PEGADINHA DA LEITURA. A deformação do leitor por meio da lista de livros obrigatórios para o Vestibular



PEGADINHA DA LEITURA 

A deformação do leitor por meio da lista de livros obrigatórios para o Vestibular

Solineide Maria[1]

Se a leitura se configura num desafio e formar leitores (seduzi-los), em tarefa muito delicada, o que almeja o Vestibular “obrigando” jovens a realizarem leituras de títulos em função das provas de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa, quando nestas, minimizam o uso das obras, em uma ou duas questões de contexto pífio?

Não. Infelizmente não fui eu quem primeiro despertou para tal questionamento. Apenas elaborei-o, na tentativa de tecer alguma discussão, pois a jovem que me inquiriu, estava angustiada por “ter deixado de estudar outras coisas” em função da “leitura obrigatória” dos títulos indicados para realização do exame, em determinada universidade pública do Sul da Bahia.

Graças a Deus (ou aos doces?), ela é leitora! Lê desde que foi alfabetizada. Aliás, essa adolescente, aprendeu a ler sozinha, nas ocasiões em que escrevia sua lista de doces para que seus pais a providenciassem. Ela usava a prática da transcrição: olhava na bala o nome e copiava-o na lista dos preferidos.  Assim, de lista em lista, iniciou sua amorosa (e doce) relação com o universo da leitura.

Dormi pensando sobre o assunto provocado por essa vestibulanda crítica. Uma garota que almeja a posição de estudante universitária, com todas as chances de alcançá-la, do alto dos seus dezessete anos: onze deles, dedicado à leitura.

Acordei com outra inquisição. Desta vez, a mãe de um vestibulando confidenciou-me que seu filho estava preocupado com a questão da leitura obrigatória dos livros, por todos os que tentariam vaga na mesma instituição. O rapaz estava “aliviado” porque não havia lido os romances, e, mesmo assim, disse ter conseguido responder com facilidade as questões elaboradas para a prova de interpretação (LP).

Mostrou-se, no entanto preocupado. Em sendo um rapaz de opinião, percebe que a obrigatoriedade da leitura de títulos para fins de responder provas no Vestibular, e o não uso das leituras dos candidatos que se debruçaram (de fato) sobre tais obras, pode ocasionar uma deformação no leitor, ou do leitor.

Sabe-se, tristemente, que poucos lêem um livro na íntegra, quando se trata de leitura obrigatória. Sugere-se que a maioria lê o resumo da obra. E, passam... No Vestibular, na prova, no método de escolhas para Concursos... Enfim. Então, aqueles que aconselham a leitura “na íntegra” das narrativas eleitas para o Vestibular ou outro meio qualquer de “seleção” para isso ou aquilo, ficam ridicularizados.

Dessa forma, volta a pergunta: ler para quê mesmo?

Leia-se, então, por prazer. O prazer que a escola tem roubado. O prazer que as ocupações variadas (academia e Academia) roubam. Leia-se. Porque quem tem assunto lê, como assevera Perissé[2].

Leia-se para acordar a alma, sedenta de palavras que alimentem a capacidade de diálogo com o mundo e para o mundo. Com o outro e para o outro. Ainda que seja o outro em nós mesmos. O outro que Mário[3] de Sá Carneiro entendeu: “(...) Eu não sou eu nem sou o outro/Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio/ Que vai de mim para o outro.” Leia-se para ir melhorando o entendimento de si e das coisas.

Talvez por conta da leitura obrigatória dos livros para o Vestibular, perde-se muitos leitores, ou, no mínimo de-forma-se. Num momento em que se fala tanto em formação de leitor, é desconfortável ouvir uma jovem desabafar: “nunca mais leio esse cara!”. Esse cara, senhoras e senhores, trata-se do tão ilustre escritor e bruxo das letras, Machado de Assis.

É possível entender essa mocinha... Ela foi “zoada” no ônibus, quando realizava o itinerário que a levava de volta à sua casa, no segundo dia de provas deste sofrido processo. Seus colegas, que se intitularam “espertos”, diziam-lhe coisas do tipo: “perdeu tempo”; “eu disse procê ler o resumo”; “falei procê que não precisava ler todos os livros” etc. Isso entre uma gargalhada e outra. Preocupante mesmo caro candidato, candidata, leitor, professor, professora... E o que dizer àqueles que pagaram as famosas “jornadas literárias para o Vestibular”?

Ler não é uma questão simples, para ser tratada de maneira tão desrespeitosa. Houve candidatos que leram as obras. E leram porque tinham o objetivo de responderem questões... Questões estas, que não existiram. Possivelmente, perdeu-se um leitor ali, outro acolá. Aqui, perto de mim, perdemos dois, ou, no mínimo, foram deformados.

Uma vez puseram um livro de poesias explêndido, na lista de leitura obrigatória no processo de seleção de estudantes para ingresso numa universidade. Eu, que já conhecia o livro, senti-me mais à vontade. No entanto, uma amiga, confessou aturdida: “o que é que esse homem quer de mim?”. Esse homem era o poeta pantanense Manoel de Barros. A obra, o surreal O livro das Ignorãças.

Esta minha amiga, até hoje, não consegue se sentir à vontade quando citam o nome deste escritor. Menos um leitor de Manoel de Barros. Ou mais um leitor deformado por essa pegadinha da lista obrigatória da leitura para o Vestibular. Tenho esperança e volta e meia leio um verso para minha amiga. Passados alguns minutos, declaro ser do poeta Manoel de Barros, tento traze-la de volta. A poesia não pode ser deformada. E ninguém merece ser deformado em suas viagens rumo à leitura de literatura.

Sugiro que voltemos, com doçura, nossos olhares, para a questão da leitura. A mesma doçura que aquela menina usou para acessar sua visão no mundo da leitura. Sem obrigatoriedade, apenas tecendo suas lista de doces. E, assim, de lista em lista, de letra em letra, foi construindo seu amor pelo universo das palavras. É urgente que se consiga seduzir leitores nas escolas, com brandura. Ou, no mínimo, que não seja deformado mais nenhum leitor, por culpa da pegadinha da leitura pre-Vestibular. 

Dedico esta escrita para Luisa Muniz, Renato Gomes, Rejane Gomes, Regina Gomes e todos os que sofrem no Vestibular uma espécie de deformação de leitores. Mas persistem na senda da leitura!


[1] Poetisa, professora (graduada em Letras/Espanhol pela UESC), editora do Blog: http://solpoesiaeprosa.blogspot.com

[2] Professor, Mestre em Literatura e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, autor do livro O leitor criativo – São Paulo: editora Mandruvá, 2000. Dentre outros. 

[3] Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa.

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Autor: Solineide Maria Oliveira


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