Saussure e Seu Curso de Lingüística Geral



APRESENTAÇÃO DA OBRA

Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure, organizado por seus alunos Charles Bally e Albert Sechehaya, foi traduzido para o português por Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein e editado pela Editora Cultrix de São Paulo em 2008, mas há muitas outras edições anteriores a essa. É uma obra póstuma do autor e inaugura a fase estruturalista dos estudos da linguagem. Traz os pressupostos teórico-metodológicos dessa escola que acabam influenciando outras ciências sociais.

Ferdinand de Saussure (Genebra, 26 de novembro de 1857 - Morges, 22 de fevereiro de 1913) foi um lingüista suíço, cujas elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento da lingüística enquanto ciência e desencadearam o surgimento do estruturalismo. Além disso, o pensamento de Saussure estimulou muitos dos questionamentos que comparecem na lingüística do século XX. Filho de um eminente naturalista, foi logo introduzido aos estudos lingüísticos por um filólogo e amigo da família, Adolphe Pictet. Saussure estudou Física e Química, mas continuou fazendo cursos de gramática grega e latina. Por fim, convenceu-se que sua carreira estava nos estudos da linguagem e ingressou na Sociedade Lingüística de Paris. Estudou línguas européias em Leipzig e aos vinte e um anos publicou uma dissertação sobre o primitivo sistema das vogais nas línguas indo-européias, a qual foi muito bem aceita. Defendeu sua tese sobre o uso do caso genitivo em sânscrito, em Berlim, e depois retornou à Paris, onde passou a ensinar Sânscrito, Gótico e Alto Alemão e depois Filologia Indo-Européia. Retornou a Genebra, onde lecionou sânscrito e lingüística histórica em geral. Em 1906 foi encarregado de ensinar Lingüística Geral, e com isso realizou conferências que apresentaram conceitos que mudaram completamente o modo de encarar a lingüística.

Saussure entendia a Lingüística como um ramo da ciência mais geral dos signos, que ele propôs fosse chamada de Semiologia. Graças aos seus estudos e ao trabalho de Leonard Bloomfield, a Lingüística adquire autonomia e seu objeto e método próprios passam a ser delineados. Seus conceitos serviram de base para o desenvolvimento do estruturalismo no século XX.

Paralelamente ao trabalho teórico, mais tarde reunido nessa obra, Saussure realizou, entre 1906 e 1909, um outro estudo que é comumente chamado de Os anagramas de Saussure. Nesse trabalho paralelo, o mestre genebrino perscrutou um corpus (amostra) de poemas clássicos para tentar provar a existência de um mecanismo de composição poética baseado na análise fônica das palavras; mecanismo este formado pelo anagrama e pelo hipograma. O hipograma (palavra-tema) é o nome de um deus ou de um herói diluído foneticamente no poema. O anagrama, por sua vez, é o processo que propicia a diluição do hipograma nos versos.

Saussure morreu prematuramente em 1913. Após sua morte, seus alunos buscaram o arquivo de notas do mestre no intuito de publicar um livro que apresentasse a doutrina exposta em seus cursos e que abria novos horizontes para a lingüística. Contudo, as buscas foram frustradas e nenhuma nota foi encontrada. Assim, liderados por Charles Bally e Albert Sechehaye, resolveram compilar e comparar as notas dos alunos feitas durante as aulas. Esse trabalho culminou na obra Curso de Lingüística Geral (Cours de Linguistique Générale), publicada em 1915 e objeto deste trabalho, ainda hoje leitura obrigatória para todos os estudantes e pesquisadores de lingüística.

1. VISÃO GERAL DA HISTÓRIA DA LINGÜÍSTICA

Antes do surgimento da Lingüística como ciência, os estudos da língua passaram por três fases sucessivas e distintas: a Gramática, que visava unicamente a formular regras para definir o que é certo e o que é errado; a Filologia, que se preocupou em comparar textos de épocas diferentes para determinar as peculiaridades de cada autor, antecedendo a Lingüística Histórica; e a Gramática Comparada, que, ao justapor línguas diferentes, como o sânscrito, o grego e o latim, concluiu que todas pertenciam à mesma família, sendo possível, por exemplo, explicar as formas de uma língua pelas formas de outra.

Essa última fase, a da Gramática Comparada, desenvolvida por Franz Bopp, descobriu aspectos importantes para o desenvolvimento dos estudos das línguas, como por exemplo, a existência de uma relação entre os paradigmas gregos e latinos. Ele percebeu, também, que o paradigma sânscrito deixa clara a noção de radical, elemento determinável e fixo numa série de palavras da mesma família. Assim, o sânscrito ajudou muito as pesquisas lingüísticas, pois acabou esclarecendo outras línguas.

