O Estado Como Máquina de Arrecadação de Tributos e a Sutileza da Auto-Fiscalização Imposta ao Contribuinte



PERICLES BENSABATH BEZERRA DE MENEZES

Contador, Auditor Independente, Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Jorge Amado – Salvador/BA

SUMÁRIO: 1. A Relação de Arrecadação entre o Estado e o Contribuinte; 2. O Poder Fiscalizador do Estado; 3. O Contribuinte e a Auto-fiscalização; Conclusão; Referências Bibliográficas.

1. A Relação de Arrecadação entre o Estado e o Contribuinte

É praticamente do conhecimento de todas as pessoas com plena capacidade civil e com alguma experiência profissional que o Estado é como um imenso dragão faminto, ansioso por arrecadar cada vez mais impostos, de tal modo que, sem pena e sem piedade, chega a criar avançados métodos informatizados de fiscalização, cercando e controlando todos os contribuintes, sejam pessoas físicas, sejam pessoas jurídicas, através da poderosa máquina estatal de arrecadação tributária.

Sabemos que toda essa arrecadação possui uma finalidade. O Estado é um ente que por si só consome uma quantidade enorme de recursos, e quem banca quase todo esse gasto é o contribuinte. Então temos de um lado o Estado como sujeito ativo e o contribuinte como sujeito passivo dessa relação onde este último é quem produz a maior parte das riquezas oriundas das atividades econômicas (direta ou indiretamente) e, parte dessas seguem em direção ao sujeito ativo, sob a forma de tributos, para que seja utilizada na própria manutenção estatal e para proporcionar – latu sensu - serviços à população como uma contraprestação daquilo que foi arrecadado, embora o fundamento do poder fiscal do Estado não seja o de troca, pois em alguns casos não há nenhuma contraprestação por parte do Estado relativo aquilo que foi arrecadado.

Nessa mesma linha de raciocínio, o grande e respeitado professor Sérgio Pinto Martins define da seguinte forma:

Com fundamento em sua soberania, o Estado exige que seus súditos transfiram para ele parte dos seus rendimentos, visando custear os fins de que necessita. O Estado tem custos para a manutenção de seus fins, como na manutenção de repartições públicas, da própria máquina de arrecadação, dos vencimentos dos funcionários públicos, da limpeza das ruas, da segurança pública etc. Assim, surge o tributo, como a necessidade de obter receita de seus súditos para fazer frente aos gastos que lhe são inerentes. O poder de tributar do Estado consiste justamente de uma parcela da soberania estatal, de poder exigir tributos dentro de seu território.(p.34)

Obviamente, para que o Estado exerça o domínio nessa relação de arrecadação é necessário que ele possua outro poder, além desse que é o poder de arrecadar. Surge então o poder de fiscalizar do Estado.

2. O Poder Fiscalizador do Estado

Já se viu em filmes épicos a figura dos cobradores de impostos. Aqueles homens que saiam acompanhados de alguns soldados representando o poder coercitivo do Estado, causando pânico e revolta nos moradores dos vilarejos em que chegava, cobrando em moedas a parte que cabia ao rei ou ao senhor das terras, ignorando crises, guerras ou qualquer outra situação. Não importava o que tivesse acontecido. A parte do imposto teria ele que levar, mesmo que fossem em unidades animais de bois, ovelhas, porcos, galinhas etc. Cabia a esses cobradores de impostos verificar a situação econômica dos camponeses e, ao primeiro sinal de melhora das situações financeiras ou aumento do seu rebanho, o imposto cobrado era aumentado radicalmente. Raro não eram as revoltas e conflitos entre as partes, como também comum eram as mortes e prisões dos camponeses.

Com o Estado moderno surgiram leis que amparavam tanto o próprio Estado, como também o contribuinte. Abusos que no passado eram cometidos passaram a ser proibidos. Mortes decorrentes da recusa do pagamento de impostos deixaram de existir e as prisões dependiam da ocorrência do devido processo legal. Surgiram direitos e garantias fundamentais amparados nas constituições, leis civis e criminais, dentre outras. Houve uma enorme evolução social, mas nada disso foi suficiente para reduzir a imensa fome estatal de arrecadação.

