoa num rio deixa de ser explicado como o resultado de um processo no qual o ato de remar constitui um ritual através do qual se obriga (convence-se, negocia-se) um deus a movê-lo, e passa a ser explicado como um processo natural que pode ser descrito pela lei da ação e reação; o universo, a vida, tanto quanto o destino humano, deixam de ser interpretados com base nas doutrinas éticas reveladas nas profecias religiosas, e passam a ser explicados pela lei da gravitação universal, da quantidade de movimento, da teoria da evolução; enfim, o domínio da causalidade significativa e da causalidade ética numa condição cultural encantada, é substituída pelo domínio de uma causalidade natural numa condição cultural desencantada.

Para os fins deste artigo, interessa-nos sobretudo os efeitos disso. O contato demasiado intenso e violento das potências colonialistas (e "pós-colonialistas") com a alteridade e com culturas que expressavam modos de viver absolutamente distintos da maneira cultivada no ocidente – isto é, segundo o "sentido ocidental", que até então parecia firmemente dado e revelador, forneceu ao plano teórico e especulativo um elemento empírico que não pôde ser desprezado: a diferença dos sentidos. Se cada cultura correspondia a uma maneira de interpretar a vida, a morte, o sofrimento, o tempo, o que poderia ser a dita História Universal? Fazia ela algum sentido depois que o contato com o outro de diversas culturas mostrava que essas questões essenciais permitiram inúmeras "respostas" distintas, o que evidenciava latentemente a impossibilidade de uma resposta e um "sentido" essencial para tais questões? Sim, a "descoberta" moderna das outras culturas, sentidos e significados para a vida, desdobrou-se numa conclusão precoce tanto quanto aterrorizadora: a vida, o universo e também a existência humana são destituídos de sentido. Os ecos da "morte de Deus" se fizeram ouvir por todas as esferas da cultura tocadas pela modernidade: a tradição, aos poucos e cada vez mais, foi maculada e subtraída de seu estatuto de validade, porque nada mais podia valer absolutamente depois da morte do "grande Pan", depois que a humanidade viu a si mesma fragmentada em humanidades, das quais sequer podia tomar consciência e compreende-las por inteiro.

Problemas desta espécie compunham a atmosfera sob a qual Weber expirou seus escritos. O valor desses escritos continua de pé quase cem anos depois de sua morte. Não porque sua genialidade assim o fez, mas porque a história de nossa época ainda não apresentou respostas convincentes aos dilemas que tocam ao sentido e significado da vida, sobretudo quanto ao ponto de suas implicações sobre o conhecimento e o método. A intenção aqui não é, claro, oferecer tais respostas, mas apenas esclarecer isso como um problema que foi consciente e profundamente abordado por Weber.

A ausência de um sentido único se professava por todos os aspectos da vida de forma mais ou menos intensa: em todas as esferas se evidenciava um choque intransigente com a tradição: os "grandes acontecimentos" modernos, como a revolução francesa, a reforma e as querelas religiosas, o capitalismo, a ciência, a arte moderna (l'art pour l'art), tanto quanto o Estado moderno, expressavam em esferas distintas um conflito com a tradição, que implicitamente afirmava-se até então como o sentido único e estável do universo.

No âmbito propriamente filosófico e teórico, as conseqüências e os impactos deste conflito entre a tradição (que pressupõe um sentido único para os acontecimentos do mundo) e a modernidade (que descobre a possibilidade de outros sentidos para o mundo) são incrivelmente enormes, que de certa forma moveu a todos os grandes pensadores do período moderno, e por isso impossível de fazer parte da discussão. Aqui cabe apenas mencionar como a modernidade, a "Era da comparação", como a chamou Nietzsche[3], colocou para o conhecimento o fato de que o sentido do universo e das causas do mundo e seus acontecimentos no tempo, são produtos culturais e não algo existente por si mesmo. O mundo e o universo e, é claro, a história e a existência humana, são, em si, sem sentido. Apenas os homens, situados em suas comunidades culturais, são capazes de infundir um sentido ao mundo e seus acontecimentos. Eis a premissa e pressuposição de todo o pensamento científico de Weber. Eis, também, o aspecto ontológico do problema aberto pelo conceito de sentido.

A ausência de um sentido essencial para a vida levava ao terror existencial descrito com tanta veemência por Nietzsche em seus textos sobre o Niilismo[4]. Por outro lado, nos limites dessa própria compreensão, dessa conclusão propriamente moderna, abria-se uma possibilidade que pareceu poder, a muito sacrifício, "compreender" e assim compensar os impactos de uma existência niilista e de uma cultura desencantada. Tal possibilidade foi claramente percebida por Weber, e diz respeito à capacidade de todos os homens de, em meio ao caos e perpétua contingência, dotar o mundo e suas próprias ações nele com um sentido e significado. Pode-se entender que todo o procedimento que abarca os trabalhos de Weber carrega consigo uma pressuposição fundamental sobre o ser humano: para ele, o homem é o animal que necessariamente interpreta. A ciência, nesse sentido, pode vir a ser uma via eficiente de controle das interpretações, que de uma forma ou outra subjazem ao menor gesto e ação dos homens.

A capacidade e necessidade de todo homem agir significativamente possibilita que o "sentido" e os "sentidos" de um fenômeno, de uma cultura, de um acontecimento, de uma ação, sejam transformados em objeto de estudo, científico e analítico inclusive. Além disso, ela coloca uma outra questão ainda: a ação do cientista ao fazer ciência, bem como todas as suas conclusões, portam elementos interpretativos (a diferença específica da ciência reside quanto aos seus meios e capacidade de controle da contingência). Esse tipo de reflexão volta-se contra o cientificismo do século XIX, a despeito de Weber estar mesmo entre os maiores entusiastas da ciência no início do século XX, embora cientista apaixonado, Weber não compartilhava com o século que lhe formou as maneiras que constituíam a prática científica. Para ele, a ciência não podia vir a transformar-se em um novo meta-valor que coordena e unifica a cultura, como outrora o foi a religião, por exemplo. Não cabe aqui uma discussão aprofundada sobre a questão dos valores. Por enquanto, nos basta evidenciar que, para Weber, toda interpretação, seja ela de qualquer objeto, fenômeno, acontecimento histórico, cultura, ação, etc., tanto quanto interpretações que orientam nossa ação (sem que, necessariamente, estejamos cônscios delas) e até mesmo a interpretação do próprio Eu em sua relação com o mundo, constituem um sentido, que pode, por sua vez, ser re-interpretado pelo cientista, pelo historiador.

O problema do sentido histórico percorreu todo o círculo de intelectuais com os quais Weber discutiu e se relacionou. Procurar um vínculo fixo de influência de outros pensadores sobre Weber, mostrou-se uma tarefa impossível de ser realizada; nem por isso, contudo, improfícua: muitos trabalhos foram produzidos com base numa associação da obra de Weber ora a uma provável influência de Simmel, ora a uma não menos provável influência de Rickert, Nietzsche, Dilthey e tantos outros. Isso prova que nenhuma delas pode pretender ter razão quanto a uma vinculação direta da obra de Weber a concepções de algum desses autores.