Desde o início dos estudos lingüísticos, surgiram muitos lingüistas importantes como Jacob Grimm, Pott, Kuhn, Aufrecht, Max Müller, Curtius e Schleicher. Alguns deles se aprofundaram nos estudos comparativos, conciliando a Gramática Comparativa com a Filologia, fases que, como vimos, antecederam a Lingüística, fazendo surgir, assim, a escola comparatista. Porém, tal escola nunca se preocupou em determinar a natureza das línguas. Sem essa preocupação, ela não se constituiu em uma ciência, já que não estabeleceu métodos. Nota-se que a condição básica para o surgimento de uma ciência é o estabelecimento de métodos. Essa escola foi exclusivamente comparativa, em vez de histórica. Além disso, ela nunca se questiona os motivos de fazer tais comparações, portanto, dela nada se pode concluir.

Esses estudos comparativos acabaram por não corresponder à realidade e ser estranhos às condições da linguagem, por isso foram considerados excêntricos e errôneos. Porém, esses erros acabaram sendo importantes, pois originaram as pesquisas científicas e os estudos de Lingüística propriamente ditos. Isso está bem claro: os erros de uma teoria levam ao surgimento de outras. A comparação é apenas um método.

Assim, tem início a Lingüística como uma ciência da linguagem. Ela nasceu do estudo das línguas românicas e das germânicas. Esse estudo aproximou a ciência de seu objeto de estudo, ou seja, a Lingüística da linguagem. As pesquisas lingüísticas se tornaram concretas, já que contaram com a ajuda de numerosos documentos que perduraram durante séculos. Tais documentos permitiam acompanhar a evolução dos idiomas, em especial do latim, protótipo das línguas românicas; e do germânico, protótipo das línguas indo-européias.

Logo após, formou-se uma nova escola, a dos neogramáticos, fundada por alemães. Essa escola consistiu em colocar numa perspectiva histórica todos os resultados do método comparativo. Graças a esses estudos, não se considerou mais a língua como um organismo autônomo, mas sim como um produto coletivo de grupos lingüísticos. Esse fato acabou se transformando em algo de grande importância para o campo da Lingüística Geral, embora esta ainda tenha algumas questões a serem esclarecidas. Sem dúvida, esse campo é por demais abrangente, o que impede de se encerrarem ou de se concluírem seus estudos.

2. MATÉRIA E TAREFA DA LINGÜÍSTICA: SUAS RELAÇÕES COM AS CIÊNCIAS CONEXAS

Todas as manifestações da linguagem humana, seja de povos selvagens ou civilizados, arcaicos ou contemporâneos, constituem a matéria da Lingüística. Porém, a linguagem escapa, muitas vezes, da observação, por isso os lingüistas devem levar em conta apenas os textos escritos, que servirão de base para seus estudos de idiomas antigos.

A Lingüística terá três tarefas básicas: descrever a história das línguas, determinar as leis gerais a que possam se referir os fenômenos da língua e definir a si própria. Ela tem, também, uma estreita relação com outras ciências, como a Antropologia, a Psicologia e a Sociologia. Ora, se a linguagem é social, obviamente a Lingüística se relaciona com a Sociologia. Pode-se afirmar, também, que tudo é psicológico na língua. Daí sua relação com a Psicologia. E por fim, como a língua é objeto humano, a Lingüística se relaciona com a Antropologia. Convém deixar claro que, embora se relacionem, há muitos pontos que diferem a Lingüística dessas outras ciências.

É certo que tudo o que se refere ao estudo da linguagem desperta o interesse de especialistas e estudiosos de outras áreas, como historiadores e filólogos, pois eles precisam trabalhar com textos. Sem contar a importância dada à Lingüística para a cultura geral, tanto do indivíduo quanto da sociedade. Por isso, o estudo da linguagem não é exclusividade de especialistas, todos se interessam pelos estudos da língua, em maior ou menor proporção. Porém, cabe ao lingüista a tarefa de denunciar e dissipar os erros cometidos ao se estudar uma determinada língua.