Com o aumento dos índices populacionais o Estado já não podia contar com os cobradores de impostos nos moldes da Idade Média, por exemplo. Teria que utilizar outros métodos e, esses métodos seriam os oriundos da tecnologia: a informática.

Com o surgimento da informática o Estado percebeu que possuía uma poderosa ferramenta ao seu favor: o computador e o sistema eletrônico de processamentos de dados.

O antigo cobrador de impostos continua a existir, só que com outra nomenclatura. Pode ser ele o Fiscal de Rendas, o Auditor Fiscal ou alguém com outra denominação. A figura humana continua sendo necessária para fazer funcionar a máquina arrecadadora, contudo os métodos de fiscalização sofreram algumas alterações. Apenas há duas décadas atrás o Estado ainda tinha como muito atuante o fiscal, como aquele funcionário estatal que carregava uma pasta cheia de papéis da repartição a qual era lotado e saía a visitar as empresas e a pedir que lhe fossem apresentados os documentos oficiais de faturamento e as respectivas guias de recolhimento dos tributos decorrentes das suas respectivas atividades. Era um processo lento, criterioso, oneroso e que dava margem à existência de dois grandes problemas: corrupção e sonegação fiscal.

De lá pra cá esse processo foi evoluindo e a informática foi a principal ferramenta arrecadadora e fiscalizadora a serviço do Estado. Os computadores ficam mais ágeis e eficientes a cada período de poucos meses e a engenharia de sistemas de informação se desenvolve estratosfericamente. Ocorrem avanços atrás de avanços e o Estado usa todo esse aparato ferozmente, sem medir esforços para arrecadar cada vez mais e mais.

Se, o Estado, cobra tributos em razão da previsão legal que determina o pagamento da exação compulsória, o poder fiscal do Estado, por sua vez, é uma faculdade. Poderá ele usar ou não esse poder e caberá apenas a ele exercê-lo quando assim desejar. Trata-se de um poder irrenunciável e indelegável.

3. O Contribuinte e a Auto-fiscalização

De duas décadas atrás, até os dias atuais, o Estado vem utilizando a informática de maneira sutil e eficiente para fazer com que os contribuintes executem o fenômeno da auto-fiscalização. Isso não se deve apenas à elaboração da declaração anual do imposto de renda. Trata-se da criação de muitas outras obrigações fiscais que visam fornecer ao fisco as informações de que necessita para gerar os lançamentos tributários. São declarações compulsórias que, se não elaboradas adequadamente e transmitidas dentro dos prazos estabelecidos levarão o contribuinte à condição de omisso e terá como conseqüência a imposição de pesadas multas por parte do fisco. Tudo sempre mediante previsão legal, com as devidas publicações e observâncias dos prazos para que vigorem livremente, mas ocorrendo sem que se perceba que é o próprio contribuinte quem está fazendo o papel do fisco. É ele que se fiscaliza para aquele que deveria fiscalizá-lo. É o contribuinte quem gera as informações para o lançamento tributário e até mesmo assume a condição de omisso quando, findo o prazo para a transmissão de alguma das declarações, não a faz.

O pensamento de que cabe ao Estado exercer esse papel fiscalizador na figura da autoridade administrativa se faz claro nas afirmações do professor e tributarista Robinson Sakiyama Barreirinhas que diz:

A autoridade administrativa haverá de verificar a ocorrência do fato gerador previsto em lei, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e notificá-lo a pagar, além de aplicar a penalidade eventualmente cabível (é o lançamento tributário, conforme o art. 142 do CTN). (p.31)

Na prática isso quase que não ocorre mais, cabendo ao contribuinte exercer este papel de fiscalização de si mesmo. Há críticas doutrinárias a este dispositivo, principalmente quanto aos casos de lançamento por homologação (CTN art. 150) em que, já que é o próprio contribuinte, sujeito passivo, quem verifica a ocorrência do fato gerador, calcula e recolhe o tributo. Por fim, cabe ao fisco apenas a homologação desta atividade.

