Transexualismo e a Redesignação Social do Transexual



Palavras-chave: Transexualismo; mudança de sexo; dignidade; retificação do nome.

Abstract: The order of this work is analyze the limitations and law possibilities of the name changing by the grinding of the civil registry based on the sexual changing, already and settled by the RCM (regional council of medicine), but not owner of legal defense from our legal planning. That omission goes against the principle of dignity, guaranteed by our Constitution, denying for the transsexual citizen the right of being adapted to your psycho, gonodal and your gender related to the exercise of the civil rights reflected in your social and personal life like a peeve of unhappiness and constraint.

Key-words: Transexualism, sex change, dignity, name grinding.

Sumário: 1. Introdução; 2. Noções básicas e definições pertinentes, 2.1. O papel do gênero; 2.2. A opção sexual; 2.3. A identidade de gênero; 2.4. Outras denominações de sexo enquanto gênero; 3. Noções gerais do transexualismo no ordenamento jurídico brasileiro; 4. O diagnóstico do transexualismo e as novas perspectivas médicas; 5. O projeto de lei 70-B/95; 6. O direito à intervenção cirúrgica; 7. O direito à alteração do nome; 8. Considerações Finais; 9. Referências

1. Introdução

Não há direito sem que exista costume a ser disciplinado. A gênese do próprio direito fundamenta-se na necessidade de criar normas que policiem, guardem e protejam os direitos e deveres dos cidadãos, garantindo assim o bem comum, a civilidade e a busca pelo equilíbrio e harmonia social.

O poder entregue pelo povo ao Estado, através do "pacto social" surge com a intenção de que este, no cumprimento da sua função legislativa, crie dispositivos de acordo com a demanda social, ou seja, o fato gerador da demanda social, que requer a criação da lei é justamente o surgimento de conflitos ou sintomas destes, para que possam ser solucionados da forma mais equitativa possível.

A partir desta premissa, torna-se evidente que, estando o direito enredado à sociedade, a evolução desta acarreta a proativa evolução do primeiro, já que encontram-se consubstanciados de forma que, pode-se afirmar que o direito evolui (ou deveria) em função da evolução da sociedade.

Vive-se numa era em que pouco se cria e tudo se transforma, em função de necessidades, muitas antes supérfluas, mas que, em função do avanço tecnológico e desenvolvimento social acabam tornando-se elementares para o bem estar.

Assim nos ensina Pietro Perlingieri, em sua sucinta colocação:

Não existem instrumentos válidos em todos os tempos e em todos os lugares: os instrumentos devem ser construídos pelo juritsta levando-se em conta a realidade de que ele deve estudar. (...) o conhecimento jurídico é uma ciência jurídica relativa: precisa-se levar em conta que os conceitos e os instrumentos caracterizam-se pela sua relatividade e por sua historicidade. É grave erro pensar que, para todas as épocas e para todos os tempos haverá sempre os mesmos instrumentos jurídicos. É justamente o oposto: cada lugar, em cada época terá seus próprios mecanismos.[1]

Em meio a toda esta dinâmica, encontra-se o indivíduo, possuidor de um psiquê sujeito à influência de todas essas transformações, que, cada vez mais, não só inovam na esfera dos conflitos e impasses sociais, mas dão nome aos pré-existentes. Um destes conflitos que há pouco passou a ser discutido pelo ordenamento jurídico brasileiro é o tema deste trabalho: o transexualismo. Tema este que há muito exige efetivo posicionamento legal no sentido de garantir ao sujeito desta por assim dizer, "patologia", o transexual, o direito a alcançar harmonia com seu corpo, sua mente e sua designação social. É vil a argumentação de que o cidadão dotado de plena capacidade, mesmo através de todo um processo de avaliação clínica em diversos âmbitos, com uso de técnicas avançadas que não produzem riscos excepcionais algum à integridade física do sujeito (além daqueles que possui toda intervenção cirúrgica), não possui a prerrogativa de adequar o seu sexo biológico ao seu sexo psicológico por causa da resignação de alguns. Mais torpe ainda é falar-se em não eficácia de uma possível norma jurídica que discipline o transexualismo em função de considerá-lo hodierno e ainda não assimilado pela sociedade, pois, utilizando palavras de Renata Cardoso, "a transexualidade é uma "velha conhecida" de uma sociedade que, tradicionalmente, sufoca as minorias e "esquece" dos seus direitos".

Têm-se como grande problemática deste trabalho o fenômeno social do transexualismo versos a imatura posição da doutrina e jurisprudência quanto a não permissão da alteração do estado sexual por meio da retificação do registro civil do indivíduo que efetua a intervenção cirúrgica para alterar o seu sexo, bem como, a inexistência de previsão legal no atual ordenamento jurídico que discipline tal procedimento no âmbito do Direito Civil.

