Orquídeas



Perguntar é só um velho hábito. Um sopro de teimosia, insistência inútil e pouco pragmática. Mas as palavras saem da boca e caem como pela gravidade nos ouvidos do outro, fazendo um barulho de pedra em poça d'água mas sem produzir onda alguma. Caem feito corpos indigentes em valas, e como eles, são rapidamente esquecidas.

__ O que foi?

__ Nada.

Ela baixou os olhos e começou a procurar pelas gretas, achando ver a casa que saía dos ladrilhos. Nada... tão pouco convincente e tão extenso. Recheado de dias e noites de silêncio. Nada... fechando uma estrada de terra antes do meio dia. Não podia rebater o nada, quanto menos solucioná-lo, ainda que de forma imatura e falha.

Seu corpo é pesado para seus pés, mãos redondas e dedos que raramente entravam anéis. Feia? Não se pode dizer. Feiúra se desdobra em tantas vertentes, que se mistura com beleza... Não se distinguem por não acabarem onde a outra começa.

__ Quer mais café?

Ele não responde. Provavelmente não ouviu. Com tantas coisas na cabeça, não poderia mesmo tê-la ouvido. Prazos e entregas, as migalhas de pão na calça preta, a lâmpada queimada da sala.

Ela pensava em suicídio e contava as calorias do café. Pão, queijo e café com adoçante, não devia dar mais que 200 Kcal. Todos os dias, antes de sair da cama Ela escolhia entre a vida e a morte assim como escolhia entre adoçante e açucar.

Ele se levantou, bateu com a mão nas pernas e se livrou das migalhas. Pediu a Deus um bom dia, e disse "até mais tarde". Passo a passo afastou-se até que sua sombra não pudesse ser vista do corredor. O barulho foi diminuindo até o bater do portão.

__ Até mais, disse para as paredes azulejadas.

Encarou o relógio, o anúncio da rotina, da lista de ocupações diárias, do vazio das horas. Hoje é só mais um dia em que nada acontece, uma continuação do que de fato não começou. Lavava a louça, tinha que deixar a cozinha arrumada e a comida pronta. Nenhum problema, era mulher, e como mulher lhe foram ensinadas suas eternas e sagradas obrigações. Além disso, devia ter boa aparência e ser desejada, tinha que emagrecer e ser boa de cama, pois como mulher, sua mãe já havia ensinado, sabia que os homens não gostam de mesmices, e a menos que quisesse perder o marido pra primeira vagabunda magra que aparecesse, devia emagrecer.

Tinha seu próprio dinheiro e um carro. O dinheiro nunca dava pra muita coisa, o carro, estava sempre com o marido. Não importava, ara uma mulher moderna e independente. Sete e meia. Estava atrasada. Trocou a roupa e deu um jeito no cabelo. Dez pras oito no ponto de ônibus com a pasta na mão.

O motorista pára a três palmos da calçada. As pessoas se empurram e entram emboladas. Qualquer passo a frente é uma vantagem que não pode ser perdida. Um lugar para se sentar é o grande prêmio. Ela se senta. Mais a frente está a menina de cabelo vermelho, que entra um pouco antes e vai sempre para o mesmo banco, também aquele senhor meio antipático e a vizinha da frente batem o ponto no ônibus de dez pras oito.

Ela arregala os olhos e confere um a um, se perguntando o que seria da vida sem essa segurança, sem os rostos conhecidos no início da manhã. Era um sinal de que o planeta seguia normalmente com seus movimentos, um sinal de que haveria dia e noite, de que estava no horário certo e de que nada mudara desde a manhã de ontem. As pessoas continuam com seus empregos e suas famílias, com seus horários e seu dinheiro contado. A doçura venenosa da rotina batendo as asas sobre seus ombros, protegendo-a como um anjo da guarda. Como negar a beleza da rotina? Como sobreviver sem os sorrisos de bom dia para os rostos familiares? Sem a sutileza anestésica da inércia... pois a beleza da rotina é inegável e poética, no entanto, ela mata aos poucos.

