BRAÇO D’ÁGUA



                                     BRAÇO D’ÁGUA

 

Quando fui parar nesta aventura do Rio Madeira não tinha a menor idéia do que estava indo fazer lá. Só sei que de todas as experiências que lá acumulei, serviram para que eu me tornasse melhor. Porém, antes de dar a conclusão aos episódios, quero relatar dois fatos de benevolência do mundo enteal e Elemental.

Era uma noite normal no Rio Madeira. O barulho ensurdecedor dos motores, como sempre já era costume a nossa audição, fato tão incrível que se caísse uma chave no chão, perceberíamos de imediato o diferente som.

Eu havia encerrado o meu horário de trabalho de 8 horas consecutivas no comando da draga Escariante. Passei o comando para outro colega e fui para meus aposentos na draga. Adormeci profundamente. Já fazia algum tempo que estava ressonando quando tive um sonho muito diferente. Era como se uma coluna de água densa e espessa saísse de dentro do rio em forma de um monte d’água do tamanho de um homem e entrasse em nosso dormitório. Eu estava num estado de sono profundo, oscilando entre o real e o irreal, lembro-me de ter aberto os olhos e vendo aquela forma tão diferente fiquei quieto e extremamente calmo. Esta forte presença não me trouxe medo. Foi quando percebi que dentro deste ser de água emanava uma energia rubi e uma voz mental me disse: “Eu sou o rio e tudo que há, e sempre haverá nesta dimensão aquática sob minha égide, depende de minha permissão. Permito aos pescadores que pesquem para o seu sustento, ao lenhador entrego as árvores de meu leito para fazerem suas moradas e aquecer seu fogo. A todos os seres permito que se banhem em minhas águas. De vez em quando entrego minhas riquezas para que o homem leve-as inconscientemente ao mundo onde em uma hora ou outra, cairá em mãos certas. Enfim, como eu, existem muitos. Cada rio, cada lago, cada mar, cada oceano tem nossa presença, ordenação, proteção, interferência; por isso lhe digo já salvei sua vida por duas vezes e não haverá uma terceira. O que você veio buscar aqui e está levando mesmo sem saber no passar dos anos irá ser derramado como forma de conhecimento, experiência e respeito. Vá em paz! E cumpra o seu destino”. Neste momento como se tomado por um susto acordei e nossa draga teve um violento sacolejar que me acordou e assustou a todos. O que me chamou atenção é que todo o chão estava molhado, como se alguém tivesse atirado um balde d’água ou uma grande onda tivesse nos atingido.

Diante desses acontecimentos, confesso que é muito mais fácil para o ser humano pensar mesmo vivenciando tais fatos, de que as coisas não aconteceram de fato. Assim segue-se a vida rotineira (aquilo que pensamos ser normal), os meus ensinamentos físicos e herméticos que a falange dos arcanjos e anjos vinha me elucidando não estavam nem perto de começar. Lembro-me de ter acordado no outro dia bem cedo, rindo sozinho do meu sonho, quando de repente recordei-me de que antes de acordar ter parecido ver um ser de grande formosura angelical e com emanações de poder indescritíveis. Numa mão trazia uma balança, equilibrada pelo peso de dois mundos. Na outra, uma espada flamejante. Foram rápidos, mas profundos segundos que marcaram essa impressão mental. Havíamos acabado de tomar café e estávamos terminando a apuração de uma “mandada” (retirar o ouro acumulado nos tapetes das caixas da draga).

E como de hábito uma lancha ancorou em nossa draga, pediu licença e foi dar uma “cuiada” em nossa caixa de extração. (cuia recipiente de aço onde se absorve água e material que com movimentos giratórios consegue-se ver o número de fagulhas de ouro que está sendo absorvido pela dragagem).