Como norteia Maria Celina Bondin de Moraes:

Nos Estados democráticos, é na esfera política que são reconhecidos os valores comuns e estabelecidos os princípios fundamentais. O direito constitucional representa o conjunto de valores sobre os quais se constrói, na atualidade, o pacto da convivência coletiva, função quem como se viu, já foi exercida pelos códigos civis. À diferença, porem, da codificação, redigida pelos juristas à luz dos valores de uma classe dirigente, os textos constitucionais, ao menos tendencialmente, são elaborados por um legislador democrático. De modo que ignorar os princípios constitucionais, ou interpretá-los à luz do código civil, como ainda hoje, sob considerações variadas, aguns tem feito, significa desconsiderar o principio da democracia e tentar substituí-lo pelo da "razão lógica", o do cientificismo ou permanecer subordinado a força da tradição.[2]

Através destas argüições, busca-se o estudo e discussão dos direitos dos transexuais baseado nos princípios constitucionais e atuais circunstâncias que levam à preocupação quanto a esses direitos, dada a evolução da medicina e dos costumes da sociedade, bem como pôr em pauta a tramitação, aprimoramento e aprovação do Projeto Lei 70 – B de 1995, do Deputado José Coimbra, que visa o acréscimo do parágrafo 9° ao artigo 129 do Código Penal e a alteração do artigo 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), versando sobre a exclusão do crime de lesão corporal da prática da cirurgia de redesignação sexual, e a hipótese de retificação do nome e do sexo no Livro de Registros Públicos, bem como explicitar a atual situação desta problemática no atual ordenamento jurídico.

A abordagem deste tema foi desenvolvida com a premissa de trazer à tona tal problemática, devido ao atual estado em que encontra-se o transexualismo na sociedade diante da tramitação do projeto de lei 70-B, que propõe a regularização legal dos direitos do transexual, através da relativização de fatores científicos, psicológicos, sociológicos e jurídicos.

2. Noções básicas e definições pertinentes

Encontra-se o transexual num complexo impasse, pois não se adéqua integralmente a um só sexo, já que, o transexualismo caracteriza-se justamente pela existência de séria incompatibilidade entre o sexo anatômico, biológico e a identidade gênero ou sexo psicológico.

Segundo o médico, sexólogo e antropólogo Ricardo Cavalcanti, o transexualismo deve ser analisado sob três paradigmas: o papel sexual, a identidade sexual e a opção sexual (informação verbal)².

2.1 O papel do gênero

É o estereótipo cultural do que é masculino ou feminino, a sua função na sociedade, suas características e estereótipos. Antigamente o papel desempenhado pelo sexo masculino divergia da hipótese deste sujeito usar brinco, da mulher não deter o poder de voto. Ou seja, o papel sexual são valores inseridos na sociedade, é o que se espera do indivíduo de cada sexo, o que não significa que estes valores são estáticos. Pelo contrário, são dinâmicos.

2.2 A opção sexual

Trata-se da escolha do gênero com o qual se relacionará o individuo no sentido amoroso e do ato sexual, o que difere do transexualismo do homossexualismo e do bissexualismo.

O homossexual é aquele que escolhe relacionar-se no aspecto supracitado, com indivíduos do mesmo sexo que ele. O bissexual relaciona-se com indivíduos de ambos os sexos. A questão do transexual é um pouco mais complexa. Ser transexual não implica na atração de um indivíduo pelo mesmo sexo que possui, nem mesmo na vontade de travestir-se ou se fazer passar pelo que não é. Pelo contrário. O transexual é aquele no qual, na construção da identidade físico-pisiquico, impera um flagrante descompasso do seu sexo biológico com o psicológico. Ele de fato não se enquadra no que transparece fisicamente. Uma pessoa que possui corpo de homem, genitália masculina, porém que, psicologicamente acredita ser mulher. Observe-se que, para alguém do gênero masculino que acredita pertencer ao sexo feminino, relacionar-se com um homem não significa ser homossexual, e sim, heterossexual. Daí a complexidade existente na comprovação deste estado de crise de identidade, que geralmente deflagra inúmeros e cotidianos desagrados e humilhações a quem a sofre.

2.3 A identidade de gênero

Diz respeito à persuasão íntima que a pessoa tem de pertencer ou não ao gênero feminino ou masculino, independente de sua formação física. Estudos apontam o surgimento desde a fase intra-uterina, em função:

·De fatores genéticos e hormonais, que vão influenciar na configuração das características do bebê;

·Das atitudes dos pais com relação à aceitação do sexo biológico do seu bebê e da forma como vão tratá-lo e induzi-lo a comportar-se;

·De como será manipulado e incitado fisicamente, o que contribuirá na formação do seu "ego corporal";

·Da formação e do discernimento que o indivíduo terá com relação ao seu corpo, pela reação aos estímulos advindos do seu processo de socialização primária (com a sua família) e secundária (com amigos, na escola).

A medicina define o transexualismo como uma "síndrome de disforia de gênero, causadora de ansiedade, depressão". Para alguns o transexualismo não se enquadra na medicina como uma patologia, e sim como uma enfermidade psicossomática, porém, acredita-se que não se trata de uma doença, e sim de uma incompatibilidade psíquica. É difícil apontar se o problema está no corpo ou na mente, mas o fato é que o corpo conserta-se muito mais facilmente do que o psicológico.

2.4 Outras denominações de sexo enquanto gênero

A definição genética do sexo é o resultado do cruzamento do cromossomo sexual do óvulo, o "X", e o do espermatozóide, "X" ou "Y". Caso o cruzamento resulte em XX, trata-se de um indivíduo do sexo feminino, caso ocorra XY, será um indivíduo do sexo masculino.