Para se ter uma idéia, nas três esferas administrativas (Federal, Estadual e Municipal) foram criadas diversas espécies de declarações. Algumas delas: CPMF - Declarações da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira; Dacon - Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais; DCTF - Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais; Decred - Declaração de Operações com Cartões de Crédito; Derc - Declaração de Rendimentos Pagos a Consultores por Organismos Internacionais; Dimof - Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira; DIPJ – Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica (inclusive Imunes e Isentas); Dirf - Declaração do Imposto de Renda Retido na Fonte; DSPJ - Declaração Simplificada da Pessoa Jurídica (Simples e Empresas Inativas); GFIP/SEFIP - Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social, todas federais.

No site da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, logo na página inicial foi publicado o seguinte aviso:

¨Todos os contribuintes do ICMS pessoa jurídica da Bahia ou de outros Estados, que façam venda de mercadorias para órgãos ou entidades da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta estão obrigados a transmitir a Nota Fiscal – Compra Legal.¨

Além da transmissão obrigatória para o fisco da nota fiscal acima mencionada, o site disponibiliza para download outros programas para que o contribuinte transmita compulsoriamente. São eles: DAM – Declaração e Apuração Mensal do ICMS; DME – Declaração de Movimento Econômico;GIA-ST – Guia Nacional de Informação e Apuração do ICMS Substituição Tributária; TED – Transmissão Eletrônica de Documentos e o Validador Sintegra.

Cada um desses programas é uma ferramenta fiscalizadora que desonera o Estado enquanto onera o contribuinte. Permite que o Estado diminua a sua atuação como ente fiscalizador enquanto obriga o contribuinte a se auto-fiscalizar, exercendo assim uma atividade de competência exclusiva do Estado, conforme a classificação de Cláudio Carneiro que assim diz: ¨Considerando que a competência tributária é INDELEGÁVEL, a expressão privativo deve ser interpretada restritivamente, ou seja, ¨exclusivo¨.(p.33)

Conclusão

O contribuinte brasileiro é sutilmente manipulado no sentido de que passe a exercer auto-fiscalização, fornecendo ao Estado todas as informações que este deveria obter através do exercício pleno das atividades fiscalizadoras que possui, privativa e exclusivamente. Trata-se de uma manipulação abusiva caracterizada pela transferência da responsabilidade estatal que além de onerar o agente passivo da relação tributária, sobrecarrega o contribuinte de obrigações que visam também, aumentar a arrecadação mediante a imposição de altas penas pecuniárias pelo não cumprimento das obrigações impostas, como as de elaborar e transmitir as declarações com as informações fiscais do próprio contribuinte.

Essa transferência das responsabilidades estatais e, em alguns casos, a omissão estatal em prestar alguns serviços públicos ganhou força a partir do primeiro mandato do Ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, quando à época se iniciou o fenômeno da globalização da economia mundial.

Desde então normas são criadas no sentido de sufocar cada vez mais os contribuintes enquanto os governantes utilizam o dinheiro público com viagens e mordomias, gastos descontrolados, aumento do déficit público de forma completamente alheia às necessidades das classes menos favorecidas que correspondem à maior parcela da população brasileira.

A auto-fiscalização é apenas mais uma das injustiças onde o Estado apenas impõe a sua vontade sem que nenhuma das esferas do poder perceba que ao criar, aprovar e julgar essas leis quando à sua constitucionalidade, estão ajudando o dragão a cuspir fogo nas suas próprias ventas.

Referências Bibliográficas

MARTINS, Sergio Pinto. Manual de Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

BARREIRINHAS, Robinson Sakiyama. Manual de Direito Tributário. 1. ed. São Paulo: Editora Método, 2006.

CARNEIRO, Cláudio. Manual de Direito Tributário.Teoria e prática com mais de 650 exercícios. Elsevier, 2006.


Autor: Pericles Bensabath Bezerra de Menezes


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