3. OBJETO DA LINGÜÍSTICA

3.1 A língua: sua definição

Não é fácil definir a língua enquanto objeto de estudo da Lingüística. Ao contrário do que muitos pensam, a língua não é meramente um objeto concreto. Ela é dotada de uma abstração que contribui para a dificuldade de defini-la. Por exemplo, se tomarmos uma determinada palavra, veremos que ela não é apenas um objeto lingüístico concreto. É muito mais do que isso. É um som, um conjunto de sentidos e uma história. Não é um objeto que cria o ponto de vista, mas o ponto de vista que cria o objeto. Se tomarmos essa palavra pelo som, veremos que ela apresenta duas faces, sendo que uma não vale sem a outra. Ao se articular as sílabas dessa palavra, produz-se um efeito acústico percebido pelo ouvido. No entanto, esse efeito não existiria se não fossem os órgãos vocais. Por isso, a língua não pode ser apenas o som, há de se considerar as abstrações da impressão acústica, ou seja, o som e a impressão que ele causa são interdependentes.

Por outro lado, som e idéia formam conjuntamente uma unidade complexa, fisiológica e mental. É necessário, assim, admitir que a linguagem tem dois lados: o individual e o social, sendo impossível conceber um sem o outro. Além disso, a linguagem implica, a cada instante e simultaneamente, uma instituição atual e passada. Isso torna complexo o estudo e a definição de língua.

É facilmente constatado que a Lingüística apresenta várias formas diferentes de abordagem, ou seja, não se dá de forma integral. Então surge o dilema: ou nos aprofundamos em apenas um forma de abordagem, ou nos arriscamos à sua abordagem integral. Neste último caso, aparecerá um aglomerado confuso de idéias, dificultando o trabalho de quem a estuda. A solução seria, então, “colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as manifestações da linguagem” (p.16). De fato, partindo-se da língua como manifestação da linguagem, os estudos lingüísticos tornam-se menos complexos.

Mas afinal, o que é língua. Saussure afirma que língua não se confunde com linguagem. Aquela é um produto, uma parte desta. Essencial, é claro. Portanto, entende-se por língua como um conjunto de convenções adotadas por um determinado grupo social com o objetivo de permitir a inter-relação entre seus membros. Já a linguagem é multiforme, pertence a todos os domínios e não se classifica em nenhuma categoria dos fatos humanos. Assim, podemos entender que a língua é algo adquirido e convencionado por um determinado grupo. Está, então, clara a diferença entre língua e linguagem.

A linguagem tem uma função. Função essa que não se manifesta quando falamos. Saussure afirma que nosso aparelho vocal não serve apenas para falarmos, assim como as pernas não servem apenas para andarmos. Interessante analogia. O fato de nos servirmos do aparelho vocal para usar a língua é uma mera comodidade. Podemos usar o gesto, o visual, o escrito. Whitney afirma que essa escolha foi imposta naturalmente. Nisso ele tem razão, pois a língua é uma convenção e o uso do aparelho vocal é uma questão secundária no problema da linguagem. O que se chama de “linguagem articulada” confirma essa idéia.

“Articular” significa dividir um todo em partes. Na linguagem, a articulação se dá pela divisão da palavra em sílabas e de sílabas em unidades mínimas de significado, que são os fonemas. Nesse aspecto, pode-se dizer que a linguagem não é natural do homem, mas sim a faculdade de constituir uma língua. Essa faculdade é geral e está acima de todos os outros órgãos humanos que comandam os signos. Então, pode-se afirmar que a língua é responsável por fazer a unidade da linguagem, ou seja, à língua deve ser atribuído o primeiro lugar no estudo da linguagem.

3.2 Lugar da língua nos fatos da linguagem

Para se situar a língua no conjunto da linguagem, faz-se necessário analisar o circuito da fala. Tal circuito ocorre, no mínimo e obrigatoriamente, entre duas pessoas e divide-se em três partes:

1ª) parte psíquica → ocorre no momento em que o falante cria, em seu cérebro, uma imagem que pretende transmitir ao ouvinte.

2ª) parte fisiológica → ocorre no momento em que o cérebro processa a imagem criada pelo falante e a transmite ao aparelho fonador.

3ª) parte física → ocorre no momento em que as ondas sonoras se propagam da boca do falante até o ouvido do ouvinte.

Esse processo é contínuo durante o ato da comunicação, já que vai se revezando entre as duas pessoas envolvidas no ato. E ainda pode ser visto sob duas partes: a ativa, chamada de executiva, que vai do centro de associação de uma pessoa ao ouvido da outra; e a passiva, chamada de receptiva, que vai do ouvido desta ao seu centro de associação. Esse processo se dá no plano social e não no individual, pois indivíduos são unidos pela linguagem e reproduzem os mesmos signos.

