Evolução Histórico-normativa Da Proteção E Responsabilização Penal Juvenil No Brasil



EVOLUÇÃO HISTÓRICO-NORMATIVA DA PROTEÇÃO E RESPONSABILIZAÇÃO PENAL JUVENIL NO BRASIL

1.1- CONSIDERAÇÕES GERAIS

A compreensão, ainda que de forma reconhecidamente genérica e limitada, do caminhar da legislação brasileira referente à criança e ao adolescente tem importância fundamental no estudo da intervenção jurídica sobre o jovem na atualidade, pois permitirá estabelecer relações de como a legislação abordava, e de como ela aborda o tema, assim como os resultados obtidos em cada situação jurídica encontrada.

Deve-se frisar que o objetivo deste capítulo é fornecer tão somente um substrato cultural de cunho introdutório ao assunto da intervenção jurídica à infância no Brasil, expondo as principais normas jurídicas que nortearam o tema ao longo da história brasileira.

A ciência jurídica tem, enquanto regulamentadora de condutas, o dever de corresponder às mudanças sociais operadas. É com base nesse princípio fundamental do realismo jurídico, que a compreensão do percurso histórico-normativo ocorrido no Brasil, em relação à infância e a adolescência, está diretamente ligada ao desenvolvimento social e político vivenciado pela história mundial sobre o tema.

Mendez[1] estabelece que a história do direito juvenil pode ser dividida em três etapas: de caráter penal indiferenciado; de caráter tutelar; e de caráter penal juvenil.

Essa mesma divisão é compartilhada por Fachinetto[2], o qual afirma que são três as doutrinas jurídicas básicas sobre a criança e o adolescente: Doutrina do Direito Penal do Menor; Doutrina da Situação Irregular e Doutrina da Proteção Integral. Tal divisão será a adotada neste capítulo para melhor compreensão dos marcos legislativos e sociais ocorridos na história do nosso país, desde as Ordenações filipinas até o atual Estatuto da Criança e do Adolescente.

1.2 - DOUTRINA DO DIREITO PENAL DO MENOR

Desde o surgimento das primeiras leis penais até o início do século XX, as crianças[3] eram tratadas praticamente iguais aos adultos, no que concerne à responsabilidade penal. Vigora aqui o pensamento medieval sobre as crianças, não existindo a concepção da vida infantil como um período distinto da vida adulta, o que só vem acontecer em meados do século XX.

O historiador Áries[4] bem define as crianças da época dizendo que elas eram nada menos que "pequenos adultos", e conclui que:

A ausência do sentido de "infância", tal como um estágio específico do desenvolvimento do ser humano, até o fim da Idade Média, abre as portas para uma interpretação das chamadas "sociedades tradicionais" Ocidentais.

Essa época condiz com o regime imperial vigente no Brasil e o início do Brasil República. Segundo Saraiva[5], as primeiras normas incidentes no Brasil sobre a responsabilidade penal foram as Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), nada mais que compilados das normas editadas em Portugal.

As Ordenações Filipinas foram, por sua vez, as únicas a terem realmente efetividade no Brasil, regulando em seu capítulo V, os crimes e as punições, alem da particular situação dos menores. Inobstante a quase ausência de proteção dada á criança da época, tal ordenamento já apresentava algum sentimento de humanismo, estabelecendo gradações e distinções na punição para os indivíduos até 21 anos incompletos.

Saraiva[6] prossegue explicando que, de acordo como as Ordenações Filipinas os menores de sete anos eram considerados, conforme a velha tradição do direito romano[7], absolutamente incapazes, e seus atos equiparados aos dos animais. Aos jovens entre 20 e 17 anos havia uma diminuição da pena em um terço em relação aos adultos, de acordo como o juízo do magistrado, adotando-se para tal caso os três critérios objetivos: a) modo como o delito foi praticado; b) suas circunstâncias; c) a pessoa do menor, e um subjetivo: a) a malícia da ação. Já aos jovens entre 7 e 17 anos, o soberano concedeu aos súditos o "privilégio" de não serem condenados á pena de morte, subsistindo todas as outras políticas penais, como custódia no mesmo estabelecimento prisional, sem qualquer diferenciação na execução da pena. Percebe-se que a inimputabilidade penal plena só ocorria para os menores de 07 anos de idade.