Eram quatro tripulantes aparentemente bem comuns com exceção de um baixinho sorridente que foi o último a entrar. Chamava-nos a atenção os colares e guias coloridas de miçangas que ambos usavam. Sorridentes e alegres começamos a dialogar. De repente, o baixinho olhou para meu pescoço e pediu para olhar um medalhão que eu estava usando. Mostrei-lhe e expliquei que tinha ganhado de minha avó. Ele sutilmente disse: “Muito bem, Alexandre. Na nossa religião deste lado do medalhão está Xangô, o velho; e do outro, a poderosa Yemanjá”. Eu não tinha muito conhecimento sobre este assunto e não quis discutir, pois para mim era a imagem de um São Jerônimo e uma Nossa Senhora.

No momento de sua partida ele virou-se para trás e nos disse: “Vamos dar uma festa hoje à noite. Você está convidado”. Agradeci o convite e expliquei-lhe que não tinha como ir, pois não estava acostumado a navegar a noite. Entraram sorrindo em sua lancha e já partindo gritou: “Viremos buscá-lo mais tarde”. Não levamos a sério e já estávamos de partida para tentar a sorte em outro ponto do rio. Subimos 6 km rio acima e ancoramos ao lado de uma enorme “fofoca” (junção de várias dragas e balsas, todas ancoradas e emaranhadas em algum ponto do rio). Nesta “fofoca” deveria haver cerca de 300 dragas. Caiu à noite, e exausto fui dormir quando estava entrando em sono profundo fui acordado por um colega que estava branco como cera e trêmulo que me falou: “Olha, eu não sei o que tu fizeste, mas tem uns 12 caras armados atrás de ti”.

Nisto olhei pela fresta da parede de meu quarto e vi vários indivíduos vestidos com botas e enormes chapéus em suas cabeças e fortemente armados. (Hábito muito comum no garimpo).

Não deu nem tempo de me assustar quando o mais alto disse em tom cavernoso: “Diz que foi o Pai Beto que mandou busca ele”. Não me restando nenhuma alternativa a não ser acompanhá-los. Quis ir na minha lancha, porém não houve concordância, então me submeti a ir com eles numa embarcação que para mim já estava afundada, cheia de água e com 12 homens dentro.

Quando percebi que se tratava de dragueiros e garimpeiros fiquei mais calmo. Dirigimo-nos à Cachoeira do Simãozinho (uma das varias cachoeiras do rio madeira. Quando faltavam 100 metros para chegar aportamos em um banco de areia que se forma de acordo com a maré no leito do rio (pequenas ilhas que aparecem geralmente à noite). Junto à fogueira havia um homem esbravejando e gritando com outro. Logo percebi que se tratava do pequeno Pai Beto (um babalorixa de Rondônia, Brasil). Ele veio em nossa direção com grande velocidade e fúria e um deles me disse: “Cuidado que ele está em estado de transe e incorporado”. Nisto o pequeno homem lançou-se na escuridão da madrugada, atirou-se no rio e a nado foi em direção da Cachoeira. Até a metade do rio e praticamente à beira da grande cachoeira e voltou nadando o que já me deixou impressionado, pois a velocidade da água e o volume de sua vazão são enormes naquele ponto do rio. De todos os garimpeiros que conheci, nenhum iria a tal parte do rio sem uma boa lancha com potente motor. Quando este pequeno homem saiu da água e retornou a beira do rio, vindo em nossa direção parou em frente de um de seus asseclas, diga-se de passagem, um homem com o dobro do meu tamanho e pegando-o apenas com a mão o seu queixo, ergueu acima de sua cabeça, deu uma grande gargalhada e soltou-o. Dirigiu-se para a fogueira e de lá voltou totalmente transfigurado. Aquele homem rude que havia se apresentado, já não existia mais. Agora em estado de extrema humildade e candura dizia estar incorporado com o espírito de um caboclo que há muito tempo habitara aquelas matas e disse: “Vamos formar um círculo, a rodinha dos imprestáveis (falando com estrema sutileza e doçura) e respondendo a pergunta de vários, ele alertou os garimpeiros e dragueiros ali presentes dizendo:” Olha, o rio tem alma e vida, o rio ta brabo, tem muito sangue em suas águas (referindo-se ao grande número de mortes e assassinatos que estavam acontecendo). Vocês procurem outro lugar para garimpar, pois o rio vai esconder ouro por um bom tempo. Então, olhando para mim, dirigiu-se lentamente, com os olhos cheios de lágrimas e humildade; balançando sua cabeça me disse: ”Moço o Senhor Já sofreu tanto na vida, mas a culpa não é sua não. O Senhor É médium e quem não dança na roda, dança na vida. Ah moço, o Senhor Não precisa mais voltar para o sul. O Senhor Já perdeu tudo o que tinha lá, o Senhor Só encontrará dor e traição”.