Sobre essas partes da língua, Saussure ressalta alguns pontos importantes. Em relação à parte física, por exemplo, esta desaparece quando o falante não utiliza a mesma língua do ouvinte, portanto não haverá a compreensão. Outro ponto importante é que a parte executiva se forma de marcas que são as mesmas em todos os indivíduos falantes. Porém, cada um deles possui um conjunto de informações armazenadas em seu cérebro que se encaixam no plano individual. Por isso a língua nunca está completa. Só a estará se considerarmos o conjunto todo, ou seja, a massa de indivíduos tendo todos as mesmas informações. Dessa forma, é possível concluirmos que uma língua jamais estará completa.

Saussure separa a língua da fala, colocando a primeira no plano social e a segunda, no individual. Ao estabelecer essa separação, o autor deduz que a língua não é uma função do falante, mas sim um produto que o indivíduo registra passivamente, ao passo que a fala é um ato de vontade e de inteligência, pois o falante exprime seus pensamentos. Em outras palavras, o falante não tem a capacidade de criar ou modificar, sozinho, uma língua, mas pode expressar o que tem vontade. Nota-se que Saussure acaba por não definir a língua e afirma, sobre isso, que qualquer definição sobre um tema é vã, logo não se deve partir de um termo para definir as coisas, mas simplesmente defini-las.

No entanto, ele aponta algumas características próprias da língua. Ela é um objeto definido dentro dos fatos da linguagem, por ser sua parte social, portanto exterior ao indivíduo, é um contrato estabelecido entre os membros de uma comunidade, pode ser estudada separadamente e é de natureza homogênea, ao passo que a linguagem é de natureza heterogênea. A língua é concreta, o que facilita seu estudo. Embora seja psíquica, ela não é feita de abstrações, é sediada no cérebro do indivíduo e nela existe a imagem acústica, que pode se traduzir em imagem visual, no caso, a escrita.

3.3 Lugar da língua nos fatos humanos. A semiologia

As características da língua citadas anteriormente permitem definir uma outra mais importante: ela é um fato humano, ao passo que a linguagem não o é. Essa característica é facilmente comprovada ao percebermos que é apenas o ser humano que utiliza a língua, já a linguagem não é de uso exclusivo dele. Por isso, a língua é uma instituição social.

Saussure, baseado nas características da língua, concebe uma ciência que ele chama de Semiologia , pois estuda os signos no meio social. Essa ciência nos diz em que consistem esses signos e que leis os regem. Porém, é interessante notar que, no momento em que o autor defendeu essa idéia, a Semiologia ainda não existia enquanto ciência e nem se podia afirmar que a partir dali passaria a existir. No entanto, Saussure já estava reservando um lugar de destaque para tal ciência. Inclusive o próprio autor chegou a prever que as leis que a Semiologia descobrisse, seriam aplicadas à Lingüística. Tal previsão veio a se concretizar, pois atualmente a Semiologia, chamada de Semiótica, tem papel destacado nas ciências da linguagem, juntamente com a Lingüística.

Para entender a Semiologia, faz-se necessário estudar a língua em si e não a língua em função de outra coisa ou sob outros pontos de vista, como por exemplo, o psicológico, que a estuda no plano individual, ou o sociológico, que a aborda no plano social, vinculando-a a outras instituições. A língua não é somente uma nomenclatura ou um conjunto de regras, ela tem sua natureza própria. O signo sempre foge da vontade social ou individual, esse é seu caráter essencial. Conseqüentemente, tal caráter só aparece na língua. Daí o autor julgar que o problema lingüístico é, antes de tudo, um problema semiológico. Se o objetivo de um estudioso é descobrir a verdadeira natureza da língua, é necessário considerar o que ela tem em comum com os outros sistemas da mesma ordem e não o que se refere a outros fatores lingüísticos, como o aparelho fonador. Considerando-se os ritos e os costumes de povo como signos, por exemplo, haverá a necessidade de agrupá-los na Semiologia e esta se responsabilizará por explicá-los cientificamente.

4. LINGÜÍSTICA DA LÍNGUA E LINGÜÍSTICA DA FALA

Saussure deixa clara a diferença entre língua e fala, sendo esta de caráter individual e aquela, social. Ele também defende a idéia de que existe a ciência da língua e a ciência da linguagem, esta denominada de Lingüística. Os elementos que se referem à fala subordinam-se à ciência da língua, como o aparelho fonador, já que os órgãos vocais são exteriores à língua. O autor, para argumentar, compara a língua a uma sinfonia. Se um músico errar, não estará comprometendo a realidade em que ela está inserida. O mesmo acontece com a língua e o falante.