Sexo gonodal refere-se aos hormônios produzidos pelas glândulas sexuais, sendo a masculina representada pelos testículos, que produzem o hormônio masculino, a testosterona e a feminina determinada pelos ovários, que produzem o estrogênio, hormônio feminino

O sexo morfológico é aquele que relaciona-se com o que aparenta o órgão genital. O homem possui o saco escrotal, os testículos e o pênis. Já a mulher, possui a vagina, a vulva, o útero, os ovários e as trompas.

O sexo legal ou civil é o que se encontra na certidão de nascimento, feita pelo registro no Cartório de Registro Civil das Pessoas Físicas, e está atrelado ao antes explicado "papel sexual" e a representação civil que o indivíduo terá no gozo e exercício de seus direitos civis e relações sociais.

O sexo psicológico ou psíquico é aquele em que o indivíduo se configura intimamente, através de suas próprias convicções, independente do que aparenta, de sua opção sexual e dos seus órgãos genitais ou registro no cartório das pessoas naturais. Advém de sua própria designação espontânea, de sua perspectiva sexual intrínseca e da percepção íntima de si próprio e do seu estar no mundo.

3. O transexualismo no ordenamento jurídico brasileiro

A expressão "transexual" surge aproximadamente em1950 como qualificação daquele que pretende, de fato, viver no gênero anatomicamente contrário ao seu sexo biológico, independente do uso de hormônios e de mudanças cirúrgicas, por acreditar se enquadrar melhor ao seu sexo psicológico. Durante as décadas de 60 e 70, o termo transexual começou a seu usado para aqueles que almejavam fazer a cirurgia de redesignação de sexo em função da transposição na correlação do sexo anatômico e psicológico.

Encontra-se também vestígios sobre a transexualidade na mitologia Grega, em passagens como as que descrevem protagonistas de mitos como o de Átis, Cibele e Hemarfrodito. Reza a lenda que Cibele, deusa-mãe da Frígia e louvada no mundo antigo, tanto que conundia-se inclusive com Deméter, mãe dos deuses. Cibele possuia um amante chamado Átis, que era também seu filho e o guardião de seu templo. Um dia ela resolveu se casar, e assim, quis livrar-se de Átis, fazendo-o enlouquecer. Ele não só enlouqueceu como castrou-se e cometeu suicídio. Este mito explica o motivo dos sacerdotes desta deusa eram eunucos, justamente para homenagear Átis, adquirindo o costume de mutilar-se em meio à esbórnia, anestesiados pelo álcool e entorpecentes utilizados em rituais.

De acordo com as lições históricas sobre o transexualismo obtidas através do estudo e leitura de Roudinesco & Plon:

O desejo de mudar de sexo existia antes da criação do termo "transexualismo", como bem mostra a história do abade Choisy (1644-1704), que usava roupas de mulher e se fazia chamar de condessa de Barres. Há, ainda, Charles de Beaumont, cavaleiro d´Éon (1728-1810), que serviu à diplomacia secreta de Luis XV vestindo-se de homem ou de mulher conforme as circunstâncias.[3]

Diz-se também que no palácio de Versalhes ocorreu também um evento relacionado ao transexualismo. Segundo relatos populares, Jenny Savalette de Lange, casada por seis vezes, era intimamente ligada ao rei da França, e recebia mimos do mesmo além de uma pensão de mil francos, além de um apartamento no próprio palácio. Após a sua morte foi descoberto que na verdade Jenny não era uma mulher, e sim, um homem.

A primeira transgenitalização ocorreu na Itália, de acordo com relatos históricos, na época em que Nero era imperador. Diz-se que este teria golpeado uma gestante que acabou falecendo. Nero, extremamente arrependido e tomado por remorso, ele procurou alguém muito parecido com a mulher, e a pessoa mais parecida encontrada foi justamente um homem, um jovem chamado Sporo. Nero então mandou que fosse feita a alteração do sexo de Sporo. Relata-se que após a cirurgia de Sporo, este teria se casado com o rei. Apesar de curioso e interessante, pairam dúvidas sobre este relato diante da época em que isto teria acontecido. Dificilmente neste período a medicina estaria avançada a ponto de uma intervenção cirúrgica deste nível ser efetuada. As contribuições que possuímos através das histórias contadas sobre o passado são duvidosas no sentido em que muito advém da interpretação dos próprios historiadores e também de sua imaginação.

Porém, de acordo com o dito popular "onde há fumaça, há fogo", o que nos leva a crer que esta informação, por mais duvidosa que seja, revela que o transexualismo possui raízes através do tempo e da história, mostrando-se muito mais antigo do que muitos podem vir a crer.

Lacan afirma que:

(...) para aceder ao outro sexo, é preciso realmente pagar o preço, justamente aquele da pequena diferença que passa enganosamente pelo Real por intermédio do órgão, justamente, no que ele cessa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que quer dizer ser órgão: um órgão não é um instrumento senão por meio deste, do qual todo instrumento se funda, é que é um significante. Pois bem, é como significante que o Transexual não quer mais isso, e não como órgão. Nisto ele padece de um erro, que é o erro, justamente comum. A paixão do transexual é a loucura de querer libertar-se deste erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas seu significado. O transexual não quer ser mais significado falo pelo discurso sexual, que, eu enuncio, é impossível. Ele comete um engano, é o de querer forçar o discurso sexual que, como impossível é a passagem do Real, querer forçá-lo pela cirurgia.[4]