Em que pese o quase total abandono à criança na época imperial, SOUSA[8] ressalta que o Brasil, influenciado fortemente pela ideologia cristã, adotou algumas medidas políticas educacionais para a infância, como a "Casa de Roda" [9], fundada na Bahia em 1726, a "Casa dos Enjeitados", no Rio de Janeiro em 1738, e a "Casa dos Expostos", no Recife em 1789, cujas finalidades eram abrigar crianças e adolescentes órfãos ou abandonados. A autora ressalva, entretanto, que a preocupação da população e do próprio governo à época com a camada jovem era bastante incipiente, e que, embora com subsídio do governo, era a Igreja a responsável por boa parte dessas medidas, sendo estas, portanto, de caráter meramente assistencial, fundada em bases religiosas e caritativas.

Gomide[10] relata que nessa primeira fase do direito juvenil as ações do governo sobre a infância restringiam-se apenas a programas de assistência médica, com forte influência da medicina higienista, com medidas de caráter eminentemente "profiláticas", culminando na criação do Instituto de Proteção e Assistência á Infância do Rio de Janeiro, em 1889. O Estado já demonstra uma forte tendência a intervir na vida familiar pobre, controle social este que se aprofundará na próxima fase do direito juvenil.

Com a independência do Brasil proclamada em 07 de setembro de 1822, o país sai, ao menos formalmente, de seu status de colônia para um Estado autônomo, com grandes repercussões em seu mundo jurídico. Adquire novas legislações, estas nacionais, como a Constituição de 1824 e o Código Criminal de 1830. Ambos os diplomas legais estavam imbuídos da nova razão jurídica despertada no século das luzes, a qual pregava ao indivíduo o reconhecimento de sua autonomia, sendo ele senhor e titular de seus direitos.

O Código Criminal de 1830 traz duas mudanças significativas na política criminal da responsabilização penal do menor. A primeira refere-se ao estabelecimento de uma inimputabilidade penal relativa aos jovens entre 07 e 14 anos de idade, aonde tais jovens só não seriam responsabilizados se o magistrado verificar que não agiram com "discernimento" [11], sem aptidão para distinguir o bem do mal. A outra inovação é o recolhimento destas crianças em casa de correção, não mais nos mesmos estabelecimentos penais que os adultos, como dispunha a legislação anterior. E por último, o limite de recolhimento para dezessete anos.

Assim dispunha o Código Criminal do Império[12], em seu art. 13:

Se provarem que os menores de 14 anos, que tiverem cometido crimes obraram com discernimento, deverão ser recolhido á casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á de dezessete anos.

No final do século XIX a conjuntura política, social e jurídica tiveram mudanças significativas no mundo e conseqüentemente no Brasil. Em nosso país, inicia-se o Período Republicano, em substituição ao Império, e a escravidão tem o seu fim. A ascensão do realismo jurídico ligado á escola positiva acaba com as fantasias da escola clássica do Direito Penal. Cesare Lombroso[13] adquire destaque nessa época e uma de suas teorias é a de que toda criança já trazia embutida o germe da loucura moral e da delinqüência.

Atinente a tais mudanças, surge no cenário nacional o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1890, o qual cria uma maior complexidade para a imputabilidade penal para os jovens infratores. Aumenta-se a inimputabilidade plena para 09 anos, e aos jovens entre 09 e 14 anos aplicar-se-ia a imputabilidade relativa, mantendo-se a avaliação do magistrado sobre o discernimento do menor.

O Código Criminal de 1890[14], em seu art. 27, rezava que:

Não são criminosos:

§ 1. ° Os menores de 9 anos completos;

§ 2. ° Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento

1.3 DOUTRINA DA SITUAÇÃO IRREGULAR

Esta fase, que vai do início do século XX ate o seu final em meados da década de 80, caracteriza-se por uma intensa aliança entre a Justiça e a Assistência.

