Leitura: Construção do Conhecimento



LEITURA: CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

Regina Janiaki Copes

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Esméria de Lourdes Saveli

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RESUMO

O artigo apresenta algumas considerações sobre o papel da leitura no processo de construção do conhecimento. Antes de chegar a elas, pareceu-nos útil trazer as concepções de conhecimento, a partir das idéias de alguns pensadores ao longo da história da humanidade. O conhecimento engloba a totalidade da experiência humana, exige a curiosidade do sujeito em face ao objeto a ser conhecido e requer dele uma ação transformadora sobre a realidade. Assim, a busca do saber é uma atividade inerente e exclusiva do ser humano. A leitura pode ser considerada um meio possível de se chegar ao conhecimento. Como conhecer através da leitura? Para tratar deste assunto tivemos como principais interlocutores o grande educador brasileiro, que se preocupou em criar uma teoria do conhecimento e que, de certa forma, desenvolveu uma epistemologia da leitura, Paulo Freire e, o estudioso na área da leitura, Alberto Manguel.

Palavras-chave: Epistemologia; conhecimento, leitura e construção do conhecimento.

ABSTRACT

The article presents some considerations on the role of the reading in the process of the knowledge building. Before arriving them, it seemed for us to be useful to bring some conceptions of knowledge, from the ideas of some thinkers along the history of the humanity. The knowledge includes the totality of the human being experience, demands curiosity by the citizen in face to the object to be known and requires from him a transforming action on the reality. Thus, the search of knowing is an inherent and exclusive activity of the human being. Reading can be considered a possible way to get knowledge. How to know by reading? To deal with this subject we had as the main interlocutor the great Brazilian educator, who worried in creating a theory of the knowledge and that, in certain way, developed an epistemology of the reading, Paulo Freire, and, the studious on the reading area, Alberto Manguel.

Key-words: Epistemology; knowledge, reading and knowledge building.

 

 

INTRODUÇÃO

A busca do conhecimento é uma atividade inerente e exclusiva do ser humano. Existem várias teorias que tratam dos caminhos que levam o homem ao conhecimento. Este trabalho busca compreender a leitura como um caminho possível para se chegar ao conhecimento. Tem como ponto de partida para a busca dessa compreensão o pressuposto freireano de que "a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele" (1994, p. 20).

Dizendo de outra maneira ler a palavra e apreender o seu sentido exige ter a experiência de estar em contato com a realidade concreta, cultural (o mundo). Pensando assim, não é possível desenvolver um trabalho de leitura fora do mundo da cultura. Paulo Freire ratifica este posicionamento quando afirma "Eu digo que ler não é só caminhar sobre as palavras, e, também não é voar sobre as palavras. Ler é reescrever o que estamos lendo. É descobrir a conexão entre o texto e o contexto do texto, e também como vincular o texto/ contexto com o meu contexto, o contexto do leitor" (1996:22).

A partir dessa afirmação de Paulo Freire é possível pensar numa relação dialógica entre o sujeito, a sua realidade e o conhecimento.

Freire (op.cit) em seus pressupostos teóricos sustenta que, durante o processo de leitura, há necessidade de se estabelecer uma relação profunda entre o sentido e o significado. apreender a significação profunda, pois só apreendendo-a seremos capazes de saber. Para ele, a memorização mecânica de um texto não se constitui em conhecimento do objeto de que este fala. Ele insistia na importância do 'adentramento' nos textos a serem compreendidos. Assim, podemos considerar a leitura não apenas como ato mecânico, mas como um processo de descoberta de um universo desconhecido e maravilhoso.

Esse processo é ratificado pela fala de Manguel (2004), quando durante a leitura de um livro silencia e traz à memória o momento em que viu numa vitrine do museu Arqueológico de Bagdá, pela primeira vez, as duas placas de argilas encontradas por Tell Brak, Síria, quatro milênio antes de Cristo:

Tal como meu nebuloso ancestral sumério lendo as duas pequenas placas naquela tarde inconcebivelmente remota, eu também estou lendo, aqui na minha sala, através de séculos e mares. Sentado à minha escrivaninha, cotovelos sobre a página, queixo nas mãos, abstraído por um momento da mudança da luz lá fora e dos sons que se elevam da rua, estou vendo, ouvindo, seguindo (mas essas palavras não fazem justiça ao que está acontecendo dentro de mim) uma história, uma descrição, um argumento. (Manguel, 2004, p.42)

Nesse processo de pensamento, Manguel afirma que ao olhar para as placas estaria prolongando a memória e preservando um pensamento muito tempo depois que o pensador parou de pensar. Assim, ele se tornou participante de um ato de criação que permanece aberto enquanto as imagens entalhadas nas placas forem vistas, decifradas e lidas por ele.