No âmbito da Psicanálise, inserida na ciência da psicologia, o Transexualismo define-se sendo não um distúrbio físico, mas puramente psíquico da identidade sexual, configurando-se pela convicção irrefutável que possui alguém de que pertence ao sexo oposto

Sigmund Freud, ainda hoje aclamado como pai da psicanálise, em suas pesquisas e estudos sobre a sexualidade humana considerava o sexo e a atitude sexual um aglomerado de atitudes representativas, em diversos âmbitos, sem relação necessária com a sexualidade entendida popularmente, entendimento este que liga intrinsecamente o sexual com o genital. Para a psicanálise o sexual é um conjunto de atividades que dizem respeito às atitudes humanas, como a conquista, o desejo, a ambição, idéias estas que deram ensejo ao conhecido jargão freudiano de que o mundo gira em torno de sexo.

Na década de 80, foi incluída a diagnose de transexualismo no DSM-III (Manual Diagnóstico e estatístico das Desordens Mentais), caracterizando as pessoas que possuíam "disforia genérica" e insistiam em fazer a cirurgia de mudança de sexo. Esta redesignação sexual deveria ser pleiteada pelo transexual por pelo menos dois anos.

Dez anos depois, já em meados do ano de 1994, o Manual Diagnóstico e estatístico das Desordens Mentais se atualizou, mudando a expressão "Transexualismo" por "Desordem da Identidade de Gênero" constante também no CID-10 (Classificação Internacional de Doenças).

Tempos depois, pouco antes do lançamento do DSM-III a expressão Transgênero passa a ser utilizada referindo-se àqueles que acusavam-se e entendiam-se como pertencentes a outro sexo, possuindo identidade de gênero diversa da que possuíam biologicamente. Não se pode considerar esta definição como um diagnóstico formal, profissionais e neófitos o consideram mais fácil.

Há muito tempo, a designação social e cultural do transexual e seus direitos têm evoluído. Alguns países criaram até mesmo organizações próprias, garantindo direitos positivos e na área de saúde. O próprio posicionamento dos juristas destes países também tem convergido para a formação de uma nova perspectiva social, levando em consideração as peculiaridades dos seres humanos e o fato destas requererem um novo posicionamento jurídico, sociológico, etc; o que inditosamente ainda não se aplica no Brasil.

O ordenamento jurídico pátrio e a sociedade brasileira consideram sexo apenas como feminino ou masculino, ou seja, o indivíduo deve enquadrar-se em um dos dois gêneros para ter seu sexo reconhecido bem como para exercitar a plenitude dos direitos civis, embora a realidade traga, cotidianamente, abundantes exemplos de que a questão do gênero já não se circunscreve ao estreito limite acima mencionado.

4. O diagnóstico do transexualismo e as novas perspectivas médicas

De acordo com a Classificação Internacional de doenças, o transexualismo configura-se como:

Um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia para seu corpo tão congruente quanto possível com o seu sexo preferido. (CID – 10 – F.64.0)[5]

A sensação de desconforto gerada pela impropriedade do sexo anatômico supracitada é uma amena definição dos constrangimentos gerados pela incongruência do transexualismo. Muitos relatos de transexuais revelam comportamentos depressivos e nocivos à integridade psíquica e até mesmo física do indivíduo.

Em entrevista com transexuais, alguns relatam que devido ao difícil acesso ao tratamento médico e a própria avaliação de caso, (apenas efetuada em universidades de medicina e através de um esmerado e burocrático processo de investigação) é comum a automutilação em busca da adequação física ou até mesmo, sobre uma outra interpretação, como exteriorização de repulsa ao corpo inadequado, além dos casos em que os transexuais submetem-se às aplicações de hormônios almejando adquirir características do sexo pretendido, o que resulta muitas vezes em enfermidades e até mesmo no óbito.

Porém, vive-se num sistema em que mudanças exigem respaldo não apenas em palração ou divagações. Apesar da forte tendência relativa à aplicação do direito mediante a necessidade de disciplina que se traduz e se explicita através do costume, notória no crescente número de jurisprudências e súmulas vinculantes, ainda há a necessidade de justificação positivista para de certa forma justificar mudanças, dar uma resposta plausível traduzida em vocabulário jurídico técnico àqueles que se opõe diante do que se vê necessário, pois todos são escravos ainda do sistema burocrático que se criou, que vez por outra os faz tropeçar, os enrola e os impede de serem fulminantes. Por isto, parte-se então para o embasamento hermenêutico da necessidade de ostentação da problemática do presente artigo.

5. O projeto de Lei 70-B/95

Um dos grandes avanços jurídicos em relação à garantia dos direitos do transexual sem dúvidas é o projeto de Lei n° 70-B de 1995, de autoria do Deputado José Coimbra, que ainda encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, pioneiro na lida em busca da positivação do direito à redesignação do estado sexual do transexual no nosso ordenamento jurídico. Seu objetivo era acrescentar um novo parágrafo ao artigo 129 do nosso Código Penal e alterar o artigo 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). Sob este prisma, os dispositivos em questão vigorariam da seguinte maneira:

Art. 129. (...)

Exclusão do crime

§ 9°. Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica.

Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.

§ 1° Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.

§ 2° Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro.

§ 4º É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial.