Separando-se a fonação da língua, percebe-se que as alterações fonéticas exercem influência profunda nos destinos da própria língua. Essa é a função da ciência da língua Já a atividade do falante deve ser estudada pela ciência da linguagem. Assim, Saussure afirma que o estudo da linguagem é composto de duas partes: uma essencial e outra secundária. A essencial tem por objeto a língua, que é social e independe do indivíduo, sendo assim um estudo psíquico. Já a secundária tem por objeto a fala, que é de caráter individual e psicofísico. Mas essas duas partes estão, sem dúvida, ligadas entre si e uma depende da outra. A fala depende da língua para ser inteligível e a língua depende da fala para que se estabeleça historicamente. Por outro lado, para se aprender uma língua, devemos ouvir alguém falando, já que ela é depositada em nosso cérebro. A fala é responsável pela evolução de uma língua, no entanto, nada disso impede que língua e fala sejam duas coisas absolutamente distintas.

Uma língua só existe dentro de uma coletividade, independente da vontade do falante. Ela é a soma de tudo o que as pessoas dizem e envolve dois aspectos importantes: as combinações individuais e voluntárias e os atos de fonação, responsáveis pela execução de tais combinações. Por isso, nada há de coletivo na fala, não sendo possível, assim, reunir, no mesmo ponto de vista, língua e fala. Por essas razões, Saussure concebe a existência de duas Lingüísticas: a da língua, que estuda a coletividade; e a da fala, que estuda a individualidade. A primeira é a preocupação do autor na obra em análise.

5. ELEMENTOS INTERNOS E ELEMENTOS EXTERNOS DA LÍNGUA

Não se pode estudar uma língua sem considerarem-se seus elementos externos. Estes são muito importantes nos estudos lingüísticos. Consideram-se como elementos externos a história e os costumes de uma nação, pois esta é constituída pela língua. Há de se ressaltarem as relações existentes entre a língua e a história política. Grandes acontecimentos históricos, com as conquistas e as colonizações, têm importância incalculável nos estudos dos fatos de uma língua, uma vez que acarretam transformações nela. É também de grande importância as relações da língua com as instituições, como a Igreja e a escola. Nesta última, estuda-se, por exemplo, a língua literária, fenômeno histórico, que ultrapassa os limites estabelecidos pela própria literatura. Um lingüista deve estudar as relações entre a língua literária e a língua corrente, pois a primeira, produto de uma cultura, separa-se naturalmente da segunda.

Fica claro, assim, que os fatores históricos e geográficos estão diretamente ligados à língua, embora na realidade não afetam seu organismo interno, sendo, portanto, impossível, segundo o autor, separar os elementos externos dos internos nos estudos lingüísticos. Só se conhecem os fatores internos de uma língua, conhecendo-se os externos. Como exemplo desse fato, Saussure cita os empréstimos lingüísticos, chamados de estrangeirismo. Estes, ao se incorporarem a um determinado idioma, não devem ser considerados como estrangeirismos, desde que sejam estudados dentro do idioma.

Dessa forma, a Lingüística externa acumula fatos relativos à expansão de uma língua fora de seu território, ordenando-os de modo mais ou menos sistemático de acordo com a necessidade de clareza. Por outro lado, com a Lingüística interna, as coisas se passam de forma diferente, já que ela não admite uma disposição qualquer, pois a língua é um sistema com uma ordem própria. Aqui, Saussure estabelece a famosa comparação da língua a um jogo de xadrez. Nesse jogo, se trocarmos, no tabuleiro, as peças de marfim por peças de madeira, não haverá nenhuma interferência no jogo. Mas se aumentarmos ou diminuirmos o número de peças, aí sim ocorrerão mudanças. Assim é a língua: é interno tudo o que provoca mudanças no sistema.

6. REPRESENTAÇÃO DA LÍNGUA PELA ESCRITA

6.1 Necessidade de estudar este assunto

Como a língua é o objeto concreto de estudos lingüísticos, torna-se necessário que o lingüista conheça o maior número possível de línguas para que, pelo método da observação e da comparação, possa tirar delas o que existe de universal. As línguas são conhecidas através da escrita, sendo essa a forma mais adequada para estudá-la. Porém, a escrita é estranha ao sistema interno da língua, é impossível fazer abstrações de um processo por meio do qual a língua é representada. Ainda assim, é necessário sempre recorrer à escrita para estudar uma determinada língua.