A leitura, segundo Silva (1992), é instrumento de acesso à cultura e de aquisição de experiências. Para ele, 'experiência' é o conhecimento adquirido pelo indivíduo nas suas relações com o mundo, através de suas percepções e vivências específicas. Desta forma, a leitura pode ser vista como uma fonte possível de conhecimento.

Concepções sobre o conhecimento

O que é conhecido sempre parece sistemático, provado, aplicável e evidente para aquele que conhece. Da mesma forma, todo sistema alheio de conhecimento sempre parece contraditório, não provado, inaplicável, irreal ou místico. (FLECK apud BURKE, 2003, p. ii)

Para Sócrates, o pai da filosofia, a única forma de conduzir as pessoas em direção ao conhecimento seria levá-las a despojar-se de pseudoverdades através de um diálogo em que forçasse o interlocutor a duvidar do seu próprio conhecimento e acabar reconhecendo a dúvida a respeito do que antes julgava ter certeza (verdade). É nesse procedimento metodológico que se assenta a máxima socrática: O que sei, é que nada sei!

O método socrático para a busca do conhecimento consistia na sabedoria de reconhecer a própria ignorância, ponto de partida para a procura do saber. Tal método tinha duas partes: a destrutiva, em que o interlocutor, diante do oponente, com hábeis perguntas desmontava as certezas; e a Maiêutica (do grego maieutike, fazer o parto) que consistia na reconstrução de novos conceitos. Ele dá esse nome ao método em homenagem a sua mãe que era parteira. Dá mesma forma como a parteira traz ao mundo novos corpos, o método socrático, dava luz a novas idéias.

Platão,discípulo de Sócrates, afirmava que o conhecimento era uma rememoração mais ou menos simbólica de noções anteriores à existência individual e empírica. Tais noções são imutáveis, são intelectuais, provenientes do mundo das idéias e não do mundo sensível. São reminiscências de outras vidas passadas, reconstituídas pelos sentidos. Para Platão conhecer é lembrar.

Assim, Platão elabora uma construção que, fiel ao ensino dialético de Sócrates, se baseia na distinção dos três planos no Ser: o da opinião (que corresponde às aparências sensíveis), o da ciência (que no tempo de Platão é essencialmente a Matemática) e finalmente, o inteligível - o mundo da idéias (que representa exclusivamente a verdade imutável). O conhecimento requer conhecimento da realidade na qual a ação está inserida, o ser deve ser levado a através da maiêutica, examinar, contemplar e ascender dialeticamente.

O conhecimento, segundo Aristóteles, é um processo de abstração pelo qual o intelecto produz conceitos universais que não residem separadamente das coisas e do intelecto. A percepção do mundo sensível mostra que as coisas transformam-se continuamente. Para ele, o conhecimento do ser é imprescindível para fornecer bases sólidas às ciências (LEGRAND, 1983). O projeto aristotélico é o de forjar um instrumento mais seguro para a constituição da ciência: o Organon. Nele, a dialética é reduzida à condição de exercício mental que, não lidando com as próprias coisas, mas com as opiniões dos homens sobre as coisas, não pode atingir a verdade, permanecendo no âmbito da probabilidade. Essa concepção da dialética como ginástica do espírito, é útil como fase preparatória para o conhecimento, mas incapaz de chegar à certeza sobre as coisas.

Na modernidade, outros tantos filósofos trataram da questão do conhecimento, como: Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1650), Locke (1632-1704), Kant (1724-1804). Para entender o que é o conhecimento, na modernidade, vamos nos debruçar sobre a palavra Epistemologia. Palavra que teve origem do grego, (epistéme – ciência), que significa conhecimento científico. Sinônimo antigo de gnosiologia do grego (gnôsis – conhecimento). Termo utilizado, algumas vezes, para designar a disciplina que se aplicaria ao estudo do conhecimento.