Assim, de quando em quando, segundo a conveniência de esclarecimento de questões pertinentes aos objetivos deste trabalho, poderão ser apresentadas posições de afinidade ou rejeição de Weber para com temas e concepções que eram também objetos de outros autores.

Dois lados de uma mesma moeda haverão de ser observados, portanto: todo fenômeno cultural apenas poderá tornar-se objeto de análise a partir do seu sentido e significado. Assim ocorre também para todas as ações individuais dos atores sociais. Mesmo as chamadas entidades coletivas, como classes, camadas e congregações, apenas podem ser adequadamente analisadas a partir dos sentidos individuais do agir daqueles que compõem tal entidade coletiva. Estas, para Weber, são por si mesmas incapazes de ação. Assim, a capacidade humana de agir significativamente, de perseguir um sentido quando age, implica a possibilidade de sua ação ser interpretada posteriormente com relação a tal sentido/significado.O outro lado da moeda consiste na transposição dessa conclusão ao domínio propriamente epistemológico: também o cientista, quando faz ciência, age significativamente. Nessa medida, as ações e conclusões do cientista não podem acompanhar a realidade das coisas através de uma descrição, mas permanecem interpretações, repletas com a atualidade daquele que interpreta.

A consciência de que o mundo, a vida e a existência podem encerrar interpretações diferentes em culturas diferentes, redunda na consciência de que não há uma interpretação-em-si. Como ressaltamos antes, para Weber, o homem é o animal que necessariamente interpreta. A validade mesma com que alguma interpretação pretende interpelar as demais (ou as "inválidas") constitui um domínio interpretativo. A ciência, que seria a instância capaz de uma maior generalização interpretativa e, portanto, de maior conhecimento, descobre que ela mesma pode ser interpretada para além de seus resultados e, mais do que isso, descobre que também suas conclusões, por mais edificantes que tenham sido, tem como fundamento último interpretações e avaliações, e não uma situação fática dada.

Weber esteve ciente de que introduzir o conceito de sentido no domínio científico significava alterar algumas bases com que a ciência de sua época se apresentava. Tentativas anteriores a de Weber já haviam sido feitas por Dilthey e Simmel e muito lhe ajudaram a configurar a sua própria. Essas primeiras tentativas, presentes em Rickert, Dilthey e Simmel, tiveram como obstáculo aquela poderosa ala do historicismo que insistia em inserir o método das ciências naturais no domínio dos fenômenos humanos.. Não cabe aqui uma discussão exaustiva de todo o ambiente historicista do século XIX. A bibliografia sobre este tema é enorme, e supõe-se aqui que o leitor esteja ciente dos debates entre as correntes historicista e a corrente compreensiva (Verstehen), que admitia a absoluta irrepetibilidade e iconicidade de todos os eventos históricos, que, nesse sentido, não podiam ser explicados segundo uma lei generalizante, mas apenas através de uma compreensão interpretativa que situasse os eventos históricos em totalidades significativas mais abrangentes (hermenêutica).

Apesar de chamar sua sociologia de compreensiva, Weber não era adepto ao método histórico da Verstehen – e menos ainda do historicismo. Nem por isso podemos negligenciar a importância que ambas as escolas tiveram para Weber. Quanto à questão do sentido em especial, sua diferença em relação à Verstehen e ao método histórico de Dilthey consiste em perceber que, ao se considerar todas as ações humanas como executantes de um sentido, obriga-se também a procurar tal relação na ação do cientista mesmo, este que está a procura vã por uma interpretação essencial da realidade histórica.

Ao tornar-se consciente desta implicação do conceito de sentido, Weber sentiu-se obrigado a interrogar-se sobre o sentido e o valor da ciência, do significado das ações e realizações promovidas ao longo dos anos pelos "homens de ciência". Uma metodologia do conhecimento histórico, para ele, não podia abster-se da procura consciente por suas condições, pressupostos, interesses e avaliações últimas. A ciência, neste sentido, distinguiria sua validade da de outros eixos de interpretação (religião, arte, política, economia) pelo esforço de tornar-se consciente desses elementos. Nisso ela reencontraria novamente o seu valor; reencontraria, pois, um "sentido para além do meramente técnico" (Weber, 2001: pág. 440).

Assim, não podemos desconsiderar a importância das obras de Dilthey para a inserção do conceito de sentido no domínio metodológico. Entretanto Dilthey, diferentemente de Weber, não percebeu bem aonde as teorias da interpretação levariam: à conclusão de que, se a ciência também "interpreta", e não "descreve", ela também pode ser interpretada com base em seu sentido e significado. Porque, então, a ciência interpreta? Para garantir ou prover quais interesses? Para afirmar ou negar qual valor? Porque ela, a ciência, emite uma interpretação fundamental através da qual requere validade às suas interpretações? Em seu esforço tremendo pela constituição de um método pautado na especificidade dos "objetos do espírito", Dilthey, por exemplo, não pôde se propor questões tais como estas.

Neste aspecto específico do sentido e de sua relação com a ciência, Weber está mais próximo de Nietzsche. Não à toa disse Deleuze que "o projeto mais geral de Nietzsche consiste no seguinte: introduzir em filosofia os conceitos de sentido e valor" (Deleuze, pág. 5, 1978). O conceito de sentido estende sobre o domínio da ciência implicações que não podem passar despercebidas. Se considerado por si, o universo e a existência são sem sentido e se, por outro lado, a iniciativa humana é capaz de infundir neles um sentido, então não é possível determinar com precisão analítica o que é e o que já não é uma interpretação, dado que, para isso, necessitar-se-ia de uma nova interpretação: este é o novo "infinito" de que fala Nietzsche e que segundo ele está aberto à modernidade e a visão moderna de mundo:

"Até onde vai o caráter perspectivista da existência, ou mesmo se ela tem algum outro caráter, se uma existência sem interpretação, sem sentido (Sinn) não vem a ser justamente absurda (unsinn), se, por outro lado, toda existência não é essencialmente interpretativa – isso não pode ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e auto-exame do intelecto: pois nesta análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas" (Nietzsche, pág. 278, §374, 2005)

À semelhança de Nietzsche, para Weber também "não é possível entender porque não se pode agir sem se considerar juízos de valor" (***)

Com isso, fica fácil perceber a afinidade dos dois autores com relação a este tema[5]. O especificamente weberiano, contudo, resume o conceito de sentido em dois lados. Sentido é a origem tanto da realidade empírica estudada pelo investigador, quanto do motivo pelo qual se inicia o estudo científico da realidade empírica. O comum a Weber e Nietzsche, por sua vez, é que, para ambos, sentido não é, pois, um gesto deliberativo da vontade, nem algo do qual qualquer ação humana inserida numa cultura pode ausentar-se. Mesmo numa sociedade e época histórica que reúnam aqueles sintomas com os quais Nietzsche caracterizou o niilismo (basicamente a ausência de um sentido no horizonte de expectativa), não se pode subtrair e separar as ações humanas de um sentido que elas executam.