6.2 Prestígio da escrita: causas de seu predomínio sobre as formas faladas

Língua e escrita são considerados dois sistemas diferentes de signos. A escrita serve apenas como representação de uma língua. Ambas combinadas não representam absolutamente o objeto lingüístico, que é representado apenas pela palavra falada. Porém esses dois sistemas se misturam tão intimamente que se tem a ilusão de que conhecendo um já se conhece o outro. Outra ilusão que por muito existiu é a de que pela fala se conhece muito mais uma língua e de que um idioma evolua muito mais enquanto não existir a escrita. Sem dúvida, isso pode ocorrer, mas a conservação de uma língua não é determinada pela ausência ou presença da escrita. Por isso, uma língua independe da escrita.

É certo que a língua tem uma característica importante: não depende da escrita. A tradição oral existe, independentemente da palavra escrita. Os primeiros estudiosos das línguas não percebiam isso. Bopp é um exemplo. Ele acreditava que não havia diferença entre letra e som, que a língua fosse inseparável do alfabeto. Seus sucessores pensavam da mesma forma. É provável que ainda hoje haja estudiosos que confundem língua com ortografia. Ao longo da história, a escrita ganhou enorme prestígio por vários motivos. Primeiramente, porque a imagem gráfica das palavras impressiona por ter a característica de objeto concreto e fixo. Além disso, as impressões visuais, que são ligadas à escrita, são mais nítidas e duradouras do que as impressões acústicas, que são ligadas ao som. A língua literária também contribuiu para essa visão, pois, nesse caso, a língua aparece regulada por um código, já que é um registro histórico e fixo, é a ortografia que confere esse valor à escrita.

Saussure observa, de forma bastante interessante, que muitos estudiosos conferem maior importância à escrita porque se esquecem de que primeiro aprendemos a falar, depois a escrever. Por fim, quando há divergências entre a fala e a escrita, há uma tendência natural de prevalecer a escrita. Ela se dá, nesse caso, uma importância a que não tem direito.

6.3 Os sistemas de escrita

O autor destaca a existência de dois sistemas de escrita: o ideográfico, que se relaciona com o significado da palavra; e o fonético, que se relaciona com o som, tanto no aspecto silábico quanto no alfabético. O sistema ideográfico pode ser misto, já que certas palavras se distanciam do seu valor inicial e representam sons isolados. Saussure cita como exemplo o chinês. Nesse idioma, a palavra escrita e a palavra falada são bem distintas. É como se a escrita correspondesse a uma segunda língua. Quando uma palavra falada tem o mesmo som de outra, o chinês recorre à escrita para explicar seu significado. Mas essa aparente harmonia entre som e escrita não dura muito.

6.4 Causas do desacordo entre a escrita e a pronúncia

Muitas são as causas que motivaram o desacordo entre a fala e a escrita. Em primeiro lugar está a evolução da língua. Há uma tendência natural a que o falante vá mudando a pronúncia de uma palavra com o passar do tempo. Mudança essa que, muitas vezes, não é acompanhada pela escrita. Há casos, como no francês, em que se muda a grafia, adequando-a à fala e, em seguida, renuncia-se a isso. Saussure destaca o século XIV como um marco para esse fato, pois foi a partir de lá que a escrita começou a estacionar, enquanto a língua prosseguia em evolução. A partir dessa época, o desacordo entre fala e escrita passa a acentuar mais.

Outra causa a se destacar é o fato de que muitos idiomas tomam palavras emprestadas de outros idiomas e não têm um sistema gráfico para representar a nova palavra, recorrendo, assim, a outros expedientes. Há, ainda, a preocupação com a etimologia. Em alguns casos, como no francês, um erro etimológico impõe uma determinada grafia. Por fim, há casos que acabam por escapar de uma análise devido à sua excentricidade.

6.5 Efeitos desse desacordo

A escrita é incoerente. Basta vermos a multiplicidade de signos para representar um som. No português, por exemplo, o fonema /s/ pode ser representado por S, C, SS, Ç, SC, X ou XC. Por outro lado, ocorre também o fato de um signo representar apenas um som, como a letra T que representa apenas o fonema /t/. há, ainda, as “grafias indiretas”, como no alemão, que dobra algumas consoantes para indicar que a vogal antecedente é breve e aberta; e no inglês, que acrescenta um e mudo no final para alongar a consoante que o antecede. Saussure chama isso de “aberrações” e de “grafias irracionais”, embora ele afirme que algumas dessas grafias correspondem a algo na língua, ou seja, têm um significado.

Existem, também, casos de ortografia vacilante, que são tentativas de figurar os sons, como a dupla grafia de algumas palavras para uma mesma forma, sendo difícil saber se se trata de duas pronúncias diferentes ou não. O autor fica em dúvida, por exemplo, quanto ao inglês. A mudança de kwat para what foi gráfica ou fonética? Ele aponta para o fato de que tudo isso obscurece a visão que se tem de língua, é como um disfarce. Os gramáticos valorizam apenas a forma escrita, reforçando a tendência a tomá-la como base de uma língua, pois define como a palavra deve ser pronunciada. Na verdade, tudo o que se relaciona á escrita é como se fosse norma.