Segundo Legrand (1983, p. 89), conhecimento é :

Acto de conhecer e resultado desse acto. Conhecer, é, para o pensamento, entrar em contacto com um objecto que lhe é exterior, seja ele qual for e seja qual for o modo de contacto. Daí resulta concretamente que quando o pensamento se conhece a si mesmo, tal só pode acontecer fingindo que está separado de si mesmo ou projectando-se num modelo qualquer que considera exterior; o conhecimento só é transmissível quando aceita o veículo de um discurso.

Quando se afirma que o conhecimento é "ato de conhecer e resultado desse ato" está implícito um movimento dialético. Tal movimento é intelectivo. Isto significa que a produção do conhecimento (das idéias) está diretamente entrelaçado à atividade mental e com o intercâmbio material. Isto é, com o mundo objetivo. O pensamento em contato com a realidade exterior apreende essa realidade. Tal realidade pode ser tomada no sentido de realidade próxima e/ou distante. A realidade é compreendida como o meio em que vivemos, isto é, tudo aquilo que fazemos, pensamos, dizemos e sentimos na nossa vida prática é a nossa realidade. Ela é o nosso trabalho, a nossa organização, é a natureza que nos cerca. São as pessoas com as quais nos relacionamos, de forma positiva ou negativa e o que acontece com elas. São os problemas do nosso dia-a-dia e, também, os problemas da sociedade que se relacionam com a nossa vida pessoal e coletiva.

Dizendo de outra maneira, o conhecimento é o pensamento que resulta da relação que se estabelece entre sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido. O conhecimento pode designar o ato de conhecer, enquanto relação que se estabelece entre a consciência que conhece e o mundo conhecido. Mas, o conhecimento também se refere ao produto, ao resultado do conteúdo desse ato. Ou seja, o saber adquirido e acumulado pelo homem.

Portanto, o conhecimento humano é definido pelo contexto social. Neste sentido, ele é um produto social e o indivíduo portador deste conhecimento pertence a uma forma determinada de sociedade. Esse posicionamento é ratificado por Cortella (2000, p. 99), quando esclarece que:

O Conhecimento e, nele, a Verdade, são construções históricas, sociais e culturais. São resultantes do esforço de um grupo determinado de homens e mulheres (com os elementos disponíveis na sua cultura e no tempo em que vivem) para construir referências que orientem o sentido da ação humana e o sentido da existência.

O autor acima citado nos indica que, para compreender o que é conhecimento, é fundamental desvendar as influências sociais, políticas e econômicas que marcou o tempo do homem, pois ser humano, algum, produz um pensamento absolutamente inédito fora da cultura e do tempo no qual está inserido.

Cortella (2000, p. 127) explica que "se o conhecimento é relativo à história, ele não é neutro; todo conhecimento está úmido de situações histórico-sociais; não há Conhecimento absolutamente puro, sem nódoa. Todo conhecimento está impregnado de história e sociedade, portanto, de mudança cultural"

Tecendo o nosso argumento nesta mesma linha de raciocínio, outro ponto que merece destaque é que só os seres humanos têm condições de produzir conhecimento. Esse tipo de produção é uma necessidade humana pois envolve a relação homem/mundo. Por uma questão de sobrevivência, o homem é obrigado a enfrentar as lutas com o mundo, alterando este e sendo alterado por ele.

A interferência no mundo se dá através da ação transformadora consciente e isso é, essencialmente, humano. Essa ação dialética tem por objetivo modificar a realidade (FREIRE, 1994).

Marx (2003) exemplifica essa afirmação acima dizendo que o pior dos tecelões sempre seria melhor do que a melhor das aranhas. Enquanto ao pior tecelão seria possível modificar (fazer diferente, inovar) porque planejara antes, à aranha não restaria nada mais do que reproduzir sempre, e da mesma forma, aquilo que já estivesse inscrito em sua natureza.

Outro ponto que merece destaque é que só os seres humanos têm condições de produzir conhecimento. Esse tipo de produção é uma necessidade humana.

O que funda esta diferença, o que torna o homem humano é básica e decisivamente, a palavra, a linguagem. A consciência humana é uma consciência reflexiva porque ela pode se voltar sobre si mesma, isto é, o homem pode pensar em si próprio, tornar-se como objeto de sua reflexão. E isto só é possível graças à linguagem: sistema simbólico pelo qual se representa as coisas do mundo, pelo qual este mundo é ordenado e recebe significação (DUARTE JÚNIOR, 2004, p. 18).