Essa abordagem do conceito de sentido permitiu a Weber compor um conceito de "homem" a parti do qual pudesse, a despeito de todas as diferenças das várias culturas e situações históricas, ter uma base sólida, um critério coerente de comparação entre as culturas. É nisso que se funda a "antropologia" weberiana. E. Chowers sumarizou esse pressuposto fundamental a partir do qual Weber produziu seus mais profícuos estudos comparativos entre culturas. Segundo ele, para Weber "os seres humanos tem a necessidade interna, tanto quanto a capacidade, de interpretar suas vidas e o cosmos como um todo de um forma significativa. (Koshul, 2005: pág. 83)

Há nisso tudo muitas questões a serem discutidas; por isso a divisão deste capítulo em mais quatro seções. Nesta parte, é suficiente evidenciar como a inserção do conceito de sentido nas ciências culturais levou à concepção de que agir significativamente é um ponto comum a todos os homens, a pedra de toque de uma possível compreensão do outro e de si mesmo. "Subentendido no projeto de Weber particularmente em sua sociologia da religião, existem algumas convicções essencialistas sobre os seres humanos, a mais importante das quais é uma visão do homem como homo-hermeneut, seres que requerem uma existência significativa" (Idem)

O cientista da cultura tem condições de analisar a conduta humana em sociedade, partindo do princípio de que todo ator ali considerado age com base nos sentidos e significados que só existem enquanto conjugados à sua cultura e imagem de mundo. Entretanto, ele, cientista da cultura, sabe agora que também a sua ação, quando faz ciência, persegue um sentido compreendido culturalmente, disposto como um valor. Por isso, o significado do sentido deve ser conduzido para dentro da inquirição científica. O investigador tem que acompanhar a significação de seu próprio ato explanativo, tanto quanto o porquê de ele estar investigando aquela parte em específica da realidade e não uma outra (em meio a infinitas).

A diferença básica de Weber em relação a Nietzsche neste aspecto consiste no seguinte: Nietzsche estava em contato e confronto direto com a ciência naturalista que predominava no século XIX, de modo que a maneira que ele compreendeu a relação da ciência com o conceito de sentido variou bastante em relação a Weber

A ciência, para Nietzsche, atua incrivelmente mais como uma força que destitui sentidos do que como criadora de sentidos. Ela dissolve os significados místicos, míticos, lúdicos, poéticos, metafóricos, numa rede e causalidades. "O objetivo da ciência é aniquilar o mundo", uma vez que ela desvela e destrói todas as ilusões que o constituíam. A ciência, com seus objetivos explanatórios e valor de verdade não pode aludir a um sentido para o mundo e seus fenômenos, mas apenas apontar aquilo que em tais tentativas se funda numa ilusão.

A boa consciência com que Weber pôde tomar partido em favor da ciência, mesmo reconhecendo que ela estava entre as maiores forças que levavam ao desencantamento do mundo, deve-se ao fato dele já admitir e mesmo buscar outra espécie e concepção de ciência, diferente daquela criticada abertamente por Nietzsche. Veremos adiante como e o porquê a ciência histórica não pode ser vista apenas como detratora do sentido: ela também constrói sentido. Como veremos, um historiador que imputa um determinado processo de devir como resultado de tais e tais causas, está , por um lado, constituindo um sentido e, por outro, ignorando e "esquecendo" inúmeras outras possibilidades de sentido e perspectivas causais para aquele mesmo processo de devir. Para um ganho maior de clareza, trataremos separadamente o problema da inserção do conceito de sentido no âmbito epistemológico ( I ) e do problema de suas variações axiológicas ( II ).

I –O problema do sentido no âmbito epistemológico.

Ao lado das discussões e inquietações que envolviam as questões sobre o sentido da vida e do universo, havia uma outra tão angustiante quanto: se a história do universo mostrava-se indiferente aos desígnios e anseios humanos, o que, então, dizer a respeito da história da humanidade como parte integrada a esta história do universo? Ao lado da conclusão aterrorizante de que vida e universo são destituídos de sentido, o que dizer a respeito da História, para a qual até então "sabia-se" sempre um sentido e direcionamento definido (fosse por revelação ou por qualquer outra metafísica), e da qual todo um conteúdo de dever e orientação prática da vida era convictamente subtraído?

O que dizer sobre o sentido da História, depois que o domínio da causalidade natural[6] desmistificou o mundo e o cosmos em uma rede contínua de causas e efeitos? De onde tiraria agora o historiador um critério sólido, que se pretende válido, para distinguir aquilo que, dentre a infinitude, é "essencial" e "acidental"?

Essas eram as dificuldades daqueles que na virada para o século XX propunham a árdua tarefa de fundamentação das ciências humanas, em particular da história. Além dessas questões, propriamente internas, Weber tinha ainda que lidar com uma gigantesca bibliografia que, de alguma forma ou outra, já havia assumido como objeto tais tarefas. Dentre tantas correntes que debatiam esse tema, destacava-se a escola neokantiana de Baden, cujos principais representantes eram Windelband e Rickert. Em certos pontos de sua obra, Weber parece se aproximar de algumas concepções de Rickert, talvez mais por com ele compartilhar terminologias específicas e centrais do que por completa identidade de idéias. Isto compõe uma outra dificuldade da obra de Weber: não deixar que o fato dele não ter criado uma terminologia própria para certas questões obscureça as especificidades e diferenças de suas concepções e conceitos. Isso tem de ser observado sobretudo quanto a questão dos valores e de seus estatutos normativos, de que trataremos em outra oportunidade.

Entretanto, há ainda um outro aspecto que toca a teoria do conhecimento e que divide terminologias entre Rickert e Weber. Isso se explica mais pelo contexto e pela tarefa que ambos assumiram, do que, como disse, pela identidade de idéias. Ao querer fazer da história uma ciência, ambos tiveram que enfrentar todo um conteúdo que estava disposto e suposto neste termo – ciência -, todo um conteúdo que dizia respeito ao que vinha a ser ciência e as condições, pois, de a história vir a ser objeto de um enfoque cientifico, isto é, de seus juízos e representações venham a ter um estatuto de validade científica. Isso obviamente implicava a necessidade de um debate com a tradição científica que antes deles já havia se instalado. Como se sabe, tal tradição científica mantinha o eixo de seus propósitos no conceito fundamental de natureza, de modo que ainda soava algo absurdo, ou pelo menos muito controverso, falar de uma ciência da não-natureza, ou de algo heterogêneo à natureza, de uma ciência da vida anímica, do espírito, de uma ciência histórica.

