A Lei de Biossegurança



A LEI DE BIOSSEGURANÇA : REPERCUSSÕES ÉTICO-JURÍDICAS

Bruna Oliveira Galperin[1]

Introdução

Este trabalho possui como tema a Lei de Biossegurança e suas repercussões ético-jurídicas. Enfoca a importância do uso de células-tronco embrionárias com a finalidade de promover pesquisas e desenvolver terapias e, portanto, a necessidade de manter em vigor a lei em questão.

Com a aprovação da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05) surgiram muitos questionamentos nos universos ético-jurídico, científico e religioso. São muitas as divergências quanto à constitucionalidade desta lei, que prevê em seu polêmico art. 5º que "[...] é permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento", desde que haja consentimento dos genitores e ainda que os embriões em questão sejam inviáveis ou congelados há três anos ou mais.

Aqueles que afirmavam ser a lei em questão inconstitucional, contruiam suas base argumentativa nop fato de que o uso desses embriões representaria uma violação aos direitos à vida e à dignidade humana previstos na Constituição Federal. Partem, protanto, da premissa de que é não só possível como também plausível a equiparação enrte a proteção jurídica concedida a um embrião inviável, ou seja, que nunca chegará a se tornar um ser humano, e aquela garantida ao homem formado e empleno desenvolvimento, que verá esvair-se a oportunidade de obter a tão sonhada cura para tantas doenças letais.

Foi compartilhando deste posicionamento que o então Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, propôs em junho de 2005 uma ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contraa Lei de Biossegurança, no intuito de impugnar o prescrito pelo art. 5º da lei supracitada.

Não há de se negar que a proteção do embrião deve ter respaldo jurídico uma vez que, ainda para aqueles que pensam não se tratar de uma vida propriamente dita, estar-se-á ao menos a falar de uma expectativa da mesma. No entanto, seria prudente impossibilitar o uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas e terapias que visam beneficiar milhares de seres humanos portadores de doenças e má formação? Pode-se falar em direitos iguais entre aqueles que estão vivos e aqueles que nunca estarão?

Essa indagação gera repercussões em diversos ramos das ciências humanas. Assim sendo, far-se-á mister a análise de questões metajurídicas bem como o estudo acerca das conclusões científicas atingidas até o momento de forma a promover a compreensão acerca do tema. Há de se fazer uma breve explanação sobre o que são as células-tronco embrionárias. É de grande relevância, ainda, que se faça uma análise sobre a inviabilidade dos embriões que serão usados e de que forma eles surgiram durante o procedimento da fertilização in vitro.

É preciso atentar para o fato de que a lei 11.105/05 não fere princípio constitucional algum, mas, em vez disso, protege o ser humano, possibilitando que os avanços da biotecnologia se constituam em favor de toda a humanidade. Portanto, é indispensável que a sociedade esteja a par das discussões científicas deste porte, uma vez que é beneficiária maior.

A afeição pelo tema surgiu desde os primeiros contatos coma disciplina de Direito Civil, no tocante aos direitos da personalidade e dos problemas deles decorrentes. Diante das descobertas científicas em pauta atualmente, o tema chamou atenção por sua importância e magnitude, uma vez que aborda aspectos que podem vir a transformar os maiores medos da humanidade: as doenças e a morte dolorosa que delas decorre.

Viver em sociedade implica, necessariamente, na existência de normas que proporcionem as diretrizes no tocante à convivência entre as pessoas. Para que isso ocorra é preciso que sejam estabelecidos critérios para determinas os paramentos que permitam diferenciar as atitudes em aceitáveis e inaceitável, morais ou imorais. Estes critérios são, em parte, construídos pelos costumes de uma sociedade e em parte pelas leis criadas por aquela. Em ambos os casos são perceptíveis constantes mutações conforme a evolução natural se perpetua entre os homens, implicando em constantes reelaborações das regras sociais para que estas estejam em consonância com as mutações no contexto político, econômico, social e científico.

Por conta das grandes transformações, faz-se necessária a indissociável relação entre o direito, a medicina e a ética, dando surgimento ao biodireito e à bioética. Sujeutando os estudos biológicos a normatizações e a conceitos costumeiros do que vem a serr a moral e a ética, torna-se possível o avanço da biotecnologia sem ferir os direitos fundamentais do homem. Ou seja,

[...] Os valores morais e os culturais são dotados de dinamismo, não sendo imutáveis, mas a própria evolução da civilização humana permitiu que determinados temas envolvendo a pessoa humana resultasse em convicções de moralidade universal, como por exemplo a de não se reconhecer a legitimadade da escravidão [...] O mesmo tem ocorrido relativamente a alguns temas decorrentes da consideração de limites éticos sobre avanços da biotecnologia.[2]

O neologismo "Bioética", a ética da vida, foi desenvolvido pelo biólogo norte-americano Renselaer Potter. Surgiu para definir o estudo da moralidade dos comportamentos humanos no campo das biociências, mas tornou-se uma disciplina que demarca o encontro entre as ciências da natureza e a filosofia.