A inspiração nesse período para a produção legislativa do Brasil sobre a responsabilização penal juvenil vem dos Estados Unidos da América, o qual foi o primeiro país a criar uma Justiça Especializada para o menor infrator – O Tribunal de Menores de Illinouis, criado em 1899, seguido pela Inglaterra (1905), Alemanha (1908) Portugal e Hungria (1911), França (1912), Argentina (1921), Japão (1922), Brasil (1923), Espanha (1924), México (1927) e Chile (1928). A política criminal juvenil dos EUA baseava-se na concessão de um poder quase que total aos juízes na intervenção familiar.

Saraiva[15] relata que cada vez mais se aumentava as críticas dirigidas

às políticas criminais adotadas pelo Código Republicano, com a reduzida idade de inimputabilidade penal e a impropriedade da expressão discernimento. O clima político internacional também apontava para uma necessidade de criar-se uma legislação especial para os menores, sob a tutela do Estado, aonde a educação e a recuperação deveriam prevalecer em detrimento da punição.

O primeiro efeito de tal panorama internacional no Brasil ocorre com a edição da Lei n° 4.242, de 05 de janeiro de 1921, a qual dispondo sobre a "Despesa Geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1921", em seu art. 3º, parágrafo 17, aumenta a imputabilidade penal absoluta do menor em 14 anos. Pela primeira vez, desde o Código Penal da República de 1890, estabelece-se um critério puramente objetivo de imputabilidade penal, abandonando o sistema biopsicológico. Após, o Decreto n° 22.213, de 14 de dezembro de 1922, conhecido como Consolidação das Leis Penais, reafirma, em seu art. 27, § 1º, que não são criminosos os menores de 14 anos.

A Lei nº 4.242[16], de 1921, afirma em seu art.3º, parágrafo 16, que:

O menor de 14 anos, indigitado autor ou cúmplice de crime ou contravenção, não será submetido a processo penal de nenhuma espécie; a autoridade competente tomará somente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punível e sua autoria, o estado physico, mental e moral do menor, e a sua situação social, moral e econômica dos pais, ou tutor, ou pessoa sob cuja guarda viva

Nessa época merece destaque a realização do Congresso Internacional de Menores, em Paris, ocorrida em 29 de junho a 1º de Julho de 1911, e a Declaração de Gênova de Direitos da Criança, adotada pela Liga das Nações em 1924, e de crucial importância por constituir-se o primeiro instrumento internacional a reconhecer a idéia de um Direito da Criança.

No reflexo destas discussões, que surge no Brasil, em 1923, o Juízo de Menores, tendo sido José Cândido de Albuquerque Mello Mattos o 1º Juiz de menores da América Latina. Anos mais tarde, em 1927, surge o Decreto 17.943-A, o 1º Código de Menores do Brasil, ou Código Mello Matos, o qual marca o início de um domínio quase que exclusivo da ação jurídica sobre a infância.

O Código Mello Mattos reafirma que o menor abandonado ou delinqüente, menor de quatorze anos ficaria eximido de qualquer processo penal, enquanto o menor de 18 e maior de 14 anos ficaria submetido a processo especial estabelecido por este Código.

Veronese[17]assim caracteriza o Código Mello Matos:

O Código de Mello Mattos sintetizou, de maneira ampla e aperfeiçoada, leis e decretos que se propunham a aprovar um mecanismo legal que desse atenção especial à criança e ao adolescente. O Código substituiu concepções obsoletas, passando a assumir a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional.

Conforme noticia o CIESPI[18], a população, diante de um súbito aumento da criminalidade juvenil, adotava uma postura ambivalente: uns pregavam o encarceramento precoce dos menores, como medida defensiva; outros clamam pela necessidade de assistência a tais jovens, como forma de amparar a infância.

O Código Mello Matos na tentativa de apresentar uma solução imediata ao país ultrapassa, em muito, as fronteiras da ação jurídica sob a infância. Sob o manto da proteção e assistência submetia qualquer criança, pela simples condição de pobreza, à Ação da Justiça e da Assistência. O Capítulo X, que trata "Da vigilância sobre os menores", torna patente tal intenção ao conferir ampla liberdade à autoridade pública, os Juízes de Menores, para que esta fiscalize e proceda as investigações necessárias em qualquer lugar em que o menor se encontre. Surge a categoria do MENOR, que nas lições de Soares[19] simboliza a "infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do resto da infância".