Apesar de ser um projeto inovador de extrema importância e digno de admiração, data vênia, observa-se que o seu conteúdo omite-se sobre os transexuais que não possuem meios de ter acesso à operação, os que ainda não foram avaliados, os que se operaram no exterior, os incapazes, e finalmente, nada diz sobre a modificação do registro daqueles que efetuaram redesignação sexual e possuem filhos e nem sobre o registro destes.

É de suma importância que o advento de uma nova legislação, ou até mesmo a modificação da legislação antiga se esgote quanto a possibilidade de revisão e retificação após aprovada, o que faz com que espere-se de um projeto de lei sua plenitude quanto ao assunto.

O fato do projeto de lei não ter abarcado as conseqüências inerentes à mudança do registro do transexual em relação ao seu filho pode gerar insegurança e rejeição ao projeto, por receio que esta alteração gere mais conflitos do que os que a legislação atual vêm causando.

6. O direito à intervenção cirúrgica

Apesar de ainda não aprovado o projeto de lei 70-B/95 que visa regularizar de vez no âmbito legislativo a situação dos transexuais, o direito a intervenção cirúrgica vêm se solidificando há cada dia, já que este procedimento já se encontra regularizado pelo CFM. Porém, para ser alcançado, é necessário ser efetuado um estudo rebuscado e minucioso acerca do real enquadramento do caso ao transexualismo, processo este que somente é realizado através de junta médica de universidades de medicina, tendo duração de no mínimo dois anos.

O próprio artigo 194 da Constituição Federal de 1988 assegura o direito à realização gratuita da cirurgia de mudança de sexo sob perspectiva analógica. Em decisão unânime, a 3ª turma, 4ª Região, do Tribunal Regional Federal (TRF), em agosto de 2007, deu um prazo de 30 dias para que o Sistema Único de Saúde (SUS) inclua a cirurgia de mudança de sexo na lista de procedimentos cirúrgicos. A ação pública (AC2001.7100.26279-9 TRF) foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União, alegando que possibilitar a cirurgia de mudança de sexo a transexuais pelo SUS é um direito constitucional.

Neste sentido, julgou-se:

REGISTRO CIVIL - RETIFICAÇÃO - ASSENTO DE NASCIMENTO - TRANSEXUAL - ALTERAÇÃO NA INDICAÇÃO DO SEXO - DEFERIMENTO - Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental - Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo. (Apelação Cível n. 209.101-4 - Espirito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de Direito Privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V.U.).[6]

Ademais, já se considera esvaída a idéia de que a cirurgia de mudança de sexo representaria lesão corporal, porém, a alteração do dispositivo legal art. 129 do Código Penal seria de grande valia para fins de exaurir tal entendimento.

7. O direito a alteração do nome

Por tantas vezes ouve-se dizer, no domínio popular, que o único bem inerente ao ser humano é o seu nome. Tal percepção funda-se no fato que o homem pode perder todo dinheiro que tem, pode perder seus bens, sua família, sua vontade de viver e inclusive a sua vida, porém, mesmo em memória póstuma, persistirá seu nome; o nome de uma pessoa a torna denominada no mundo. Quem não tem nome é como se não existisse, não tem como ser individual e propriamente chamado, apontado, não se relaciona socialmente, não consta nos registros e estatísticas. , não é, enfim, cidadão. Talvez seja em virtude disso que, antes de o ser humano nascer, já tecem-se considerações e cogitações sobre como será chamado.

Em diversas culturas ao redor do mundo o nome traduz a sua importância de diversas formas. Os orientais, por exemplo, acreditam que o nome diz respeito à própria missão que o indivíduo tem a efetuar na vida. A numerologia acredita que o nome que recebemos deve ser inclusive modificado a fim de colaborar com o bom andamento de nosso "destino".

Menos além, o próprio direito confere àqueles que por ventura ou desventura, recebam nome que tenha significado ambíguo ou vergonhoso, passível de causar ultraje a sua reputação, a faculdade de modificá-lo em prol de seu bem estar, e ainda, preventivamente, a própria lei dos registros públicos (Lei 6.015/1973) proíbe o registro de nomes considerados esdrúxulos.

Outro exemplo claro da importância que possui o nome no âmbito jurídico é a alteração ou manutenção do nome devido ao divórcio. O legislador do nosso Código Civil de 2002 ao disciplinar esta questão acabou impondo uma enorme barreira com relação à manutenção do nome de casado após o divórcio, o que gera uma questão controversa no tocante à interpretação desta problemática a luz dos princípios constitucionais e ao direito da personalidade, pois quem acrescenta o sobrenome do outro passa ter aquele bem como seu, como integrante da sua personalidade, direito este indisponível.

Inúmeros são os exemplos que poderiam ser dados com o intuito de demonstrar o que o indivíduo transexual pode sofrer ao longo de sua vida. Portanto, não se vislumbra o porquê de embargar-se que, aquele que mesmo após ter sofrido processo tão rigoroso, moroso e burocrático a fim de obter legitimidade reconhecida em tantos aspectos (médico, psicológico, antropológico, sociológico, jurídico...) para a alteração de seu sexo através da cirurgia de mudança de sexo, não possa ter legalmente alterado seu gênero, e com isso, seu nome.