Saussure afirma que o que fixa a pronúncia de uma palavra não é sua grafia, mas sua história. O que mais se esquece é a etimologia da palavra. Esta, quando evolui, vê-se forçada a seguir uma lei precisa e fixa. A tirania da grafia vai mais longe ainda. Por impor-se à massa, ela influi e modifica a língua, principalmente nos chamados “idiomas literários”, em que o texto escrito desempenha papel histórico primordial.

O autor conclui chamando esses problemas de “deformações fônicas” e que elas não resultam de um funcionamento natural, mas pertencem verdadeiramente à língua, por isso a Lingüística deve colocá-las em destaque.

7. FONOLOGIA

7.1 Definição

Saussure define Fonologia como o estudo dos sons através dos próprios sons. Ele julga que os primeiros lingüistas não conseguiam separar a escrita do pensamento, pois a primeira servia de apoio ao segundo. Se perdessem esse apoio, perdiam-se nos seus estudos. Eles não percebiam as articulações dos sons da língua e viviam caindo em ciladas. Já os mais atuais acabaram por compreendê-las, o que facilitou os estudos lingüísticos mais recentes.

Há de se deixar clara a diferença entre Fonologia e Fonética, segundo o ponto de vista saussuriano. A primeira não se coloca na questão do tempo, é atemporal, já que os mecanismos de articulação são sempre os mesmos. É uma disciplina auxiliar e só se refere à fala. A segunda estuda a evolução do som, é uma ciência histórica que analisa acontecimentos e transformações, além de ser temporal.

7.2 A escrita fonológica

Tem como princípio representar cada elemento da cadeia falada através de um signo. Alguns lingüistas, criticados por Saussure, não consideram essa exigência e acabam por se preocupar mais com a classificação dos sons do que com sua análise. O autor acha que eles deveriam estabelecer a distinção entre os sons explosivos e os sons implosivos. Ele considera, também, que a escrita fonológica deve servir apenas para os lingüistas.

Não existe a possibilidade de um alfabeto se tornar universal e ser aplicável a todos os idiomas. Correr-se-ia o risco de atrapalhar o leitor, visto que a escrita se tornaria obscura. Há, ainda, a questão da leitura. Como leríamos uma palavra nova? Soletrando letra por letra, adquirindo assim um valor meramente ideográfico? A escrita deve servir para facilitar a aprendizagem de uma língua, não para complicá-la.

7.3 Crítica ao testemunho da escrita

Cada língua trabalha com um número determinado de fonemas, definido em seu sistema fonológico. Esse sistema deve ser o único interesse do lingüista. Ele certamente terá dificuldades para defini-lo se se tratar de uma língua que pertença ao passado. Nesse caso, ele deve se fazer valer, primeiramente, dos “indícios externos”, que são os testemunhos dos contemporâneos que descrevem os sons de uma língua. Porém, essa fonte de informação não é segura, pois não existe um método fonológico para tal, não tendo, então, um rigor científico.

Esse problema pode ser resolvido se os lingüistas combinarem os indícios externos com os indícios internos. Estes podem ser retirados da regularidade das evoluções fonéticas ou dos fatos lingüísticos contemporâneos. É importante para o estudioso da língua saber que som uma letra representava numa época anterior e perceber sua evolução. Esse método permite definir o som de outras letras por analogia. Pode-se fazer valer, por exemplo, dos textos poéticos, que são preciosos para o conhecimento da pronúncia das palavras. Isso se deve à versificação. É possível analisar a divisão dos versos em sílabas poéticas e sua conformidade com os sons, como as assonâncias, aliterações e rimas.