Na atualidade o desenvolvimento das ciências biológicas é considerável e em muito suplanta a maioria das normas que regem os limites e poderes profissionais. Melohr dizendo, o desenvolvimento atingido pelas ciências biológicas e correlatas na segunda metade do século XX é tão grande que rompe a maioria das normas vigentes[...][3]

Existem parâmetros e princípios que precisam ser abordados para maior compreensão da interdisciplinaridade entre os temas supracitados e são eles os princípios da beneficência, da autonomia e da justiça.

O primeiro diz respeito à obrigação de não causar dano, mas, em vez disso, promover benefícios de forma a minimizar os riscos. É uma ação realizada com o objetivo de estabelecer o dever moral de agir em prol do próximo.

Já o principio da autonomia traz consigo a idéia de que os indivíduos precisam receber tratamento autônomo, sendo necessário seu consentimento para realização de qualquer pesquisa, investigação ou procedimento, evitando possíveis violações à direitos. Segundo as lições de Francisco de Assis Correia, "a autonomia converteu-se em símbolo do direito moral e legal dos pacientes para adotar as suas próprias decisões sem restrição nem coerção, por mais benfeitoras que sejam as intenções do médico".[4]

A justiça, por sua vez, trata da imparcialidade na distribuição de benefícios e riscos presentes em uma investigação. Faz-se necessário um balanceamento entre benefícios, encargos e riscos referentes aos serviços de saúde do indivíduo, de acordo com suas necessidades e em conformidade com seus méritos e contribuições. A união destes princípios é o "fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado".[5]

Deste modo, todas as mutações devem acompanhar criteriosamente os princípios em questão de forma a não fugir das rédeas impostas pela ética e pelo Direito quando forem exploradas novas formas e métodos medicinais referentes a avanços biotecnológicos.

Desde a antiguidade a manipulação de microorganismos já despertava o interesse do homem. As pesquisas relativas às células-tronco embrionárias humanas, por sua vez, são muitos recentes. O primeiro relato de estudos utilizando células-tronco de embriões humanos é de 1998, nos Estados Unidos, dando surgimento a uma "nova humanidade e de uma nova natureza".[6]

Pesquisas com as chamadas células-tronco adultas, como as extraídas da medula óssea e as do cordão umbilical de recém nascidos, já não são tão recentes, mas, segundo a professora de Hematologia da Faculdade de Farmácia UFRGS e especialista no assunto, Patrícia Pranke, o primeiro transplante de medula óssea, bem sucedido, foi realizado apenas em 1968.

Em 1988, foi realizado o primeiro transplante de células-tronco originárias de sangue do cordão umbilical na França. Até então, essas células era utilizadas no tratamento de doenças do sangue, como a leucemia. Foi apenas no fim da década de 1990 que se começou a pesquisar a aplicação dessas células em outros tipos de doenças. Descobriu-se então a existência das células-tronco embrionárias, primeiramente em camundongos e, em seguida, percebeu-se a existência das mesmas em seres humanos.

As células-tronco são células que possuem grande capacidade de se dividir originando células semelhantes, podendo adaptar-se e formar os mais diversos tipos de tecidos como músculos, sangue, ossos, etc. Estas células ainda não apresentam características diferenciadas que as especifique como sendo da pele ou dos músculos, por isso podem transformar-se em qualquer uma delas.

As células-tronco adultas, diferentemente das células-tronco embrionárias, são encontradas em muitos tecidos do corpo humano e não suscitam polêmica alguma, uma vez que não coloca em questão o aproveitamento de um embrião. No entanto, apesar da facilidade de manipulação deste tipo de célula, sua capacidade de diferenciação e conseqüente transformação em tecidos, é bastante limitada se comparada às células-tronco embrionárias, que são chamadas de totipotentes, ou seja, podem produzir todas as células embrionárias e extra embrionárias. Assim, as células-tronco adultas são mais especializadas e dão origem apenas a alguns tipos de tecidos.