Subsistem levianamente, porém não desimportantes para o nosso próprio convencimento, algumas alegações de que tal alteração poderia vir a dar ensejo à fraude. Tais posicionamentos representam contra a possibilidade de alteração de registro civil do transexual, mesmo daquele já submetido à cirurgia de alteração sexual por entender que tal modificação seria ensejadora de fraude. Tal alegação soa, no mínimo, como irrisória, e vergonhoso é o fato de tal posicionamento vir a embargar o projeto de lei supracitado, o que contribui com a protelação da total aprovação e sua eficácia.

Ora, de que tamanho (imensa) seria a engenhosidade e a insanidade daquele que altera seu próprio sexo a fim de criar relações jurídicas fraudulentas! Triste é constatar que existem meios muito menos trabalhosos de se fraudar e ludibriar o sistema. Agir de má-fé desta maneira seria fraudar a si mesmo, e neste caso, queda claro que nem fins justificariam os meios. É torpe tal sustentação, ofende ainda a dignidade daqueles que levam quase sempre uma vida inteira de sofrimento e humilhações, fora outros degradantes, na esperança de alcançar a harmonia entre o que se entende ser pelos outros e o que se é no íntimo, a luta que persiste na tentativa de se adequar a um sistema falho, pelas brechas que este mesmo permite.

Sobre a intrínseca relação existente entre o nome e entendimento pessoal, relativo à dignidade da pessoa humana e o seu direito à cidadania, já posicionou-se a jurisprudência:

O transexual primário, submetido à cirurgia de mudança de sexo, que teve seu pedido de alteração de prenome em assento de nascimento deferido, deve também ter corrigido o seu estado sexual, eis que, se o requerente se submeteu a intervenção cirúrgica e passou a ter as principais características morfológicas de uma mulher, carece de sentido manter em seu assento de nascimento indicação de prenome e sexo que não mais correspondem à maneira como aparece em suas relações com o mundo exterior. Admitir o contrário significa impedir ou então dificultar o exercício das atividades habituais dos seres humanos, negando lhe seu direito à cidadania. (Ap. 209.101 4/0 00 – Primeira Câmara Cível – j. 09.04.2002 – Rel. Des. Elliot Akel – Revista dos Tribunais Vol.801).[7]

Destarte, assimila-se que a hipótese de descarte da perspectiva de alteração do nome pela justificativa de possível fraude é completamente infundada, o que se espera ser de logo levado em consideração na próxima sessão em que estiver em pauta o projeto de lei 70-b, já que subsiste então, motivo nenhum para a ainda não aprovação do mesmo, o que só atrasa e burocratiza o alcance de um direito já consolidado por diversas jurisprudências e entendimentos afora.

A própria Carta Magna brasileira torna clara a possibilidade do alcance da perspectiva em questão ao auferir ao princípio da dignidade da pessoa humana a qualificação de princípio embasador da nossa República. Princípio este catalisador não só do ordenamento jurídico brasileiro, mas do sistema mundial de proteção dos Direitos Humanos, como deixa ver a decisão abaixo:

Apelação cível. Alteração do nome e averbação no registro civil. Transexualidade. Cirurgia de transgenitalização. O fato de o apelante ainda não ter se submetido à cirurgia para a alteração de sexo não pode constituir óbice ao deferimento do pedido de alteração do nome. Enquanto fator determinante da identificação e da vinculação de alguém a um determinado grupo familiar, o nome assume fundamental importância individual e social. Paralelamente a essa conotação pública, não se pode olvidar que o nome encerra fatores outros, de ordem eminentemente pessoal, na qualidade de direito personalíssimo que constitui atributo da personalidade. Os direitos fundamentais visam à concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, atua como uma qualidade inerente, indissociável, de todo e qualquer ser humano, relacionando-se intrinsecamente com a autonomia, razão e autodeterminação de cada indivíduo. Fechar os olhos a esta realidade, que é reconhecida pela própria medicina, implicaria infração ao princípio da dignidade da pessoa humana, norma esculpida no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, que deve prevalecer à regra da imutabilidade do prenome. por maioria, proveram em parte. (segredo de justiça) (Apelação Cível nº 70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Maria Berenice Dias, julgado em 05/04/2006).[8]

O nosso Código Civil de 2002 confere ao cidadão o direito ao nome, incluso neste o prenome e o sobrenome. A personalidade jurídica e seus direitos são inerentes a toda pessoa natural, inclusive ao nascituro, pois é aptidão genérica para ser sujeito de direito e para ser titular de direitos da personalidade e neste quadrante de personalidade jurídica compreendem-se cinco apontamentos básicos, não taxativos, que a compõe, sendo estes a integridade física, a vida, honra, intimidade, imagem e o nome. Se são estes componentes do ícone pertencente a todo e qualquer ser humano, toda pessoa natural, negar ao transexual o poder de dispor destes direitos é o mesmo que subestimá-lo a condição de não humano, indigno; seria o mesmo que tratá-lo como escória.