 Logo fomos embora e dormi o resto da madrugada, pois no outro dia eu e o proprietário da draga, conhecido como “Goiano” tínhamos de descer a cachoeira submersa do tamborete para trazer na lancha diesel para os motores e lá fomos nós.

 Estas cachoeiras têm lugares certos para serem transpassadas. De um ponto mais alto para um ponto mais baixo e vice-versa, os chamados canais de correnteza, tamanho é o volume d’água e velocidade que além de ter um barulho ensurdecedor à água desgasta as rochas parecendo que um laser de precisão cortou-as.

E como já era de hábito, descemos o canal em alta velocidade, pois esta manobra é tudo ou nada. Chegamos ao porto mais próximo e abastecemos a pequena lancha em torotes de diesel totalizando oito mil litros, que somando aos tripulantes, carga máxima. Tudo transcorria normalmente, mas o Rio Madeira é imenso e cheio de poderes e surpresas. Quando entramos no canal da cachoeira e começamos a subir percebemos que o volume d’água acima estava violentamente aumentado, no que contornamos as primeiras rochas e fizemos a curva do canal para a direita nos deparamos com uma violenta tempestade e uma fúria fluvial que arremessava ondas de 3 metros de altura contra nós. Neste momento lacramos nosso motor no máximo de potência e a água, assim mesmo, continuava empinando a lancha, nos jogando rumo a um paredão de rochas. Em uma tentativa instintiva larguei o leme da lancha para meu companheiro e atirei-me à proa de nossa embarcação. Praticamente não surtiu efeito algum, pois diante, da chuva, do vento e do enorme aumento de vazão da água, nada representávamos. Em meio aquele caos, olhei para trás e encontrei os olhos apreensivos de meu colega e como se mentalmente uma frase fosse dita, lembro-me muito bem: “Vamos morrer!”; repentinamente e instintivamente como diria o mais célebre dos guerreiros farroupilhas “Vamos pelejar até com o toco da adaga”.

Agarrei um torote (galão) de 60 litros de diesel e com um impulso só, numa última e desesperada tentativa, lancei-me junto a ele à ponta da proa. O tombo foi tão grande que explodiu o torote dando um banho de diesel em mim, em toda a lancha e na água como se estivesse sido impulsionada por uma força extra a nossa lancha conseguiu ultrapassar o enorme degrau d’água que se formara a nossa frente; depois foi só avançar algumas ondas e conseguimos ancorar em segurança. (Um ano após o retorno para a civilização lembro-me de ter lido em uma revista de assuntos interessantes (a super interessante) que os Vikings sempre levavam junto à proa de suas embarcações uma enorme bolsa de couro cheia dos mais variados óleos, pois acreditavam eles que se ofertassem esses óleos aos deuses dos mares e dos ventos, garantiria uma passagem tranqüila através das tempestades).

(Entre o que sabemos e não sabemos das milhares de criaturas que nos cercam, fica mais uma vez provado que temos de conhecer as forças enteais e elementais que regem o nosso mundo). Passados alguns dias tomei a decisão de que nada mais tinha a fazer lá e por impulso incontrolável, parti. Enquanto me deslocava do coração da selva amazônica rumo ao porto mais próximo, observei a minha direita que no barranco do rio estava uma grande quantidade de belos e fortes índios, mulheres, crianças e homens. Todos me acenavam em constante alegria. Imediatamente retribuí. Foi quando meus colegas perguntaram se eu estava ficando louco. Rapidamente disse que estava dando adeus para a mata e tudo que ali vivi. ( para não passar por maluco )


Autor: Alexandre Schorn


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