Se, com o próprio Weber lamentou, os argonautas da ciência histórica quase sempre tentaram precisar sua especificidade com relação as ciências da natureza, foi menos por falta de agudeza e originalidade suas excertações, do que por necessidade lógica. Uma classificação das ciências em grupos distintos apenas fez-se necessária e urgente quando diferentes teóricos ousaram transpor a ciência para além dos limites da natureza e da realidade exterior e admitiram a possibilidade de abordar também a "realidade interior" de uma maneira científica. Ao tentá-lo, era impossível escapar a uma comparação oposta com as ciências da natureza. A oposição entre espírito e natureza, portanto, passou a ser mais fundamental do que nunca para o âmbito do conhecimento: era tal oposição que sustentava, pois, a especificidade de dois tipos de conhecimento, dados por dois tipos de objeto essencial e ontologicamente distintos.

Dilthey foi quem nos deu a primeira das mais concisas dessas tentativas. É a ele que devemos o próprio termo "ciências do espírito", foi dele a contribuição decisiva de que, para os fenômenos do espírito, dada a individualidade icônica de suas manifestações, é insuficiente toda explicação causal, de modo que para tais fenômenos demanda-se um processo de compreensão. Apesar da influência de Dilthey e do próprio modo como Weber toma o conceito de compreensão com fundamental às ciências da cultura, as críticas do ultimo sobre o primeiro, de Weber sobre Dilthey, dão às ciências humanas um crédito de validade maior que o proporcionado pela "transposição empática" do historiador.

Nesta parte interessa mostrar como as ciências da cultura, em seu doloroso processo de auto-fundamentação, teve de opor-se às ciências naturais, que naquele tempo era identificada com a Ciência; isso fez com que as ciências humanas iniciassem sua odisséia metodológica a partir de uma oposição fundamental entre natureza e não-natureza, espírito, vida anímica. Mais do que isso, convém apresentar esse tema recorrente na obra de Weber mostrando como ele se desdobra no problema do sentido histórico.

Neste ponto em específico, Weber levou bastante em conta os trabalhos de H. Rickert , não só ao nível das terminologias, como em outros aspectos de sua obra. Essa aproximação em relação a Rickert significava por outro lado num distanciamento em relação a Dilthey. Rickert e Weber abandonam a tentativa de galgar uma fundamentação científica do conhecimento histórico calcada no conceito de Espírito. Para eles, por trás do Espírito, da consciência, subsiste ainda uma esfera mais abrangente, que mesmo condiciona-os e configura-os: a cultura. Rickert foi o primeiro a tratar o problema nestes termos. Ele também reformula o critério a partir do qual, então, dividia-se a ciência em ciências naturais e culturais. Com Rickert, tal critério não residia na qualidade e caráter da matéria ou objeto, mas sim na maneira generalizante ou individualizante com que os cientistas se voltam para a realidade.

A realidade, considerada em si mesma, não conhece tais divisões impostas pelo arbítrio da cognição humana. As especificações ciência cultural e ciência natural não dizem respeito à duas substâncias distintas da realidade – mas a maneiras distintas de se portar diante dela. Eis como Rickert contrapõe ambos os conceitos em seu livro "Ciência Natural e Ciência Cultural" – natureza é aquilo que é produto do não-humano, a totalidade daquilo que independe da criação humana.

"É natureza o conjunto do nascido por si, oriundo de si e entregue a seu próprio crescimento. Em frente está a cultura, seja como o produto produzido diretamente por um homem atuando segundo fins valorados, seja como, se a coisa existe anteriormente, o cultivado intencionalmente por ele, em atenção aos valores que nele residem." (Rickert, pág. 46)

Neste ponto se concentra a centralidade da importância epistemológica da discussão. O objeto fundamental que se contrapõe ao abordado pelas ciências da natureza não mais é o Espírito, ou a consciência ou simplesmente a experiência interna, mas a cultura, que por sua vez se constitui de valores; a natureza é aquilo que começa onde finda a cultura, onde não há valor: tendo isso em vista, o que vem a ser essa diferença intrínseca entre um objeto que porta valor (objetos da cultura) e um objeto que não porta valor (objetos das Ciências naturais)? Adiantemos a resposta: um objeto que não porta valor, que é tratado como "natureza", não pode ser interpretado, porquanto um objeto que porta valor, que é tratado com fenômeno cultural, necessariamente implica uma interpretação, uma apreciação sugerida pelo ponto de vista de um posicionamento valorativo específico.

Com Weber, os valores passam a ser a base de toda interpretação consciente e inconsciente que subsiste nos juízos dos homens. Também o cientista da cultura, o historiador, ao voltar sua atenção aos objetos culturais, age valorativamente, isto é, traça um direcionamento, uma certa deliberação que, dentre a infinitude, decide o que é essencial e o que é acidental. Um valor é um prisma a partir do qual o homem traduz o infinito da realidade em si mesma em algo finito e significativo. Seja a menor porção do devir histórico que venhamos a considerar, não se pode pensar num significado para ele que não considere um respectivo julgamento de valor. Assim como a ação de um determinado agente histórico está impregnada por interpretações de valor e orientada por valores, também o historiador, quando volta sua atenção e busca uma explicação com sentido para aquele processo de devir, está a orientar-se por valores, o que pressupõe sempre um ponto de vista de apreciação a partir do qual tal processo de devir é apresentado e compreendido.

É difícil distinguir, quanto à classificação das ciências, diferenças claras entre Weber e Rickert. Suas discordâncias essenciais consistem quanto ao estatuto dos valores e quanto ao caráter da cultura. Entretanto, Weber, toma certas concepções de Rickert e as aprofunda. A primeira e principal delas é a de que o que marca as fronteiras entre as distintas ciências não são diferenças substantivas, concernentes aos seus respectivos objetos, mas diferenças formais que se concentram no posicionamento do cientista ao iniciar sua inquirição. Tanto para Rickert quanto par Weber, a realidade empírica, considerada por si, é uma só e "intensivamente infinita" mesmo no menor de seus segmentos. Isso quer dizer em primeiro lugar que, para ambos, todo processo de conhecimento e de produção do conhecimento começa por uma redução da infinitude incompreensível da realidade em si a um segmento finito, recortado e modelado, organizado, tornado assimilável e, de alguma forma, significativo, destacável para nossa cognição e percepção. Isso quer dizer, portanto, que os resultados da inquirição científica, que são apresentados como descrição ou explicação de determinados segmentos da realidade empírica, são frutos não de uma reprodução dessa mesma realidade, mas da postura individualizante ou generalizante daquele que a formata, o cientista.