Percebe-se, de logo, que o problema do menor da época era tratado através da cultura da institucionalização dos jovens infratores ou de qualquer um que fosse declarado numa situação irregular pelo magistrado. A Doutrina do Direito do Menor surgiu para acabar com a confusão da criança com o adulto, mas não conseguiu impedir o binômio carência/delinqüência, com uma infeliz criminalização da pobreza.

Sobre este aspecto Rizzini[20] comenta:

A intervenção sobre as famílias pobres, promovida pelo Estado, desautorizava os pais em seu papel parental. Acusando-os de incapazes, os sistemas assistenciais justificavam a institucionalização de crianças. Os saberes especializados vieram confirmar a concepção da incapacidade das famílias, especialmente as mais pobres, em cuidar e educar seus filhos e foram convocados a auxiliar na identificação daquelas merecedoras da suspensão ou cassação do pátrio-poder.

Merece destaque a criação, no governo Vargas, do SAM – Serviço Nacional de Menores, o qual tinha objetivos de cunho essencialmente assistenciais e psicopedagógicos junto aos menores desvalidos e delinqüentes, com foco nos estudos e pesquisas sobre o comportamento infantil. Entretanto, conforme ressalta Veronese[21]:

No entanto, o SAM não conseguiu cumprir suas finalidades, sobretudo devido à sua estrutura emperrada, sem autonomia e sem flexibilidade e a métodos inadequados de atendimento, que geraram revoltas naqueles que deveriam ser amparados e orientados

Com o advento do Estado Novo, o que se esperava era o endurecimento da lei penal no tocante à responsabilidade penal juvenil, seguindo o ambiente político cerceador de inúmeras regras democráticas que se instalava no país. Entretanto, viu-se o contrário: surge o Código Penal de 1940, incrivelmente vigente até os dias de hoje, e estabelece-se 18 anos para a inimputabilidade penal.

Assim dispõe o Código Penal de 1940[22], sobre a inimputabilidade penal:

Art. 23. Os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.

Hungria[23], principal autor do projeto que resultou neste diploma legal criminal, traz relevantes esclarecimentos desse novo diploma legal:

Nada mais deve subsistir que lembre Lombroso e sua teoria de que todas as tendências para o crime têm o seu começo na primeira infância; nada mais ainda com a idéia de condenação penal que pode arruinar uma existência inteira. É preciso renunciar à crença no fatalismo da delinqüência e assumir o ponto de vista de que a criança é corrigível por métodos pedagógicos. Afinal, a delinqüência juvenil é, principalmente, um problema de educação. Muitos jovens não seriam clientes das penitenciárias se tivessem recebido uma orientação protetora, e só conheceram da vida o que ela tem de sofrimento, de privação, de crueldade, de injustiça. Por conta disso, torna-se-lhes odiosos o lar, a família e a sociedade. Assim, que esperar deles "senão que se deixem resvalar pelo declive de todos os vícios, de todas as perversões, de todos os malefícios. É preciso socorrê-los, salvá-los de si próprios e do meio em que vegetam, ensejando-lhes aquisições éticas, reavivando neles o sentimento de vergonha e auto-censura. Essa tarefa cabe ao Estado, mediante a aplicação do Código de Menores, sob cujas sanções de caráter meramente reeducativo, devem ficar ainda nos casos de extrema gravidade, o menor de 18 anos, que comete ações definidas como crimes.

Diante da ineficiência do sistema legal vigente no pais, torna-se patente o fracasso do Código Mello Matos em salvar as crianças do país sob o ponto de vista estrito do Judiciário.

