Voz Interior



E a vida percorria seu caminho serena. A mornidez do tédio chegava a ser suportável, enfadonho às vezes, mas a grande virtude de uma árvore era certamente ter paciência. Para os rios e para os outros seres que habitavam aqueles rincões a vida era mais dinâmica, já que tinham a liberdade de transcorrer pelo mundo livres quando se sentissem entediados. Entretanto, o mundo fixo das árvores era preenchido por instantes e mais instantes de monotonia.

Eram raros os acontecimentos por ali. Salvo quando passavam os tagarelas papagaios que, em bando e em conversas desconexas às vezes, deixavam algumas previsões para um futuro próximo:

- As chuvas estão chegando. – gritava um.

- É verdade. – reforçava outro – Já está nas bordas da mata. Não se demorará a chegar aqui.

E antes que o bando fosse embora, as sedentárias e centenárias árvores tratavam de puxar uma prosa para saber das novidades dos outros cantos da mata. Descobriam que "aquela sementinha jovem" que saíra dali era, hoje, já um jovem e forte jacarandá; a família dos sagüis crescia cada dia mais; os javalis selvagens tinham comentado de qualquer dia desses dar uma passada ali pelo lugar para uma curta temporada de férias.

- Vamos, minha gente. – gritou um papagaio. – Vamos que temos uma boa jornada até o ninhal.

- Muito obrigada, velhas amigas. – disse uma fêmea relembrando o que era gratidão. – Obrigada pela acolhida e pela refeição decente que deram para nossa família. Temos que ir.

- Não tem por onde, amigas aves. – respondeu senhor Jatobá. – Foi um prazer recebe-los e poder ouvir um pouco de suas histórias.

E foi-se o bando de papagaios sempre mais barulhento. As lembranças das novidades trazidas aos poucos voltavam a ser substituídas pela monotonia, que voltava, aos poucos, a habitar nos cantos conhecidos do lugar. A chuva, no inicio, trouxe o espírito de festa e alegria e um pouco de refrescancia para o lugar. Com o passar dos dias, foi se tornando enfadonha a vida num molhado pegajoso.

E a vida mansa daquelas árvores ia tomando aquele rumo tão igual, tão corriqueiro de outrora. Quando não, um passarinho vinha fazer seu ninho por ali, uma cotia vinha abrigar-se nas fendas de alguns troncos para ter sua ninhada de filhotes. Assim que a prole adquiria sua autonomia, procuravam novas paragens e deixavam as árvores ainda na solidão companheira de uma das outras.

Meses após, a algazarra dos papagaios era ouvida novamente. As novidades da vez era o aumento da prole. E, do mesmo modo repentino em que chegavam, iam-se em busca de outros lugares e de outros alimentos. Era uma pena tão poucas árvores dali não poderem oferecer frutos que pudessem prender a família de penas por ali.

E mais um tempo passou. A monotonia voltava a morar com elas. Mas, num belo dia, uma surpresa despertou as árvores daquela morbidez. Das fronteiras da mata vinha um barulho.

- Devem ser os papagaios retornando. – comentou dona Figueira.

- Mas ainda não está no tempo deles voltarem. – disse a Imbuia. – Faz nem dois meses que passaram por aqui.

- Dois meses?! – exclamou a senhora Mogno. – Pensava que já estávamos para lá de cinco meses desde a última visita deles.

- Não é barulho de papagaio, não. – disse o sábio senhor Jatobá. – Vem do chão da mata.

Quem primeiro mostrou o rosto por ali foi um tamanduá. Tinha aparência assustada, além do cansaço que adquirira na jornada.

- Olá, senhor Tamanduá. – dona Aroeira dava as boas-vindas. – Que há com o senhor? Está com o rosto abatido.

Não obteve resposta. "Mal educado!". Pensou ela consigo. Logo atrás do tamanduá começaram a aparecer um cem números de cotias, outros tamanduás, javalis, capivaras, sagüis, bugios, quatis e até araras-canindé.

- O que está havendo, minha gente? – espantou-se a senhora Mogno.

- Estamos buscando lugar mais seguro. – tentou explicar a cotia desconfiada.

Não terminou de explicar para continuar sua jornada.

- Lugar seguro? – intrigou-se o Jatobá.

- Sim. – cantou um sabiá-laranjeira – Eles estão vindo.

- Eles? Eles quem? – perguntou a Aroeira. – Os trovões? Os relâmpagos?

- Não, não! – respondeu o sabiá. – São os humanos.