O que, pois, distingue natureza de cultura? Já vimos a resposta de Rickert com a citação anterior. Quanto a Weber, neste ponto, podemos dizer que em parte ele concorda com Rickert e em parte não. Segundo Weber, a distinção entre natureza e cultura também era fundamental à epistemologia científica e deveria suplantar a oposição entre Espírito e Natureza. A diferença básica entre ambos consiste no fato de que para Weber a natureza não corresponde exatamente ao domínio do não-humano, como pensou Rickert, mas especificamente ao domínio do sem-sentido, da ausência de sentido e significado. Este é um aspecto da visão trágica de mundo observada na obra de Weber por alguns autores, refletida em suas posições epistemológicas. Weber estende o domínio da irracionalidade, da ausência de sentido, como produtos do que é humano. Isso quer dizer, então, que mesmo a natureza, a compreensão e apreensão que dela podemos ter, está submetida pela cultura, por um viés cultural sem o qual não poderíamos considerá-la. Isso de alguma forma o próprio Rickert indiretamente chegou a admitir:

"As palavras natureza e cultura não são unívocas, e particularmente o conceito de natureza se determina sempre, em primeiro termo, pelo conceito ao qual se opõe" (Rickert, 1965: pág. 46)

Assim, também Rickert admite não ser possível compreender conceitualmente a natureza sem a pressuposição de um outro conceito que lhe é antagônico. Diferentemente de Weber, entretanto, para Rickert, a distinção lógica entre os conceitos de natureza e cultura expressa essa mesma distinção na realidade concreta, como se o domínio da natureza estivesse separado da cultura e vice-versa, dado o caráter humano, valorado das intenções humanas, ou não-humano, que existe independentemente dos anseios e valores dos homens. Para Weber, ao contrário, na realidade do agir concreto, aquilo que é natureza e aquilo que é cultura estão caoticamente misturados, confundidos. Apenas o afastamento lógico e contemplativo do cientista é que permite que, nas palavras de Weber, distingue-se o que tem sentido daquilo que não o tem:

"Ao se fazer mentalmente a separação entre o sentido que encontramos como sendo expresso num objeto ou num processo e as partes constitutivas dele, que ficam sobrando, se se faz uma abstração daquele sentido e se se denomina aquilo que apenas se dirige e se interessa por essa últimas partes mencionadas, consegue-se elaborar um novo conceito de natureza : significa aquilo que não tem sentido ou aquilo pelo qual não se pergunta por seu sentido" (Weber...)

Essa diferença entre Weber e Rickert se desdobra numa outra. Ao distinguir conceitualmente os domínios da natureza e da cultura, Rickert defendia também uma metodologia específica para cada qual. Ao estudo da natureza, dizia ele, interessava o conhecimento de processos repetíveis a serem retificadas pela experiência, cabendo à ciência da natureza um método generalizante; os fenômenos culturais, por sua vez, apresentam-se à maneira de um devir contínuo e absolutamente irrepetível, heterogêneo, os quais interessa-se em conhecê-los em sua individualidade icônica (com relação a valores), cabendo-lhe um método individualizante, o método histórico.

A originalidade de Weber em relação a esse tema consiste em não absolutizar nenhuma das posturas metodológicas para a fundamentação de uma ciência da cultura e seu respectivo modo histórico de proceder.Para ele, a causalidade histórica, os nexos de motivação que levam de um evento a outro, deve ter não a forma de uma generalização conceitual, nem tampouco a forma de uma descrição exaustiva das chamadas especificidades individuais, mas deve vir a ser apresentada como uma "imputação". O método histórico, ao lidar com acontecimentos que portam sentido e significado, carecia de um novo modelo de inquirição, que ultrapassasse a insuficiência já testada da dedução, tanto quanto da indução: a imputação causal foi a solução de Weber para tal problema. Seria preciso outra oportunidade para tratar-mos da imputação causal como um novo modelo de inquirição científica. Nesta parte interessou mostrar como a classificação das ciências a partir da oposição entre natureza e cultura distinguiu formalmente entre dois tipos de objetos: os que têm significado e os que não têm significado. O mérito de Rickert consistiu em evidenciar como à cognição humana é dada uma matéria informe que a ciência elabora e constrói conforme a natureza da elaboração a que essa matéria é submetida. A elaboração característica das ciências da natureza consiste em considerar os caracteres gerais dos fenômenos ou estabelecer ou estabelecer relações regulares ou necessárias entre eles. A elaboração característica das ciências da cultura aplica uma seleção à matéria relacionando-a a valores.

Weber pôde partir daí. A diferença básica é que na metodologia das ciências culturais de Weber a generalização conceitual, típica das ciências naturais, não deixa de ter um certo valor, agora não mais como o fim e o objetivo da investigação científica, mas apenas como um meio e ferramenta heurística que auxilia a compreensão do devir real em partes significativas.

Eis, portanto, o problema do sentido histórico; ao finalmente concordar com a distinção epistemológica dos objetos, os teóricos das ciências culturais tinham que lidar com um inaudito problema: eles já haviam concordado que a presença de um elemento significativo distingue o domínio cultural do domínio natural. Porque existe no domínio cultural algo que está ausente no domínio natural – sentido -, o estudo dos fenômenos culturais requer ferramentas metodológicas não-requeridas pelas ciências naturais. A constituição de um modelo de inquirição científica que desse conta de compreender e explicar uma realidade significativa tornou-se o desafio comum aos vários teóricos das ciências culturais; desafio este que suscitava tentativas e resultados distintos, o que, assim, não retirava ao sentido histórico o estatuto de problema central destas ciências.

O problema do sentido/significado manifestava-se, pois, em várias instâncias da operação científica. Ao fixar um sentido para um acontecimento do passado, ao dar-mo-lhes um significado, estamos indiretamente a determinar e reduzir o presente, que em si é potência ilimitada de realização, como consecução deste passado. Ao significar o passado e oferecer a ele um sentido, uma perspectiva causal que desvele mecanismos que levam de um evento a outro, o cientista da cultura também significa seu presente (uma vez que esse presente é sempre ápice e consecução daquele passado). A significação do objeto depende da significação do sujeito, e vice-versa. Vejamos, pois, como Weber oferece uma alternativa metodológica para tal problema.

II – As variações axiológicas dos sentidos.

O que vem a empreender o historiador quando este recorta e designa seu objeto? Ao fazê-lo, ele está operando uma dissociação entre o seu presente que está a passar e o passado do qual é fruto e ao qual se dirige; essa dissociação, deve-se saber, tem graves implicações epistemológicas, além de, a princípio, só se realizar enquanto abstração, nunca como situação de fato: o historiador não pode deixar de viver a história enquanto tenta analisa-la. A existência temporal do homem implica numa impotência para apontar limites onde termine o passado e comece o presente ou onde comece o passado e termine o presente.

Certo é que, como seres submetidos a um "fluir temporal em direção à eternidade", estamos aquém de poder viver outra realidade senão a do presente que se esgota e constantemente acumula-se como passado. Isso faz com que qualquer representação do que foi o passado, necessariamente tenha que ser remetida de um presente cujas condições e interesses de interpretação constantemente se alteram. Por outro lado, sabe-se que este presente que está a passar poderia ser diferente se aquele passado que tentamos representar também o tivesse sido. Nessas condições, o que significa, pois, dar sentido à história?

A princípio, pode-se dizer que significa designar o presente, isto é, oferecer uma perspectiva de desenrolar dos eventos da qual o presente seja seu ápice e continuação, seu fruto e herdeiro determinado. Quando o historiador infunde um sentido aos acontecimentos do passado, ele não pode fazê-lo senão de uma perspectiva que os coloque como parte de um processo que dali por diante continua indefinidamente e que, como tal, atua como causa determinante de eventos posteriores a aquele. O presente do qual parte qualquer ator, e também portanto o presente do historiador, não pode ser outro que não conseqüência de um passado que, por só podermos recortar segmentos finitos de sua infinitude, aparece para nós em sentidos distintos. Na infinitude da realidade histórica, aquilo que é significativo só o é com relação a um presente que a ela se remete.