Nessa época merece destaque o projeto de lei 1000-56, surgido em 1951, de autoria de um deputado amazonense e que trazia em seu enunciado: "Reforma o Código de Menores e estabelece o Estatuto Social da Infância e Juventude". Este projeto pode ser considerado como a semente da nossa legislação atual sobre a infância e adolescência, visto que trazia em seu bojo os princípios preconizados pelo cenário internacional do pós-guerra em defesa dos direitos humanos, materializados na Declaração de Genebra de 1924 e a Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Infelizmente, mesmo com a edição da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1954, o inconstante cenário político por que passava o Brasil não permitiu que tal projeto conseguisse a almejada reforma legislativa.

A instituição do Regime Militar no Brasil através do golpe de 1964 marca a fase de maior intensidade da doutrina da situação irregular, através do aumento da criminalização dos menores pobres, sob a égide da Política Nacional de Segurança. O governo militar cria a PNBEM – Política Nacional de Bem Estar do Menor, a qual, segundo Veronese[24], da mesma forma que as outras políticas sociais estabelecidas nessa fase, escamotea-se com uma natureza reformista e modernizadora, mas com reais aplicações meramente pragmáticas e imediatistas.

Os frutos mais significativos da PNBEM foram a FUNABEM- Fundação Nacional do Bem Estar do Menor, este como órgão gestor da política e destinado a substituir o SAM, e a FEBEM – Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, como órgão executor estadual das novas medidas instaladas. Nas mesmas lições de Veronese[25], serviram nada mais que instrumentos de controle da sociedade civil, não sendo minimamente eficiente para combater o crescimento do numero de crianças marginalizadas, ou proporcionar-lhes a reeducação.

Como mais um exemplo do recrudescimento da atenção dada á criança nesta fase militar, Saraiva[26] ressalta que o Código Penal Militar fixou a idade penal fixou a imputabilidade penal, frente a crimes militares em 16 anos, preceito que só veio a ser totalmente revogado pela Constituição Federal de 1988.

Em meio à expectativa da população do país em mudanças legislativas que colocassem o Brasil no rumo internacional da especial proteção á infância, surgiu o "novo" Código de Menores de 1979. No Ano Internacional da Criança, o 2º Código de Menores, consagrando a teoria menorista da situação irregular e inspirado pelo regime totalitário e militarista vigentes no país, não surpreendeu ao em nada inovar na proteção e cuidados destinados á infância.

O Código de Menores de 1979 firmou o menor como objeto de tutela do Estado, legitimando a intervenção estatal sobre os jovens que estivessem em uma circunstância que a lei estabelecia como situação irregular. Crianças consideradas expostas, abandonadas, mendigas ou vadias[27], saiam da tutela da família para a do juiz de menores, o qual tinha o poder de decidir como e onde ela ficaria, sem qualquer garantia contida na lei, à diferença do que temos hoje através do principio do devido processo legal. Tais menores ficariam nos mesmos lugares em que os menores infratores, e todos declarados com "desvio de conduta com grave inadaptação familiar", receberiam a "terapia da internação", consistente em penas privativas de liberdade, com prazos indeterminados, sob o manto da equivocada interpretação do "superior interesse da criança" [28].

O Juiz de Menores amplia, ainda mais, as suas atribuições, sendo encarregado de suprir as lacunas deixadas pelas políticas pública no âmbito do menor. O seu poder discricionário era utilizado para auferir a ocorrência das novas figuras jurídicas inseridas pelo ordenamento, como o "tipo aberto", "menores em situação de risco ou perigo moral ou material", ou "em situação de risco", ou "em circunstâncias especialmente difíceis".

Saraiva[29] da um bom exemplo do impacto social provocado pela legislação menorista da época: "A grande maioria da população infanto-juvenil recolhida no sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por "menores", que não eram autores de fatos definidos como crime na legislação penal brasileira". Tais dados demonstram a aplicação de verdadeiras sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como delitos. Nas palavras de Saraiva[30], "prendia-se a vítima".

Verifica-se que, embora presentes os princípios tuteladores que fundamentavam a doutrina da "situação irregular", as instituições – instrumentos de materialização de tal política, as quais deveriam acolher e educar esta criança ou adolescente, raramente cumpriam seus intentos. O tratamento dado ao jovem à época, conforme ressalta Veronese[31], o "massificava" e o "despersonalizava", e ao invés de estruturá-lo psicológica, biológica e socialmente, simplesmente o colocava, em definitivo, numa situação irregular afastada da sociedade.