Ela desce numa avenida pouco movimentada e atravessa duas portas de vidro fumè. Seu espaço de granito e ar condicionado. É a primeira a chegar. A primeira dos cargos mais altos, obviamente, a essa altura os faxineiros invisíveis já passaram por ali, sendo percebidos apenas pelo brilho lustrado do piso, onde o ruído incômodo do salto faz a oração de agradecimento, barulho sintético de classe e posição. Aqui ela é segura de si, de suas obrigações e condições, pois desde sempre se soubera inteligente e conquistara seus espaços. A prova de sua competência estava na placa dourada e imponente, seu nome em letras cursivas pretas.

Saía sempre meia hora antes do meio-dia para que estivesse em casa com a comida quente antes que ele chegasse, mas hoje, tinha compromissos diferentes. Compromissos. Não planos. Ela não planejou almoçar com a sua irmã para acertar os últimos detalhes do casamento, assim como na planejava qualquer outra coisa. Simplesmente atendeu o telefone e disse oi mãe, claro que posso mãe, não, você nunca me incomoda mãe. Obviamente teve que ligar para o marido e pedir desculpas por ele mesmo ter de esquentar o próprio almoço. É claro que, como era um homem compreensivo, não se importou muito.

Fez seu trabalho meticulosamente como sempre durante toda a manhã até que o celular tocou.

__ Já estou aqui fora te esperando.

Elisa era cinco anos mais nova. Coincidentemente, eram os cinco anos que Ela tinha de casada.

__ Então, o que falta?

__ Flores e o tapete.

__ Já resolveu o problema dos bombons?

__ Já.

__ Almoçamos primeiro ou vamos ver as flores?

__ Por mim, a gente almoça, fiquei a manhã inteira fazendo as últimas provas no vestido, to exausta!

__ Tudo bem então.

Andam apressadas pela rua, visivelmente são irmãs. Sempre se ajudaram nas horas importantes, quase nunca brigavam se amavam como duas irmãs devem se amar. Só não são sinceras uma com a outra porque sabem que a amizade entre mulheres, mesmo entre irmãs, deve ser reservada e cuidadosa.

Durante o almoço Elisa fala da viagem, das roupas que vai levar, e das flores que pretende escolher.

__ Você ta calada...

__ To te escutando.

Elisa franze a testa. Esse é o problema com as mulheres! Não podem sentir de perto a felicidade da outra, que se sentem incomodadas.

__ Ta me escutando? __ retruca com ironia.

__ É, to prestando atenção no que você ta falando.

De fato, é mentira. Enquanto Elisa fala de flores, Ela pensa nos seus dias, no quanto eles são constantes e silenciosos, no quanto eles são longos. O que a incomoda não é a felicidade da irrmã, mas o despreparo de Elisa para o que viria depois, o mesmo despreparo que sentiu meses depois da lua de mel. Provavelmente se ela soubesse como seria sua vida, teria se casado mesmo assim. Afinal o matrimônio tira a mulher do seu jugo de filha, e a coloca no patamar de dona da sua própria casa, o que não quer dizer que ela será dona de sua própria vida, mas escolher seu apartamento e seus móveis já basta para tirá-las da condição de filhas na casa de pais religiosos e moralistas. Teria se casado do mesmo jeito, mas ao invés de escolher flores e planejar viagens, teria assinado um contrato em horário comercial e ido ao cinema depois.

__ Moça, compra um chiclete pra me ajudá?

Uma criança pára diante delas com uma caixa de balas coloridas.

Crianças têm uma peculiaridade assustadora, quando escolhem um alvo, elas olham diretamente dentro da pupila.

Elisa não é sensível ao impacto, resolve numa frase simples:

__ Não, obrigada__ ela sabe que o problema não é dela, nunca sonegou impostos, o governo que se encarregue do resto.

A criança passa a mesa seguinte. Ela olha o prato com salada de palmito. Por um instante, Ela se sente culpada e envergonhada de sua vida confortável. Por um espaço de tempo quase imperceptível, ela desejou não estar com um sapato de couro e se dizer vegetariana, ou não saber que sua blusa custara quase um salário mínimo. Em um momento único, do qual Ela não se lembraria ao entardecer, Ela teve vontade de pedir perdão e se ajoelhar diante de uma imagem qualquer numa Igreja fresca.