Segundo Duarte Júnior (2004, p. 18), "o filósofo Ludwig Wittgenstein se posiciona dizendo que os limites de minha linguagemdenotam os limites de meu mundo". O mundo circunscreve-se àquilo que pode ser captado por minha consciência, e minha consciência apreende as 'coisas' através da linguagem que emprego e que ordena a minha realidade. O real será sempre um produto de dialética, do jogo existente entre a materialidade do mundo e o sistema de significação utilizado para organizá-lo.

A diferença entre homem e animal é o meio simbólico criado pela linguagem humana, linguagem que capacita o homem a proferir o seu 'eu'. Nesse sentido é que, em linguagem filosófica, se fala da transcendência humana: o homem transcende, vai além da imediatividade do aqui e agora em que está o seu corpo. O homem vive num universo simbólico criado pelos significados que as palavras emprestam ao mundo (DUARTE JÚNIOR, 2004).

Nossa percepção do mundo, conforme o autor acima citado, é derivada da linguagem que empregamos. E esta linguagem está dialeticamente ligada às condições materiais de nossa existência, especialmente nas sociedades divididas em classes. O sistema lingüístico de que se vale um povo é condicionante de sua maneira de interpretar o mundo e de nele agir, construindo a sua realidade.

Nesta perspectiva, segundo Cortella (2000), os conhecimentos são produzidos pelos próprios humanos. Isto é, a relação de conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto. Portanto, precisa existir um sujeito que conhece e um objeto a ser conhecido. E, na relação entre eles reside a 'verdade' (do grego Alétheia que significa não-velado, não-esquecível, não-obscurecido, não-coberto, isto é, desvelamento ou descoberta (LEGRAND, 1983)) que, por sua vez, é histórica e social. Em síntese, o Conhecimento, e nele, a Verdade, são construções históricas, sociais e culturais. Portanto, a idéia de Verdade como descoberta é uma construção.

Freire (1994), o grande educador brasileiro, em seus textos, discorda desse posicionamento, pois ele defende que o conhecimento engloba a totalidade de experiência humana. Para ele, o ponto de partida é a experiência concreta do indivíduo, em seu grupo, ou sua comunidade. O conhecimento crítico das relações entre os seres humanos e o mundo não surge, segundo ele, "como resultado de um jogo intelectualista", como algo que se constitui fora da prática. Nem do mecanismo, pois a consciência não é um espaço vazio a ser preenchido.

O conhecimento, para Freire, não é ato passivo, exige curiosidade, ação transformadora sobre a realidade, busca constante, invenção e reinvenção. Em seus escritos, ele insiste sobre a dimensão crítica do conhecimento e do papel da leitura como instrumento de conhecimento, questionamento e conscientização.

A LEITURA e A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

Nada se move, exceto meus olhos e a mão que vira ocasionalmente a página, e contudo, algo não exatamente definido pela palavra texto desdobra-se, progride, cresce e deita raízes enquanto leio (Manguel, 2004, p. 42).

A escrita é uma linguagem para os olhos. Portanto, a leitura começa com os olhos...

Santo Tomás de Aquino (apud MANGUEL, 2004) chamou a visão de "o maior dos sentidos pelo qual adquirimos conhecimento". Mas, de que maneira as coisas que chegam através dos olhos se tornam legíveis? O que acontece dentro de nós quando estamos diante de um texto? O que é, então, o ato que chamamos de ler?

Para tentarmos responder a essas questões, nada melhor do que trazermos aqui as palavras de Manguel (2004, p. 53-54):

Sentado diante do meu livro, [...] percebo não apenas as letras e os espaços em branco entre as palavras que compõem o texto. Para extrair uma mensagem desse sistema de sinais brancos e pretos, apreendo primeiro o sistema de uma maneira aparentemente errática com os olhos volúveis, e depois reconstruo o código de sinais mediante uma ca­deia conectiva de neurônios processadores em meu cérebro, cadeia que varia de acordo com a natureza do texto que estou lendo e impregna o texto com algo - emoção, sensibilidade física, intuição, conhecimento, alma - que depende de quem sou eu e de como me tornei o que sou.