1.4 DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Embora o Brasil somente abandone a fase de situação irregular da criança no fim do século XX, o cenário internacional já se mostrava favorável à mudança desde o início do século, como os diversos enunciados normativos internacionais provam: A Declaração de Genebra de 1924, na qual se urge pela necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial; a Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948; o Pacto de São José da Costa Rica de 1960 e, em especial a Declaração Universal de Direitos da Criança de 1959, famosa por difundir a política do "The Best Interessed of the Children".

A partir da década de 1980, com a redemocratização do país, inicia-se um clima legislativo extremamente propício a mudanças. O Código Penal tem a sua parte geral alterada, através da Reforma Penal de 1984, inspirada na doutrina de Francisco de Assis Toledo, através da Lei n° 7.209, de 11 de julho de 1984. No que concerne a responsabilidade penal juvenil, o art. 27 da nova parte geral do Código Penal trouxe apenas uma única alteração redacional: ao invés de menores "irresponsáveis', adota-se, coerentemente, a expressão "inimputáveis", já que a responsabilização de tais jovens, embora de maneira especial já existia e seria aprimorada 6 anos mais tarde.

É publicada a Constituição Federal de 1988, a Carta Cidadã, a qual surge trazendo inúmeras proteções à vida, a saúde, à liberdade, à dignidade, à cultura, ao lazer, dentre outras prerrogativas.

É com inspiração no âmbito internacional e nas premissas maiores da Constituição Federal de 1988, que surge a Lei 8.069/90 – O Estatuto da Criança e do Adolescente - revogando o 2º Código de Menores e finalizando de uma vez por todas a doutrina da situação irregular.

A Constituição Federal da República[32], em seu art. 227, caput, da estabelece que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Inicia-se no país a doutrina da proteção integral – proteção biológica, psicológica e social, deixando-se de lado o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), reconhecendo a indispensável importância do papel da família na sociedade. Repudia-se o uso da palavra "menor", trazendo o novo Estatuto as expressões "criança", definida como o jovem até os 12 anos incompletos, e "adolescente", o jovem entre 12 anos completos e os 18 anos incompletos, reconhecendo as diferenças existentes em cada um destes.

O ECA tem como premissa básica que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, não devendo mais ser considerados como meras extensões de seus familiares, adquirindo direitos próprios, os quais podem se opor até mesmo aos de seus pais.

Aliado a proteção integral, o adolescente adquire a categoria de responsável pelos atos considerados infracionais que cometer, aplicando-se medidas sócio-educativas aos mesmos. À criança que cometer tais atos será aplicada apenas uma medida protetiva, também referida no estatuto. Cria-se uma responsabilização penal especial, atendendo os anseios da população vitimizada pela violência.

A infância e adolescência são reconhecidas como uma fase específica e especial da vida humana, sendo a criança e o adolescente seres em desenvolvimento, de forma alguma aptos a se auto determinarem, sendo dignos de uma proteção especial.

As disposições constantes no novo Estatuto apresentam-se perfeitamente coerentes com as idéias predominantes no cenário internacional, dentre as quais se destacam a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em 1980, e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Infância e da Juventude e para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, em 1990.

Em 1993 e 1996 surgem, respectivamente, a Lei nº 8.742/93 – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nas quais se fundamentam os principais instrumentos de efetividade do ECA: Os Conselhos de Direito da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares e os Setoriais de Políticas Públicas.

Frente ao exposto, percebe-se que a questão da criança e do adolescente nunca deixou de ser regulamentada em nosso país, embora na maioria das vezes faltasse à norma a sua efetivação no meio social. A mera alteração legislativa não se mostrou suficiente para a implementação de uma nova política criminal a ser adotada. Urge-se do Estado uma participação mais direta na execução de tais medidas, sendo historicamente fadado ao insucesso as ilusórias soluções para a criminalidade juvenil corriqueiramente apontadas, como: escolarização geral e precária, retirada da família e confinamento em instituições, rebaixamento da maioridade penal, dentre outras.