A implicação mais óbvia deste procedimento é também a mais importante: ao atribuir um sentido para o desenrolar dos acontecimentos históricos o historiador opera uma dupla redução: reduz o potencial infinito de realização que constitui o presente a um "momento causalmente determinado", isto é, a um momento que não pode fugir ou se afastar do processo do qual ele é o ápice de seu desenvolvimento; reduz, por outro lado, tudo que fora vivido no passado a aquilo que é significativo para um presente em que se vive, em que vive o historiador.

Quando este decide por representar um determinado processo do devir histórico ele deve estar cônscio dos pressupostos que requerem essa sua ação. O primeiro e mais fundamental deles consiste no seguinte: se o passado, a realidade histórica e empírica, mesmo no menor de seus fragmentos é impassível de ser descrito exaustivamente em seus aspectos individuais, isto é, se ele se compreende como uma "infinitude intensiva"[7] que caracteriza toda "variedade empiricamente dada", é não apenas impossível como também não-querido a representação deste passado a partir de uma perspectiva unívoca, .que sugerisse um observador colocado em um ponto de vista/apreciação incondicionado.

O conhecimento, pois, não é algo que subsiste num reino heterogêneo a este mundo e espera por nós ser alcançado. As possibilidades de conhecer estão implicadas na existência social e cultural daquele que conhece. Aquele que conhece, o sujeito cognoscente, o historiador, tem por trás de si, como fundamentos últimos de sua orientação e de sua ação consciente e inconsciente no mundo, todo um contexto de situações nas quais ele está imerso, que vão desde sua "luta" pela existência aos valores os quais ele pode servir; estes dois pressupostos do conhecimento histórico obrigam-no a: a) contar com a atribuição de sentidos que conformam os mesmos acontecimentos do passado; b) a impossibilidade de um conhecimento desinteressado; e c) na necessidade de apreciações de valor para que algo, em meio à infinitude do "acontecimento mundo", passe a ser significativo.

a)Admitida a premissa de que toda representação do passado é produzida a partir de um presente que devém, de sua atualidade irrestrita, fica óbvia a conclusão de que os objetos do passado, necessariamente, acabem por receber sentidos distintos e variados, uma vez que aquilo que se "pode saber" sobre eles tem como condição elementos deste presente que se desvanece e do qual, consciente ou não, participa o historiador (e participa, ainda, sempre de uma maneira interessada, como veremos em "b"). Uma questão mais apropriada que pode ser colocada aqui é em que medida essa peculiaridade, que envolve a relação do historiador com seu objeto, vem a ser tanto a fonte de seus problemas como o arcabouço de sua eterna riqueza, sua "eterna juventude".

A partir do momento em que definimos que a realidade empírica, mesmo na menor porção escolhida, padece de uma infinitude e uma inesgotabilidade intrínsecas e, mesmo assim, apesar disso optamos por ousar uma compreensão e uma explicação seqüencial dos eventos históricos, temos de nos conformar e assumir que os objetos históricos jamais poderão sofrer os mesmos recortes, ter os mesmos limites, situar-se entre as mesmas variáveis consideradas. Cada contexto de valores e luta dos mais diversos interesses em que situa-se e liga-se o entendimento do historiador, exige e pregara novos problemas, tanto quanto permite e possibilita que elementos que eram inauditos para os valores e interesses de conhecimento de outros contextos de produção, sejam então desvelados.

Essa tensão entre o conhecimento, o processo de produção do conhecimento, e a vida prática e atual daquele que o produz, pode ser apreciada em praticamente toda a obra de Weber. É a ela, ou melhor, à sua implicação, que Merleau-Ponty, em seu ensaio sobre Weber, se refere ao nos dizer:

os problemas da cultura que comovem os homens são postos sempre de novo e sob outros aspectos e, assim , permanece variável aquilo que, na corrente infinita do individual, recebe sentido e significação para nós, tornando-se um indivíduo histórico, como também são variáveis as relações de pensamento sob as quais o objeto de ciência é posto e considerado. (Merleau-Ponty, 2006: pág. 22)

Sim, temos de nos conformar à situação de que, ao se penetrar no domínio da história, algo que pareça tão sólido se desmanche no ar. Eis o porquê de tantas "Idades Médias", tantas "Revoluções Francesas", tantos "golpes militares de 64", a despeito de todo o rigor científico com que possam ter se constituído. Ao admitirmos várias histórias para séries de processos a que damos um mesmo nome, por exemplo, "ditadura militar de 64", não se está admitindo que haja uma imputação subjetiva das causas que são determinantes naquele processo:

Subjetiva, [...] não é a constatação das 'causas' históricas de um 'objeto' de explicação dado, mas a delimitação de 'objeto' histórico mesmo, de 'indivíduo' mesmo, pois aqui decidem relações de valor cuja concepção está submetida à mudança histórica (Weber, 2001: pág. 189)

Todo momento histórico do devir pode ser visto tanto como causa de um evento posterior como resultado e efeito de um anterior. Todo objeto histórico, por sua vez, inclui, consciente ou inconscientemente, uma escolha daquilo que será observado como resultado (objeto primário), por um lado, e daquilo então que lhe resta como suas causas, que por sua vez são também "fatos históricos". A subjetividade dos objetos e das individualidades históricas não implica na subjetividade de suas causas. Escolhe-se, pois, o objeto, o indivíduo histórico, e não suas causas. Nesse aspecto de sua problemática, a ciência histórica carece de uma...

[...] diferenciação lógica entre o objeto histórico 'primário', ou seja, aquele indivíduo de cultura 'avaliado' sobre o qual recai o interesse para 'explicação' do seu 'resultado do devir', e os fatos históricos 'secundários', ou seja, as causas às quais é imputada a especificidade 'avaliada' daquele 'indivíduo' num regresso causal. (Weber, 2001: pág. 189)

Cada momento do devir poderia ter sido outro, mas não o foi: pode-se, pois, procurar identificar motivos, condições, circunstâncias fatos e valores que podem ser interpretados como causas necessárias no sentido de que sem elas aquele referido acontecimento seria outro e não "aquele". Como explicar, então, que haja na historiografia tantas versões explicativas para eventos designados com o mesmo nome? É que muitas daquelas infinitas causas que calharam em acontecimentos como "revolução francesa", "ditadura militar de 64", etc., apenas paulatinamente podem ser desveladas (e, é óbvio, nunca em sua totalidade), uma vez que o processo que permite o conhecimento dessas causas como algo significativo para a constituição do referido evento depende de valores, de perspectivas de apreciação que estão constantemente a se alterar e possibilitar, assim, novas séries causais percebidas.