Com sua enorme capacidade de transformação, as células tronco embrionárias trazem à tona a chance de encontrar respostas e curas para doenças como as cardíacas, alguns tipos de câncer, distrofia muscular, Alzheimer, Parkinson, etc. Traz, portanto, esperanças a muitas famílias e pessoas que sofram dos mais diversos tipos de degeneração, não podendo a sociedade manter-se alheia à grandiosidade desta descoberta.

Fica assim clara a peculiaridade que reservam as células-tronco embrionárias. Recentemente, foram publicadas pesquisas consideradas como inovadoras que afirmavam que a produção de células-tronco a partir de células da pele era possível e promissora na substituição das células-tronco embrionárias. Os religiosos saudaram calorosamente a descoberta assim como o presidente americano, porém os cientistas alertam para o fato de que esta produção, por ser induzida, poderia vir a causar tumores nos pacientes. Ainda não se sabe sobre os riscos que este procedimento representaria ao ser humano, visto que as terapias só são aplicadas cerca de quinze anos após sua descoberta.

Mais uma vez faz-se evidente a importância que as células-tronco embrionárias possuem. Não é válido vetar sua utilização, mas sim buscar uma associação de técnicas, que, se utilizadas conjuntamente, podem desencadear grandes feitos.

São alguns os países que já realizam pesquisas com o uso de células-tronco embrionárias humanas. Entre eles destacam-se Inglaterra, Japão, Austrália, Canadá, Coréia do Sul e Israel. Nos Estados Unidos, os estudos foram autorizados durante o governo Clinton, mas o último presidente, George W. Bush, deixou para as instituições privadas o encargo com os investimentos. Como se pode observar, alguns dos países mencionados são considerados como propiciadores de excepcional qualidade de vida. Enquanto isso se questiona no Brasil a constitucionalidade de uma lei que abre um leque de novas e incríveis oportunidades.

Cabe então abordar a origem desses embriões que são utilizados para extração de suas células-tronco a fim de melhor definir as etapas por onde atravessam estas células. Há de se saber que não se tratam de quaisquer embriões. Aqueles utilizados com esta finalidade são os oriundos do procedimento denominado fertilização in vitro. Além disso, são aqueles que foram considerados como sendo inviáveis, ou seja, que apresentam menor probabilidade de vir a desenvolver-se e tornar-se um feto e, por conta disso, seriam descartados.

É de suma importância ressaltar que muita polemica gira em torno do fato de serem estes embriões "excedentes" descartados. Mas não se ocupa este trabalho de questionar este aspecto, mas sim de demonstrar que, considerando que estes embriões na têm destinação alguma e são descartados ou congelados sem previsão de aplicação para fim algum, poruqe não utiliza-lo para assegurar que o benefício que podem causar chegue a milhares de pessoas que, em vida, sofrem alguma doença?

Na fertilização in vitro, o que ocorre é uma simulação da fecundação natural com a diferença de que são vários os óvulos fecundados artificialmente, visto que a probabilidade de sucesso no desenvolvimento de um embrião gerado por este método é mais difícil, assim, aumenta-se a quantidade de embriões que serãoinseridos na cavidade uterina para que sejam maiores as probabilidades de êxito no procedimento.

No momento da seleção entre os embriões com melhor formação celular é que se determinam quais os que, por alguma razão, não possuem grandes chances de serem bem sucedidos. Estes últimos serão os considerados inviáveis. Quando se fala em "inviáveis" quer-se tratar de seu potencial relativo à produção assistida, o que não os torna inúteis, já que podem ter grande contribuição se utilizados para fins de terapias e pesquisas, como prevê a lei 11.105/05.

A Lei de Biossegurança veio para regulamentar o inciso II do art. 225 da Constituição Federal, que obriga o Poder Público a preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e regular as entidades destinadas à manipulação e pesquisa de material genético. Trata, portanto, de diversos aspectos relativos à biotecnologia, entre eles o artigo que está sendo explorado como objeto de discussão.

Aqueles que se opõem à lei a chamam, ironicamente, de Lei do Biocrime, afirmando que a mesma assegura proteção jurídica à matança de seres vivos (os embriões). Abre-se então uma grande questão, que é onde se concentra toda a polêmica: podem os embriões serem considerados seres humanos e a eles serem atribuídas expectativas de direito? Com certeza a resposta para esta pergunta é muito clara, posto que o Código Civil traz, no bojo de seu art. 2º que "a personalidade civil da pessoa humana começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". No entanto, trata-se apenas dos nascituros, que são aqueles embriões que se encontram dentro do útero materno em estado de feto. Resta uma lacuna quanto àqueles gerados em laboratórios, como é o caso dos embriões que interessam às pesquisas de células-tronco embrionárias.