A fala de Manguel nos remete a Freire quando diz que, no ato da leitura, todas as emoções do corpo se fazem presentes e confusas: a vagância, a angústia, a volúpia. A leitura seria o lugar onde a estrutura entra em conflito, pois ler é um ato intencional, que exige do leitor paciência, persistência e determinação para que ele possa superar o conflito entre ele e o texto. Esse conflito nasce e se agiganta devido à necessidade que o leitor tem de concordar, discordar, confrontar valores. Enfim, tudo aquilo que o texto propõe exige do leitor fazer relações com as suas experiências de vida. Nesse processo de introspecção se conhece, se desenvolve, sente-se o prazer de conhecer, há uma sensação de um mundo mais amplo (FREIRE, 1994).

Entender o que acontece durante o ato de ler, admitiu o pesquisador americano E. B. Huey (apud Manguel, 2004), "seria descrever muitos dos funciona­mentos mais complexos da mente humana". Continuamos a ler sem saber exatamente o que estamos fazendo. Sabemos que a leitura ocorre em certas áreas definidas do cérebro e que essas áreas não são as únicas a participar. Sabemos que o processo de ler, tal como o de pensar, depende da capacidade de decifrar e fazer uso da linguagem, do conjunto de palavras que compõem texto e pensamento (Manguel, 2004).

São tantos os elementos necessários para realizar a leitura que conferem ao ato de ler uma complexidade impressionante. Muitos pesquisadores acreditam que essa complexidade pode ser tão grande quanto à do próprio pensamento. Trata-se de um processo generativo que reflete a tentativa disciplinada do leitor de construir um ou mais sentidos dentro das regras da linguagem, um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e, contudo, pessoal (Manguel, op. cit).

Para que o ato de ler tenha um desempenho satisfatório, exige-se a coordenação de centenas de habilidades diferentes, além da visão e da percepção, da inferência e do julgamento, da memória e do reconhecimento, do conhecimento, da experiência e da prática. Além disso, é preciso considerar que existem outros elementos que afetam o resultado da leitura, como o momento, o lugar e até mesmo a qualidade do material impresso. Porém, o modo como tudo acontece, as conexões intrincadas e fabulosas que esses elementos estabelecem entre si, permanece, ainda, sem resposta(Manguel, 2004).

Desta forma, o que se sabe é que ler é uma operação intelectual que ultrapassa o ato mecânico de identificar o escrito. É uma atividade "eminentemente polimorfa" em que o olhar do leitor sobre as palavras é, antes de qualquer coisa, o pensamento em movimento (Saveli, 2003). Como diz Foucambert (1994, p.30), "ser leitor é querer saber o que se passa na cabeça de outro, para compreender melhor o que se passa na nossa".

Na mesma linha de pensamento, Freire (1994) considera que o ato de ler é muito mais profundo do que operar uma decodificação de palavras e de frases. Para ele, ler é participar das representações do autor do texto lido e mergulhar em representações equivalentes. Significa, ainda, descortinar, mudar de horizontes, interagir com o real, interpretá-lo, compreendê-lo e decidir sobre ele. Enfim, ler é reescrever o que estamos lendo, é descobrir a conexão entre o texto e o contexto do texto e também vincular o texto/contexto ao contexto do leitor.

Prosseguindo o raciocínio, Freire entende que se um texto só pode ser lido se o reescrevemos, o mesmo ocorre com a leitura da realidade. Para ele, não lemos apenas as palavras, os textos e os livros; lemos o mundo, isto é, tudo aquilo que está ao nosso redor. O mundo em que vivemos é um texto que exige uma leitura mais crítica.

Dentro da perspectiva freiriana, a leitura da realidade precede a leitura da palavra. Aprendemos a ler o mundo antes mesmo de decodificar os sinais gráficos das letras. Assim, ler o mundo é tão importante quanto ler a palavra, pois um não está dissociado do outro. São dois momentos que se comunicam no ato de pensar, pois existe uma relação mútua entre a leitura do mundo e a leitura da palavra, entre a linguagem e a realidade, entre o texto e o contexto (FREIRE, 1994).

Chegamos, assim, ao entendimento de que lemos a realidade quando a reescrevemos, isto é, quando a transformamos, o que significa dizer que, epistemologicamente, só estamos sendo bons leitores de mundo se estamos transformando esse mundo. Desse modo, conforme Freire, para o "ciclo gnosiológico" se realizar, é preciso ler e reelaborar o lido, estudar e refazer o estudado, aprender e reaplicar o aprendido, observar e intervir no incessante processo de transformação social, assumindo humanamente a vocação de sujeitos históricos, inacabados, e por isso mesmo em constante transformação.