Neste sentido, merece aplausos o posicionamento jurisprudencial:

"É preciso, inicialmente, dizer que homem e mulher pertencem à raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência. Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito a identidade pessoal é um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, é o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo. A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal forma-se em estreita conexão com uma pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade, etc., para dizer assim, ao final: se bem que não é ampla nem rica a doutrina jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a temática não tem sido alienada para o direito vivo, quer dizer para a jurisprudência comparada. Com efeito, em direito vivo tem sido buscado e correspondido e atendido pelos juízes na falta de disposições legais e expressa. No Brasil, ai esta o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a busca da justiça. Por esses motivos é de ser deferido o pedido de retificação do registro civil para alteração de nome e de sexo. (Apelação Cível nº 593110547, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, julgado em 10/03/1994). [9]

Diante do exposto, com relação à legitimidade de alteração do nome, entende-se enfim que mesmo sem existir disposição na lei de registros públicos com relação à possibilidade de alteração do nome mediante a mudança de sexo, por analogia pode-se vislumbrar que, já que existe positivada a impossibilidade de registro de nome que venha a causar constrangimento ou humilhação, entende-se que se registrado desta forma um indivíduo, este mesmo pressuposto será cabível para alteração de nome que venha a expor a pessoa ao ridículo, como no caso do transexual que após ter seu sexo e gênero efetivamente alterado, jamais poderá continuar respondendo pelo mesmo nome que respondia antes, se assim entender necessário.

2005.001.01910 - APELACAO CIVEL -TJ/RJ

QUARTA CAMARA CIVEL

DES. LUIS FELIPE SALOMAO - Julgamento: 13/09/2005

Apelação. Registro Civil. Transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo, postulando retificação de seu assentamento de nascimento (prenome e sexo). Adequação do registro à aparência do registrando que se impõe. Correção que evitará repetição dos inúmeros constrangimentos suportados pelo recorrente, além de contribuir para superar a perplexidade no meio social causada pelo registro atual. Precedentes do TJ/RJ. Inexistência de insegurança jurídica, pois o apelante manterá o mesmo número do CPF. Recurso provido para determinar a alteração do prenome do autor, bem como a retificação para o sexo feminino.

1992.001.06087 - APELACAO CIVEL- TJ/RJ

QUARTA CAMARA CIVEL

DES. MARDEN GOMES - Julgamento: 04/03/1993

Retificação de registro de nascimento. Mudança de sexo. A mudança aparente, ou seja, exteriormente, de órgãos genitais, em virtude de operação cirúrgica, vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não implica em transformar um homem numa mulher, metamorfose que a natureza não admite e a engenharia genética ainda não logrou atingir. Por conseguinte, enquanto não editadas leis especificas sobre o assunto, improsperável se mostra o pedido de retificação de registro. [10]

Visto o supracitado, pergunta-se o porquê de tanta delonga para aprovação do projeto de lei 70-b e até mesmo qual o motivo de ainda não ter sido disciplinado, mesmo que através de súmula vinculante, a retificação do nome no caso de transexuais operados.

8. Considerações Finais

Uma das mais importantes máximas que regem os nossos princípios constitucionais como o da equidade e igualdade, e até mesmo um dos mais comuns preceitos guiadores do sistema jurídico mundial, como o dos direitos internacionais e humanos, sem dúvida, é o de que todos são iguais perante todos e ao mundo, respeitando-se o fato de que somos todos diferentes. Esta idéia já serviu como inspiração para obras de diversos âmbitos artísticos e científicos. Tudo que parte do pressuposto de atender a minuciosa individualidade do ser humano, está intimamente ligado com a sua satisfação, pois, no âmbito com as coloridas peculiaridades que colorem os seres humanos, todo indivíduo gosta em maior ou menor medida, de possuir as coisas adequadas às suas circunstanciais necessidades.

A responsabilidade com a qual arca-se por fazer aquilo que tem vontade é o encargo de ser taxado por seus próprios preconceitos, pois quem é isento de preconceito simplesmente não se importa em ser discriminado por ser o que é, e só não é discriminado por ser autêntico aquele que não vive em sociedade. São escravos de seus próprios estereótipos, fruto de sua própria crise existencial. Ser cidadão significa abrir mão da individualidade. O mundo em que se vive é o espelho do que se é, e o que se é, é o reflexo do mundo em que se vive.

Ao que se constitui o deve-ser, o direito surge com a perspectiva de sistematizar o esquema de limites da nossa liberdade em função do bom convívio devido justamente às diferenças existentes entre as pessoas, diferenças estas que são a causa das lides e conflitos em razão de diferentes formas de pensar, agir e julgar. A lei deve ser bom senso, deve ser límpida, clara, trivial e cabível a ponto de ser, de fato, justa, para que exista consenso sobre a eleição desta como resolução de um impasse ou defesa de um direito.

Destarte, indaga-se o porquê da tendência dos sistemas jurídicos caminharem para o sistema da common Law, sistema em que as leis modificam-se pelo costume, através de decisões dos tribunais, e não atos legislativos, o que garante maior celeridade e evita que a lei perca a aplicabilidade em função de inovações, dando movimento ao sistema jurídico, diminuindo a morosidade na criação de novos dispositivos. Prova desta propensão é o crescente número de súmulas e a criação das súmulas vinculantes.

Destarte, observa-se que a falta de atualização das nossas leis é um agravante para a insatisfação popular, devido à dificuldade de alcançar o gozo efetivo dos direitos e êxito na busca destes através do sistema judiciário. Os nossos dispositivos legais, é claro, tem que ser encarados com o respeito de não tratá-los como volúveis e levianos, porém, diante da explícita inadequação de uma verdade trazida à tona através da modernização da cultura social não se deve boicotar ou menosprezar a necessidade de mudança.