Assim, em razão da própria relação que o entendimento do historiador estabelece com a realidade histórica, ele tem como possibilidade de abarcar os fenômenos históricos, com os quais amiúde se confunde, não quanto às suas estruturas internas, substanciais, mas apenas a partir de perspectivas fundadas a partir de um contexto cultural fluído, dinâmico, que delimita os interesses, conscientes e inconscientes, que levam o historiador a querer conhecer determinadas partes do processo e não outras. Se, enquanto historiadores, temos um modelo de inquirição científica que começa com uma retrospecção (isto é, que tem como condição o fato de que a atenção e o entendimento do historiador necessariamente partem de um presente que constantemente deixa de ser, em direção a um passado que se prolonga indefinidamente); e que todo juízo retrospectivo parte de um presente em devir, de um agora que constantemente deixa de ser; logo, o passado está implicado nessas duas premissas como uma dimensão que também devém, na medida em que sua representação sempre e necessariamente tem de acompanhar o espectro do olhar e das inquietações daqueles que "agora", no contexto de produção do conhecimento, deixam de ser.

b)O que seria, então, os critérios a partir dos quais o historiador ousa seccionar um devir que, considerado em "si - mesmo", nunca fez pausas? O que lhe permite, pois, retroceder ao passado e retirar-lhe de sua infinitude, intensiva e abrangente, indivíduos históricos? O historiador não pode escapar à própria atualidade de seu presente ao fazer história, isso já o dissemos. Também já o dissemos como a ação do historiador ao fazer história, como todas as outras ações que ele mesmo busca compreender, é um produto histórico, isto é, referida ao comportamento de outros e, nesse sentido, pode ser compreendida como resultado da interação que o historiador mantém com o contexto em que vive e do qual faz parte. Pois bem, o critério a partir do qual o historiador secciona a heterogeneidade contínua do devir e lhe recorta um conjunto organizado, selecionado, artificial, a que trata e dá nome como "individualidade histórica", depende substantivamente dos interesses valorativamente fundados que orientam o historiador nessa sua ação: fazer história.

A história, enquanto representação, não é algo que se oferece ao investigador; é preciso, pois, que alguém queira representar o passado. Na medida em que descobrimos ser impossível representar o passado tal como ele foi, além da crucial pergunta que procura pelo porquê querer representar o passado, surge uma outra: ao representar o passado, o que leva o historiador a representar aquela(s) parte(s) determinada(s) e não outra(s)? Quais são, pois, os critérios últimos que permitem com que ele seccione o devir em partes significativas e partes não-significativas? Será que o historiador está cônscio de que sua representação do passado pode sempre ser outra sem que o passado mesmo o seja?

Uma coisa é fato: enquanto os interesses de conhecimento, respaldados em valores, não forem assumidos como condição do conhecimento histórico, eles permanecerão inconscientes, intraduzíveis para a reflexão analítica; permanecerão atuando sem serem percebidos; nessa medida, os acontecimentos históricos representados serão, assim, mais facilmente confundíveis com a realidade histórica substantiva, uma vez que não se deu conta do aspecto "qualitativo" desta mesma realidade, o que por sua vez consiste no fato dela só ser apreensível a partir de posicionamentos valorativos, cultural e socialmente situados, referidos.

A realidade histórica, enfim, não se manifesta a nós de uma forma "emanativa", por uma continuidade absolutamente fluída entre causa e efeito, mas de uma forma pictória, pontual, representacional, que retoma a dimensão do passado de um ponto específico no futuro e que está prestes a tornar-se passado, a dar lugar a novos pontos e focos de luz que poderão vir a iluminar em partes distintas as mesmas épocas e contextos. A realidade histórica, pois, não se manifesta a nós de maneira independente da existência social e cultural a que estamos submetidos. Cada momento que passa pode sugerir outros novos valores, outras novas perspectivas de apreciação a partir das quais aquilo que é "essencial" e aquilo que é "secundário" sejam individualizados e subtraídos da corrente infinita da cultura. Quando mudam aquilo para que se conhece, muda também aquilo o que se conhece; uma transformação em nossos interesses de conhecimento, implicam em outras interpretações sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo passado, uma vez que se o conjuga a outros fatores e variáveis:

Pois tanto a prostituição como a religião ou o dinheiro são fenômenos culturais. E todos os três o são, única e exclusivamente, enquanto a sua existência e a força que historicamente adotam correspondem, direta ou indiretamente, aos nossos interesses culturais, enquanto animam nosso desejo de conhecimento a partir de pontos de vista derivados de idéias de valor, as quais tornam significativas para nós o fragmento da realidade expresso naqueles conceitos. (Weber, 2001: pág. 131)

O historiador, como alguém que age ao fazer história, situa-se e toma posição frente à infinitude do acontecimento-mundo, refere sua ação a um contexto contingente no qual luta, vive, domina e é dominado, sofre e faz sofrer. É daí, pois, que os interesses do historiador são extraídos e é nesse contexto que eles têm sentido.

Pode-se dizer, pois, que o conjunto dos interesses que norteiam a condução da inquirição científica compõe o pressuposto extra-científico e supra-racional das ciências culturais. A ciência, como tal, não tem habilidade para escolher entre diferentes valores: esta escolha, pois, é sempre feita extra-cientificamente; a ciência, a inquirição científica apenas pode começar depois de supor tais interesses de valor que, extra-cientificamente, delimitam as possibilidades de abordagem do objeto mesmo. Do mesmo modo, suas conclusões sobre os mesmos necessariamente têm sempre de ser parciais e, mesmo assim, só deveriam ser encaminhadas após essa escolha extra-científica que condiciona o empreendimento científico fosse elevada ao status reflexivo, de modo a explicitar a origem e a razão desses interesses, a história que os tornam importantes, significativos.

Assim, tendo em vista o que foi dito, parece tolice apresentar os interesses de valor como aquilo que inviabiliza uma "cientificidade". Esse tipo de cientificidade que exige um conhecimento desinteressado, uma "pureza" para a ciência, tem bem a sua história e sabemos hoje o custo desses ideais. Os interesses de valor, então, não são o sintoma de uma falsa ciência, mas as condições e pressupostos necessários para que possamos recortar o devir em unidades qualitativamente inteligíveis, isto é, a única via através da qual podemos considerar a realidade empírica a partir da organização de indivíduos históricos: os interesses de valor, pois, são a condição para que possa haver algo como um objeto científico mesmo.