[1] MENDEZ, Emílio Garcia. Adolescentes e responsabilidade penal: um debate latino americano. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br>. Acesso em: 16 set. 2005.

[2] FACHINETTO, Neidemar José. Evolução Doutrinária dos Direitos da Criança e do Adolescente. 2003. Disponível em: <http://www.abmp.org>. Acesso em: 22 Mai de 2008.

[3] Até o advento da Constituição da República de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069-90), as leis não faziam qualquer distinção entre criança e adolescente, sendo todos tratados como menores, infantes, ou jovens.

[4] ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p.105. Tradução de Dora Flaksman.

[5] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei – da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 1.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.32.

[6] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei – da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 1.ed Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 33.

[7] O poder do patriarcado romano tinha o mesmo absolutismo no mundium do Direito germânico. O pai tinha o terrível jus vitae necis sobre a pessoa do seu filho não emancipado, podendo aliená-lo, e nos tempos mais recuados, até matá-lo. (DEMO, Wilson. Manual de História do Direito. Florianópolis: OAB/SC, 2000)

[8] SOUSA, Sônia Margarida Gomes. História do atendimento à criança e ao adolescente. In: Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, IV., 2002, Brasília. Anais da IV conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília: Conanda, 2001. p.55.

[9] Essas casas possuíam uma espécie de roleta, aonde crianças nascidas em famílias pobres ou mesmo havidas fora do casamento eram deixadas sem que se identificasse quem as abandonava, conforme explica (RIZZINI, I. e RIZZINI, I. A Institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios presentes. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; UNICEF; CIESPI, 2004) .

[10] GOMIDE, Paula. Menor Infrator: a caminho de um novo tempo. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2002. p.63.

[11] Tobias Barreto critica essa expressão como critério capaz de separar os menores impuníveis dos puníveis. De acordo com ele isto poderia resultar em muito abuso e dar lugar a mais de um espetáculo doloroso, a ponto de um juiz descobrir tal discernimento em crianças de 5 anos. (BARRETO, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: Fac-Sim, 2003)

[12] BRASIL. Código Criminal do Império de 1830. Art. 13.

[13] Cesare Lombroso foi um professor universitário e criminologista italiano, nascido a 6 de novembro de 1835, em Verona. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia, ou a relação entre características físicas e mentais, em especial na psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas e com comportamento criminal (SABBATINI, Renato M.E. Cesare Lombroso: uma breve biografia, 1997). Disponível em: http://www.cerebromente.org.br/n01/frenolog/lombroso_port.htm. Acesso em: 08 abr. 2008.

[14] BRASIL. Código Criminal do Brasil de 1890. Art. 27.

[15] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei – da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 50.

[16] BRASIL. Código Penal. Lei nº 4.242[16], de 1921. Art. 3º, parágrafo 16.

[17] VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999. p. 25.

[18] CIESPI- Centro Internacional de Estudos e Pesquisa sobre a Infância. "Menores" e Crianças: Trajetória Legislativa no Brasil: notas sobre a história da legislação voltada para crianças e adolescentes no Brasil 1824-2007. Disponível em: < http://www.ciespi.org.br/base_legis/baselegis_hist_legis.php>. Acesso em: 09 abr 2008.

[19] SOARES, Janine Borges. A construção da responsabilidade penal do adolescente no Brasil: uma breve reflexão histórica. Disponível em http://www.mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id186.htm. Acesso em: 10 abr 2008.

[20] RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004. p. 64.

[21] VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999. p. 32.

[22] BRASIL. Código Penal. Art.40

[23] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de janeiro: Forense, 1978. v.1, p. 360.

[24] VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999. p. 37.

[25] VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999, p. 37.

[26] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei – da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 30.

[27] Essas eram as mesmas expressões contidas no 2º Código de Menores ao tentar explicar a situação irregular.

[28] Tradução da expressão "The best interessed of the children", muito difundida nos EUA e em congressos internacionais.

[29] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei – da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 39.

[30] idem

[31] VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1999, p. 96

[32] BRASIL. Constituição Federal da República. Art. 227.


Autor: Bruno Caldeira Marinho de Queiroz


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