__ Rosa não é muito clássico?

__ O que?

__ Eu queria rosas, mas já é tão batido! Lírios talvez... Orquídeas!

De fato, orquídeas têm seu encanto. A maioria delas se dá ao luxo de abrirem flores apenas uma vez por ano, e ainda assim, há quem dedique tempo para cuidar de uma ou duas folhas sem graça, na esperança de um dia, serem prestigiados por uma flor, a espera é tanta e de tão angustiante chega a apagar da memória a imagem ou a cor da futura flor. Mas a memória é uma bordadeira caprichosa, ainda que não se cumpra com fidelidade à realidade, se encarrega de aprimorá-la durante a expectativa. Atração unilateral e sem perspectiva de realização, o amor fantasiado e não correspondido existe mesmo antes de inventarem o amor.

O florista não se assemelha em nada a suas flores. Tem braços rudes e cor de cobre envelhecido, linhas que percorrem as costas e os ombros, o florista não precisa de uma única palavra, ele apenas se move. Ele apenas olha. E a não ser por uma faísca no sorriso, não inspira nada de familiar, ao contrário, pela solidão de sua figura sólida dentre as pétalas coloridas, sua presença causa mais desconforto que simpatia.

Conforme o esperado, as irmãs se assustam ao entrar na estufa. Céus, não é lugar para um homem! Principalmente para um homem nesses moldes! Era apropriado que uma mocinha sorridente abrisse a porta com um vestido claro, era apropriado que a imagem se fundisse ao cenário e se apresentasse como uma tela num museu rococó.

__ Nós viemos ver as flores...

__ Pro casamento?

__ Isso.

__ Podem vir comigo. Já pensaram em alguma coisa específica?

__ Rosas, lírios, talvez orquídeas...

Ela se debruça numa prateleira vazia, enquanto Elisa segue o rapaz por uma escada. Ela se sente cinqüenta anos mais cansada e tem uma montanha russa no estômago. Ela está sozinha no meio de flores que não sabe o nome, e apesar de gostar de flores, não se sente segura de questionar sua vida na frente delas. Apenas deixa que as lembranças dêem voltas inúteis, sem formarem um desenho coeso.

Deixava que os minutos pisassem nela como uma debandada de cavalos perdidos, e formassem em seus olhos uma massa liquida de passividade.

Sem querer, Elisa atropela os cavalos quando desse correndo as escadas e atravessa o salão das flores até o carro.

Ela olha pra cima esperando que o florista apareça.

Elisa bate a mão na buzina três vezes.

Ela entra no carro.

Ambas se olham com espanto.

Ela com os olhos vermelhos e as mangas molhadas, Elisa ainda chorando.

__ Problemas com as flores?

Elisa solta uma gargalhada desesperada.

__ O casamento acaba de ser cancelado...

As irmãs se encaram por alguns segundos. Nada a fazer uma pela outra, elas riem. Riem de uma piada mal contada na adolescência, riem de seu individualismo mesquinho. Riem por serem conservadoras, quando na verdade, elas deveriam ser feministas. Riem, choram e se abraçam até estalarem suas colunas. Não dizem nada de significativo, mesmo porque, não havia muita coisa para dizerem, apenas foram transparentes consigo mesmas e com a outra esquecendo rapidamente tudo o que sabiam sobre as mulheres, deixando de lado o fato de serem essencialmente competidoras e traiçoeiras.

__ Os convites já foram entregues?

__ Já!

__ O que você vai fazer?

__ Pedir para colocarem no lixo reciclável.

__ Me leva em casa?

__ Não vai trabalhar à tarde?

__ Hoje não

__ A gente podia fazer alguma coisa, se você quiser...

__ Alguma coisa o que?

__ Sei lá, a gente sai por aí e decide depois.

__ Eu nem sei mais o que é isso...

__ Por isso mesmo. Seria bom, não?

Talvez seja mais decisiva a escolha entra a vida e não-vida, que necessariamente escolha entre a vida e a morte.

__ É, vai ser bom...


Autor: Gracinda Barros


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