Pois o número e a natureza das causas que determinam qualquer acontecimento individual são sempre infinitos, e não existe nas próprias coisas critério algum que permite escolher dentre elas uma fração que possa entrar isoladamente em consideração. A tentativa de um conhecimento da realidade 'livre de pressupostos' só conseguiria trazer um caos de 'juízos existenciais' acerca de inúmeras concepções ou percepções particulares [...] Portanto, só alguns aspectos do fenômeno [...] merecem ser conhecidos, pois apenas eles são objeto de explicação causal" (Weber, 2001: pág. 129)

A ciência histórica, quando praticada desconsiderando os interesses que a condicionam, como se ela inaugurasse uma perspectiva incondicionada, pura, de um ponto de apreciação descolado da totalidade caótica dos eventos, empresta à história um sentido único, monolítico, como constituição do movimento que vai das causas aos efeitos. Esse tipo de concepção de história, por conseguinte, calha num esquecimento deliberado de outras fases e aspectos, outros sentidos e nexos causais que estiveram presentes no devir e poderiam ser percebidos como significativos se o entendimento histórico não tornasse e não quisesse absoluta essa sua postura contemplativa.

c)Como tal, esse mesmo posicionamento em relação às ordens do mundo e da vida histórica e social é o que permite que, do infinito da realidade empírica, sejam eleitas partes significativas e desconsideradas partes sem significado. Aquilo que, da infinitude, depreende-se como significativo, só o é, só o pode ser com referência a tais posicionamentos, de modo que inexiste significação histórica sem tomada de posição valorativa, sem inserção num contexto fluído e contingente de acontecimentos que delimitam e prescrevem aquilo que, para determinada posição de valor é "importante", "essencial", e aquilo que não o é:

A premissa transcendental de qualquer ciência da cultura reside não no fato de considerarmos valiosa uma 'cultura' determinada, mas na circunstância de sermos homens de cultura, dotados da capacidade e da vontade de assumirmos uma posição consciente em face do mundo e de lhe conferirmos um sentido. (Weber, 2001: pág.131)

Aqui, pois, voltamos à parte introdutória deste artigo, para reforçá-la: sentido é a origem tanto da realidade empírica estudada pelo historiador, quanto o motivo pelo qual se inicia o estudo da realidade empírica. Ao dirigir-se o passado, como vimos, o historiador necessariamente tem que constituir um sentido para que tal passado seja entendido como acontecimento que causalmente atuou no devir; ele tem de construir uma perspectiva a qual reúna os elementos empíricos – que, no caso da ciência histórica, são as ações dos indivíduos e os sentidos que elas expressam – numa unidade inteligível que expressa um processo, uma representação que busca expressar as mudanças históricas nos termos de suas "causas". Não há, enfim, como o historiador destacar da totalidade, identificar e reunir coerentemente elementos numa unidade percebida como "acontecimento histórico" sem lhe infundir um sentido; a realidade empírica, por sua vez, constitui-se pelos sentidos que os agentes históricos depositam em sua ação.

Assim, na medida em que a constituição de um sentido histórico depende, portanto, dos interesses e posições de valor que o historiador mantém com o seu presente e contexto, sabe-se que, com isso, aquilo que ocorreu no passado e veio a tornar-se significativo tem que necessariamente remeter-se a uma outra história: a história do presente que possibilitou aquela significação do passado.

O presente que transcorre e constantemente acumula-se como passado, para tornar-se objeto do historiador, tem de estar relacionado a valores que fazem parte do contexto em que ele atua para poder ser percebido com algo que aconteceu, como algo que aconteceu "assim" e não de "outro modo". Como toda possibilidade de individualização da realidade histórica (de sua redução, pois) concentra-se no relacionar-se da realidade empírica com valores, de modo que adentramos imediatamente no domínio da realidade histórica assim que relacionamos a realidade empírica a valores, toda representação do passado só se configura como correlativa de um presente que devém, que constantemente deixa de ser; nesse termo, mostra-se inóspita à ciência histórica uma filosofia da história que postula uma "unicidade qualitativa do processo histórico e cósmico que percorre o tempo e a particularidade qualitativa de todo segmento espaço-temporal." (Weber, 2001: pág., 98)

Para Weber, uma filosofia da História assim considerada cometeria o grave erro de não perceber que, se ausentasse-mos de nossos valores, se pudéssemos fazê-lo, teríamos nada mais que algo "eternamente igual a si mesmo" (Weber, 2001, pág. 98º), e nem de longe poderíamos conceber algo como uma relação dinâmica entre presente, passado e futuro. Uma filosofia da História que não eleve os valores com os quais o entendimento dirige-se a realidade, ao nível da reflexão, trar-nos-ia o grave prejuízo de não mais podermos ter nenhuma compreensão causal dos acontecimentos históricos, uma vez que inseridos num processo cósmico global e único que se prolonga infinita e indefinidamente, se dissolveria por completa a idéia de "ser causado" (Weber, 2001: pág. 99)

A história, pois, não pode transcorrer como um desenrolar contínuo e total que percorre cada instante individual que é sua parte; ela transcorre ao mesmo tempo em que retrocede: o presente do qual parte os historiadores constantemente transforma-se no passado; este, por sua vez, já passou e, embora não se possa fugir a tal necessidade, resta sempre a possibilidade de que um presente retroceda a ele como sua "causa", que ele seja novamente posto como causalmente significativo para eventos futuros, o que implica, pois, a re-elaboração contínuadeste mesmo passado. Em meio ao devir histórico, aquilo que nos aparece como significativo, como "cultura", depende de valores, de modo que o passado mesmo está sujeito à variação das significações, à variação dos sentidos. A variação dos sentidos históricos, por sua vez, está sempre submetida a perspectivas axiológicas que lutam entre si na existência e no contexto do qual faz parte aquele que infunde e projeta um sentido aos acontecimentos históricos:

A realidade empírica é cultura para nós porque e na medida em que a relacionamos com idéias de valor. Ela abrange aqueles e somente aqueles componentes da realidade que através desta relação tornam-se significativos para nós, precisamente porque revela relações tornadas importantes graças à sua vinculação a idéias de valor. (Weber, 2001: pág. 127)

Ao alterarem-se os valores com os quais relacionamo-nos com a realidade empírica, altera-se também aquilo que nela ganha importância e, nessa medida, significação para nós. Pois bem, ao conceber o passado, o historiador tem que necessariamente reduzir suas dimensões a partir do relacionamento com valores; todavia, este passado está sempre sujeito a ser observado por outras vias de acesso, com relação a outros valores e acontecimentos: a causalidade histórica, assim, tem seu domínio sobre a realidade sempre em aberto, como disse, de um modo sempre pictório, por pontos no passado iluminados e desvelados sempre posteriormente ao seu acontecimento, com vistas a um presente que se dissolve na malha do devir do qual aquele passado pontualmente iluminado já é parte. Sempre, pois, que a afirmação de algo que "foi causado" e "aconteceu" no passado, corresponderá à indicação de que algo acontece agora, no presente em que aquele juízo causal foi emitido:

E se quisermos 'salvar' o sentido da categoria da causalidade, levando em consideração a infinitude abrangente do devir concreto, nos resta a idéia de 'ser causado', no sentido de que, em cada diferencial temporal, o 'novo' 'deve' aparecer do modo como aconteceu no passado, o que, entretanto, não é outra coisa que a indicação do fato de que algo 'aconteceu' neste momento, no 'agora', portanto, em absoluta singularidade, mas dentro de uma certa continuidade do devir. (Weber. 2001, pág. 99)

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Autor: Ulisses do Valle


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