O transexualismo, enquadrado por uns como uma enfermidade psíquica, para outros como um distúrbio psicológico, para alguns como indignidade é para muitos uma realidade, realidade esta que presente em diversos lugares, lugares muito próximos às vezes, inclusive imperceptíveis a olho nu.

É lamentável constatar que muitas vezes a negação de um direito, legitimamente inato ao ser humano, o direito de entender-se como quem é, de adequar o seu nome ao seu sexo, o seu corpo à sua alma, é como negar-lhe o direito de identificar-se como pessoa digna que é, é impedir o indivíduo de se identificar consigo mesmo, é por fim, ferir diretamente a sua dignidade.

A historicidade e a racionalidade são as duas dimensões necessárias para entender o porquêdos direitos, isto é, sua fundamentação, e a positividade como resposta à função dos direitos, isto é, seu para quê.

A utilização de conceitos racionais para colaboração do sistema de embasamento legal se dá historicamente e não tão somente abstrata, ensejada por um motivo histórico.

Se utilizássemos as lógicas de validade, eficácia e justiça do Direito e utilizássemos para a compreensão dos direitos humanitários, esse estudo se referiria à justiça, enquanto o que concernente à positivação, mitiga a eficácia e à validez, conceitos este que jamais poderiam caminhar sozinhos, de acordo com o pensamento normativista do deve ser.

Através da positivação, deve ser concebido primeiramente a função do poder que possui o estado, qual deverá ser sempre democrático, sempre em busca da absorção dos valores morais que se entende como corretos.

A dosagem igualitária que deve efetuar o Estado entre conceitos morais e preceitos legais é uma grande arma para alcançar-se um consenso com relação aos direitos fundamentais.

Mister se faz atentar para o fato de que não é pejorativo considerar o ordenamento legislativo como dinâmico. Este só não pode ser volúvel. Prendendo-se aos princípios constitucionais e preceitos fundamentais norteadores da nossa Carta Magna, pode se mudar de idéia, inclusive, sobre muitas coisas. O poder legislativo, executivo e jurídico se engrandece com novas contribuições advindas de transformações culturais, tecnológicas e científicas, acrescidas através do tempo e da história.

Por tantos quantos argumentos, diante das inúmeras provas leais da legitimidade do direito abordado, bem como da discrepância existente na lida com este tema, inclusive a quase inexistência de teses doutrinárias específicas deste assunto, insurge-se contra a discriminação, a equidade, e através da crítica de novas mentes pertencentes àqueles juristas nascidos no mundo em que já encontra-se esta problemática, almeja-se conseguir operar um direito atual e para todos.

9. Referências

ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção Constitucional do Transexual. São Paulo: Saraiva, 2000.


CHAVES, Antonio. Direito À vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplante. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.


CHORERI, Raul. Transexualismo e Identidade Pessoal: Cirurgia de Transgenitalização. In BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo (organizadores). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.


DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: o preconceito & a justiça. 2. Ed. Ver. Atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.


DINIZ, Maria Helena. O estado atua do biodireito. 2. Ed. Aum. E atual de acordo com o novo Código Civil (Lei 10.406, de 10-01-2002). São Paulo: Saraiva, 2002.



 

FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil: Teoria Geral. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2005.

LACAN, Jaques; "…ou pior: Seminário 1971-1972". Tradução Andréa Tenório Diniz Gonçalves e outros. [S.1.]. Publicação Interna da associação Freudiana Internacional.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil: Tendências, in Revista dos Tribunais, vol. 779, 2000.

Normas constitucionais nas relações privadas. Revista da faculdade de direito da UERJ, n. 6 e 7, 1998/1999.

PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo: o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003.

ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel, ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.


SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª edição, revista e atualizada nos termos da Reforma Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.


SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual: Estudo sobre o transexualismo: Aspectos médicos e jurídicos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

TEPEDINO, Gustavo.Temas de Direito Civil. 3ª edição atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.



[1] Normas constitucionais nas relações privadas. Revista da faculdade de direito da UERJ, n. 6 e 7, 1998/1999, p. 63-64

[2] MORAES, Maria Celina Bodin de. Constituição e Direito Civil: Tendências, in Revista dos Tribunais, vol. 779, 2000, pp. 47-78

[3]ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel, ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. P. 764.

[4] LACAN, Jaques; "…ou pior: Seminário 1971-1972". Tradução Andréa Tenório Diniz Gonçalves e outros. [S.1.]. Publicação Interna da associação Freudiana Internacional. P.14.

[5] Classificação Internacional de Doenças – 10 – F.64.0

[6] Apelação Cível n. 209.101-4 - Espirito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de Direito Privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V.U

[7] Ap. 209.101 4/0 00 – Primeira Câmara Cível – j. 09.04.2002 – Rel. Des. Elliot Akel – Revista dos Tribunais Vol.801

[8] Apelação Cível nº 70013909874, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Maria Berenice Dias, julgado em 05/04/2006

[9] Apelação Cível nº 593110547, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Luiz Gonzaga Pila Hofmeister, julgado em 10/03/1994

[10] Apelação Cível nº 1992.001.060, Quarta Camara Cível, Tribunal de Justiça do RJ, relator: Marden Gomes, julgado em 04/03/1993


Autor: Maria Luiza Reuter


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