Ainda que seja adequado considerar o nascituro como sendo qualquer embrião, situado em qualquer lugar, este argumento ainda assim perde sua validez, uma vez que a lei 11.105/05 é muito específica quanto à qualidade de inviável que atribui aos embriões destinados às pesquisas. Assim sendo, não há de se falar aqui em violação ao direito à vida, uma vez que não haveria vida alguma de qualquer maneira, a menos que se considere aquelas que serão salvas com a mantença da lei em vigor, logo, "[...] há um direito à vida e não um direito sobre a vida".[7]

Já faz algum tempo que o mundo apercebeu-se do poder da ciência. Sabe-se inclusive que a religião há muito não consegue evitar os avanços e descobertas científicas apesar de seus grandes esforços neste sentido. O Estado brasileiro não intervencionista também não dá margem à existência de interferências que venham a causar obstruções ao desenvolvimento científico. Assim sendo, não se pode olvidar que não existem barreiras intransponíveis quando se trata da curiosidade que o homem possui acerca de sua própria existência.

Aos cientistas foram concedidos, ao longo dos tempos, grandes méritos e desafios, gerando um inevitável senso de admiração e respeito entre eles e a sociedade em geral. Essa confiança estabelecida gera muitas controvérsias e debates, principalmente por parte daqueles que insistem em acreditar em uma "conspiração mundial" controlada pelos que detêm informações de alto grau de relevância, como por exemplo, os cientistas.

[...] realizou-se na Flórida, Estados Unidos, a Conferência sobre Ciência e Valores Sociais. No encontro, discutiram-se as relações de certa confiabilidade irrestrita que a sociedade havia estabelecido com os cientistas [...] Essa conferência foi um fórum de reflexão sobre a função social das ciências da natureza. Funcionou como um estopim de inquietação nos meios científicos.[8]

Este alvoroço científico assusta aqueles que são leigos nos assuntos em questão, gerando algumas dúvidas quanto à veracidade dos fatos pronunciados. Algumas pessoas que concordam com a inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança tentam levantar suspeitas acerca das descobertas afirmando que ainda não há nenhuma certeza quanto ao poder de cura que pode ser desenvolvido pelas células-tronco embrionárias. Se assim fosse, estas mesmas pessoas não afirmariam com tanta veemência que as células-tronco deveriam ser extraídas da pele, do fígado, do cordão umbilical, etc. Sendo estas células menos capazes de promover cura, seu argumento seria falho enquanto preterisse as provenientes dos embriões.

É oportuno observar que a despeito das várias experiências científicas com repercussões negativas no decorrer do século XX, com guerras e crimes que empregaram as tecnologias, inclusive no campo da biologia, pode-se afirma [...] que o último século do segundo milênio foi também o século da vida: o século em que o conhecimento científico sobre a vida se aprofundou sobremaneira, permitindo a melhoria de sua qualidade para a maior parte da espécie humana.[9]

É imprescindível lembrar que a legislação penal, de forma indireta, porém muito clara, deixa indícios de que se deve preferir a vida do ser já nascido em relação àquele que ainda não nasceu, como é o caso do inciso I do art. 128 do Código Penal, que afirma que o aborto praticado pelo médico no intuito de salvar a vida da gestante não é punido. Ora, daí tem-se que a própria lei já garante à mulher o direito de preferência quando a vida de ambos estiver em apuros. Deste modo, não seria incoerente afirmar que é justo privar o homem de se ver curado de doenças cuja cura jamais fora imaginada? Não haveria um conflito entre as normas?

A lei 11.105/05, portanto, não fere principio constitucional algum, sendo por outro lado ilícito tentarobstruir o bom andamento das descobertas cientificas e sua efetivação. O art. 5º da Lei de Biossegurança tem o devido cuidado de deixar claro que os embriões destinados à pesquisa são aqueles cuja vida jamais virá a se desenvolver, protegendo, e não prejudicando, o embrião de onde será extraída uma nova possibilidade de vida: as células-tronco embrionárias.

7. Referências Bibliográficas

BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Coimbra: Almedina, 1998.

BARRETO, Vencente de Paulo. Bioética, biodireito e direitos humanos. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1998.

CORREIA, Francisco de Assis. Alguns desafios atuais da bioética. Fundamentos da Bioética. São Paulo: Paulus, 1996.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

OLIVEIRA, Fátima. Engenharia Genética. O sétimo dia da criação. São Paulo: Moderna, 2004.