Sumiu-se dali sem muitas explicações. Por alguns instantes a correria passou por baixo das copas das árvores e também por cima delas. Se pudessem, também elas, as árvores, teriam corrido acompanhando os animais.

Os humanos não chegaram de imediato. O barulho da mata retomou seu som de outrora. A paz parecia querer voltar. O que fez, de certa forma, as árvores esquecerem da história da vinda dos humanos.

- Eu nunca sequer vi um humano. – comentou a senhora Mogno. – Dizem que são maus.

- Talvez seja exagero do povo. – tentou confortar dona Aroeira.

- Exagero nada! – exclamou a Figueira. – Eu soube que eles matam animais, derrubam árvores... Fico até angustiada de pensar.

- O que é matar? Como assim derrubam árvores?

Pobre Imbuia: tão jovem e tão ingênua, tão inexperiente da vida em comparação aos centenários anos da maioria delas. O caso, também, era que nenhuma das árvores ali sentia coragem em explicar-lhe. Só o silêncio foi reinando.

- O que é este som? – perguntou o Jatobá.

- Que som? Não ouço nada. – comentou senhora Mogno.

- Este, ao longe. Não ouvem?

Tentaram prestar atenção no silêncio. Primeiro sentiram um som desconhecido misturado com gritos de dor. Por último um som como que de uma queda e podiam sentir suas raízes sendo estremecidas dentro da terra.

- O que será isso? – indagou angustiada a Figueira.

Só o silêncio respondia. Com o passar dos ciclos das horas, dos dias, das semanas, o barulho ia aproximando-se. Já não era mais um segredo: árvore após árvore foi chegando a notícia: "Estão fazendo um desmatamento".

- O que é desmatamento? – curiosa a Imbuia perguntou.

Outra vez faltaram as palavras para a resposta, além do nó-na-garganta, se árvore tivesse garganta.

Algum tempo mais tarde, já conseguiam até ouvir a conversa dos humanos. Por que não conseguiam entendê-los?

- Dizem que os humanos não falam a linguagem da voz interior. – explicou senhora Mogno. – Por isso não conseguimos entendê-los. Vivem cercados de barulho. Não gostam do silêncio.

Um grupo deles chegou-se mais próximo a elas. Mediam, analisavam, enfim. Depois, outro grupo chegou com assessórios em suas mãos. Conversaram entre si aquela língua desconhecida.

- O que eles estão falando? – a Imbuia queria saber.

- Não consigo entender. – comentou a Aroeira.

- É linguagem humana. Não a entenderemos nunca. – disse o Jatobá em sua sabedoria.

Um dos homens fez funcionar o assessório que trazia consigo. Um barulho horroroso se fez ouvir. Agora sabiam o que era aquele grito rouco que não conseguiam identificar. O som era tão alto que as árvores não conseguiam sequer pensar.

A primeira a gritar foi a Imbuia:

- Ai!! Que dor é essa? Parem com isso!! Por favor! Por que estão fazendo isso?

E, algum tempo depois, jazia morta no solo onde estivera fincada naqueles anos.

Logo depois derrubaram a senhora Mogno. Altiva, não soltou um grito sequer. Mas seu tronco chorou uma morte injusta.

- Não adianta gritar. – ela disse suas últimas palavras. – Com tanto barulho, nunca ouviriam. – e também caiu por terra a centenária senhora.

Depois foi a vez da Figueira:

- Não! Parem com isso! Jatobá, mande-os parar. – a voz vinha junto com o choro.

- Não posso, Figueira. – ele disse com voz também embargada. – Eles não me ouvem. É inútil.

- Por que os homens gostam de nos fazer sofrer? É bem verdade tudo o que já ouvi a respeito deles. – chorava a Figueira. – E eu nunca senti dor tão forte em minha vida.

Não quiseram dizer nada. Mas tanto a Aroeira quanto o Jatobá pensaram: "É porque essa é a dor da morte".

Algumas horas de tanto sofrimento e acabaram por derrubar as forças de dona Figueira junto com seu robusto tronco ao chão. De forma igual foi-se o sábio Jatobá. A exemplo da senhora Mogno, não gritou. De nada adiantaria mesmo.

A Aroeira ficou só. Não entendeu bem o porquê. E foi descobrindo nas minúcias do tempo o que era solidão. O terreno ao seu redor foi tomado de uma terra dura e cinzenta. Debaixo de sua sobra, por vezes, parava um objeto estranho de onde saíam homens. E a solidão cada dia mais vinha morar com ela.


Autor: Anderson Rodrigo Oliveira


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