A construção do conhecimento, segundo Freire (1994), se dá quando o leitor desafia cada parágrafo, digere, reinventa, cria e aplica-os na construção de novos conhecimentos. E isso exige persistência e coragem de pensar e de fazer. Por isso, para ele, um texto não deve ser lido com rapidez e indiferença, como se o conhecimento fosse um processo meramente acumulativo, pois, um 'palmo de leitura' não significa necessariamente um 'palmo de conhecimento'.

Os textos devem ser encarados com seriedade, com rigor, já que aprender é um processo muito mais profundo, complexo e intenso do que a simples memorização mecânica de informações descoladas da realidade. A memorização leva ao que Freire chamava de "verbozidade", palavra oca. Conhecimento é a reconstrução da realidade, é a confrontação das verdades. Desta forma, desde o início, a leitura deve contar com o leitor, sua contribuição ao texto, sua observação ao contexto, sua percepção de mundo.

A leitura pode ser vista como uma fonte possível de conhecimentos, pois ler é não só uma ponte para a tomada de consciência, mas um modo de existir no qual o indivíduo compreende e interpreta a expressão registrada pela escrita e passa a compreender-se no mundo (Silva, 1992). A leitura possibilita o conhecimento do eu, do outro e do mundo. Através da leitura é possível, também, obter o conhecimento de outras formas de vida, tempo e espaço e, conseqüentemente, adquirimos uma cultura diferenciada.

Desta forma, só podemos atribuir importância e relevância às práticas de leitura quando o leitor é levado à condição de sujeito, trabalhando ativamente com seus pares na busca de compreensão de diferentes aspectos da realidade através dos textos (FREIRE, 1994). Esse trabalho requer movimentos dinâmicos entre os textos e as experiências de vida dos leitores e vice-versa; na ausência desses movimentos, vistos aqui como geradores de significação/compreensão, a leitura perde seu papel na construção do conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se, no artigo, apresentar algumas considerações sobre o papel da leitura no processo de construção do conhecimento. O conhecimento é o produto de um processo de reflexão, resultado de muitas leituras, exige curiosidade, ação transformadora sobre a realidade.

O processo da leitura na mente humana é extremamente complexo e compreendê-lo ainda não é possível, no entanto, o papel da leitura na construção do conhecimento é inegável. Podemos dizer que ela é uma fonte possível de conhecimento, pois consideramos que não lemos apenas as palavras, os textos e os livros; lemos o mundo.

Conhecer é reconstruir a realidade, é confrontar as verdades. E reinventar o mundo, pronunciá-lo com "palavras grávidas de realidade", como diz Freire, é a própria condição de sua leitura. Somente transformando a humanidade que criamos, e da qual fazemos parte, é possível conhecê-la com profundidade.

REFERÊNCIAs

CORTELLA, M. S.. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 3. ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2000.

DUARTE J, J.F. O que é realidade. São Paulo: Brasiliense, 2004.

FLECK, L.in BURKE, P. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot rad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.

FREIRE, P.A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 29. ed. São Paulo: Cortez, 1994.

____________. Educação e mudança. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

____________,SHOR, Ira. Método e ousadia: o cotidiano do professor. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Tradução: Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes médicas. 1994. 157p. ( Original: Question de lecture)

LEGRAND, G. Dicionário de Filosofia. Tradução: Armindo José Rodrigues e João Gama. Lisboa, Portugal: Edições 70, L.da, 1983

MANGUEL, A. Uma história de leitura. São Paulo: Companhia da Letras, 1997.

MARTINS, M.H. O que é leitura. 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MARX, K. Manuscritos Econômicos-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2003.

SILVA, E. T. da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1992.

SAVELI, E. de L.. Leitura na escola: as representações e práticas de professores. Curitiba: Fortun & Granchelli, 2003.

 

 

Regina Janiaki Copes - Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),. Professora da Educação Básica da Rede Estadual de Ensino do Estado Paraná. Membro do GEPEB e GEPALE/UEPG. Desenvolve pesquisas na área das políticas públicas de incentivo à leitura. ([email protected])

 

Esméria de Lourdes Saveli - Doutora em Educação pela UNICAMP/Campinas, Membro do ALLE (Grupo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita – Faculdade de Educação da UNICAMP), docente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Básica (GEPEB), e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização e Leitura (GEPALE). Desenvolve pesquisas que tratam de políticas públicas para a Educação Básica. ([email protected])


Autor: Regina Janiaki Copes


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