A crítica de Saussure, prescrita no subtítulo, é feita aos gramáticos que se prendem a velhos métodos, que consistem em dizer como se pronuncia cada letra na língua que querem descrever. Assim, é impossível apresentar, com clareza e exatidão, o sistema fonológico de um idioma. No entanto, é certo que já existem grandes progressos no campo de estudos fonológicos e que contribuíram para reformularem-se as idéias acerca da escrita e da fala.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em hipótese alguma, o que Saussure fala serve para reforçar que na sua época havia muito a se esclarecer sobre a tão nova ciência. É bem verdade que as dúvidas que faziam Saussure hesitar em ministrar seus cursos não ficaram todas no passado, felizmente. Não há dúvidas de que a Lingüística evoluiu muito de Saussure aos nossos dias, porém muito do que o incomodava ainda está por se esclarecer ou estudar. Há determinadas passagens dessa parte analisada que são de domínio comum, ao menos enquanto chavão. É comum ver expressas em livro de introdução aos estudos lingüísticos e ouvir de “estudiosos” da língua as seguintes frases de efeito: “é a fala que faz evoluir a língua”, “existe interdependência entra a língua e a fala”, “a fala é necessária para que a língua se estabeleça”, dentre outras que se encontram nessa parte ou no decorrer do Curso. Ao se mencionar esse tipo de frase de efeito, será que há realmente um entendimento disso ou apenas se faz por mera convenção?

Ao que parece, não se faz tão óbvio o fato de Saussure estabelecer a Lingüística da Língua como “Lingüística propriamente dita” e, ao mesmo tempo ter de “pedir luz” a Lingüística da Fala para esclarecer determinadas questões da primeira. Afinal, se a Lingüística da Língua é tão autônoma, por que se valeria de explicações da Lingüística da Fala? Um fato que não se pode negar é que Saussure tem bastante consciência do que está dizendo, inclusive das dificuldades e limitações que a teoria proposta apresenta. Esse é o ponto de mais destaque na obra. Nota-se que o autor dedicou boa parte de sua vida aos estudos da língua e, principalmente, a pensar sobre eles. No decorrer da obra isso fica evidente, mas como estamos centrando as observações na introdução, vejamos o que ele diz no fechamento deste: “unicamente desta última (Lingüística da Língua) é que cuidaremos, e se por acaso, no decurso de nossas demonstrações, pedirmos luzes ao estudo da fala, esforçar-nos-emos para jamais transpor os limites que separam os dois domínios” (p.28).

Dessa forma, o que se apresenta nesse trecho é a preocupação de como exatamente os leitores do Curso têm concebido as idéias saussurianas, principalmente aqueles que “lêem” Saussure através dos outros e não o Saussure em si. Após apresentar as características da Lingüística da Língua e da Lingüística da Fala, o autor poderia estar sendo preconceituoso, cauteloso ou limitado. Apesar de ele não conseguir separar muito claramente as duas Lingüísticas citadas, até porque essa possibilidade parece ser um tanto difícil, tem inquestionável contribuição aos estudos da língua(gem) visto que é ele que formaliza, embora com limitações, o objeto da Lingüística. E é exatamente a partir do que Saussure propõe que estudiosos apresentam também a sua contribuição, trazendo para discussão e estudo pontos que o mestre de Genebra deixa “de fora” à sua época, a exemplo da fala. Ora, em sendo assim, a contribuição de Saussure também se apresenta pelo que ele não “fez”, mas que deixou margem para os demais estudiosos da língua(gem) fazerem. A perspectiva adotada pelo estudioso da língua para fins investigativos deve ser bastante consciente, pois cada “escolha” implica mudança de foco. Haveria, então, a necessidade de se rotular uma “Lingüística propriamente dita”? Talvez não!

O certo é que não podemos ser ingênuos de acreditar que uma dada teoria engloba todos os fenômenos da linguagem. Isso é ilusão! E o que mais impressiona na fala do autor é que tudo o que ele pensou não fora pensado anteriormente por nenhum outro estudioso da língua. Isso atribui a ele a grande importância que tem nos estudos lingüísticos, apesar de ele ter dito o óbvio.

CONCLUSÃO

Pelo que vimos, não tem como negar que Saussure seja de fato o “pai” da Lingüística. É impressionante como ele introduz o assunto, principalmente se considerarmos que tudo o que ele disse foi numa época em que a Lingüística ainda não era tida como uma ciência, por isso não havia métodos para comprovar que suas idéias eram corretas. E é fácil de se notar que o que ele fez foi dar “pistas” para que estudiosos contemporâneos a ele pudessem deslanchar os estudos lingüísticos e atingir as proporções que têm nos dias de hoje. Além do mais, a língua sempre despertou o interesse de muitos estudiosos, dada a sua complexidade e a sua evolução através dos tempos. Saussure apenas lançou um “desafio”. O resto ficaria por conta de seus sucessores.

REFERÊNCIAS

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 29ª ed. São Paulo. Cultrix: 2008 (pp. 7-47)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_de_Saussure

http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=3503&cat=Teses_Monologos&vinda=S

http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Bopp

http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=199&rv=Literatura

http://pt.wikipedia.org/wiki/Semi%C3%B3tica

Autor: Wagner Torlezi


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