O Jardim



Todos conheciam Catarina e Celina. O que também não era nada de excepcional numa cidade de três mil habitantes.

A casa onde as irmãs moravam ficava na rua das amendoeiras, atrás da Igreja de N.S. D'Ajuda. Ambas eram muito discretas, e mesmo não comparecendo às missas de domingo, ganharam a simpatia das beatas e até do Padre.

Catarina era professora de história na escola primária da cidade, onde seu filho estudava também. Aos fins de semana montava peças de teatro com as crianças e andava à cavalo nos fins de tarde. Celina era enfermeira, trabalhava no posto de saúde e era a única que fazia curativos no Padre recém operado do coração. Também se ocupava de grupos de apoio a adolescentes grávidas aos sábados.

Era comum que as senhoras da cidade toda aparecessem aos domingos pedindo mudas de planta, pois o jardim das jovens irmãs era famoso na região. E de fato, fazia por merecer a fama. Nos fundos da casa havia intermináveis canteiros e hortas, numa mistura singular e de extremo bom gosto, de cores e cheiros. Rosas, manjericão, cravos, hortências, amores-perfeitos, onze-horas, flores de maio, limoeiro, couve-flor, alface, tomates-cereja e tantas outras coisas que seria impossível numerar sem estar lá.

No início da manhã Celina saía para o posto de saúde. Catarina cuidava da casa e da horta, e fazia o almoço. Almoçavam todos juntos, Catarina, seu filho que devia ter uns oito anos e Celina. Pela tarde Celina voltava ao posto e Catarina ia com o filho para a escola. À noitinha, quem passasse pela rua das amendoeiras podia vê-las sentadas na varanda tomando uma caneca de vinho gelado e acenando com a doce simpatia de sempre, imersas em suas vidas solitárias e bucólicas.

O fato de não irem a Igreja às vezes gerava murmúrios e indagações entre os mais religiosos, mas ambas contavam com a simpatia de pessoas importantes da cidade, como o padre, a diretora da escola, o secretário de saúde e até mesmo o prefeito, que certa vez precisou de aulas particulares para o filho que prestava vestibular numa cidade próxima e foi gentilmente ajudado por Catarina, que nem ao menos cobrava as aulas para o rapaz. Assim, ainda que fofocas surgissem, eram rapidamente dispersadas.

Houve mesmo um episódio específico que tirou da cama o Padre e o prefeito para averiguar uma ocorrência policial.

A pequena Ludmila bateu na porta das irmãs numa sexta-feira à tardinha:

__ Celina, o Arthur ta aí? É que a gente vai brincar de queimada ali na frente.

__ Ah meu bem, o Arthur foi passar o fim de semana na casa do pai dele, só volta no domingo à tarde. Você quer um bombom de uva? Catarina acabou de fazer!

As crianças gostavam de jogar bola perto da casa de Celina e Catarina, pois sabiam que se a bola caísse no quintal delas, não teriam problemas em pegar, nem teriam de ouvir chingamentos típicos de velhos rabugentos.

Naquela sexta-feira um homem desconhecido na cidade passou pelas crianças e também bateu à porta das irmãs.

__ Oi Catarina.

__ Marcelo! Tudo bem? Nossa, você está ótimo!

__ Desculpa a demora, é que o ônibus atrasou um pouquinho.

__ Que nada, entra.

Ludmila, que já estava na idade de se interessar por romances e gostava particularmente da vida alheia, começou a observar da rua, o pouco que se podia ver da janela aberta da sala. Logo Celina apareceu, mas para a decepção da garota, tudo o que via eram pessoas numa conversa animada, no sofá da sala. Por isso, voltou sua atenção para o jogo de queimada novamente. Até que algum tempo depois, a bola atravessou o murinho da casa e deu-lhe a oportunidade de bisbilhotar mais de perto.

Como já era de costume das crianças, Ludmila entrou pelo portão sem avisar, pois não tinham mesmo problemas para pegar a bola no quintal daquela casa.

Quando passou embaixo da janela do quarto, ouviu a voz aguda de Catarina:

__ Vamos tirar logo dali. Uma mancha de sangue no sofá branco vai ser difícil de limpar.

__ Claro que não__ respondia Celina__ Porque você acha que eu fiz questão de um sofá de courino? É só passar um paninho com Veja!

Ludmila se interessou pelo que tinha ouvido, será que tinha tido uma briga? Sangue! Talvez elas só tivessem cortado os dedos num abridor de latas ou coisa assim. Mas pra tirar a dúvida, uma olhadinha discreta enquanto passava pra pegar a bola, não seria assim tão condenável. Depois de pegar a bola olhou para dentro da casa pela janela da sala e ali estava o rapaz que tinha entrado horas antes, deitado com a testa sangrando. Saiu correndo e denunciou sua presença.

__ Demorou Ludi!

__ Tava difícil de achar a bola.

__ Tava na nossa vez de lançar!

Logo que recomeçaram o jogo, Catarina apareceu na janela.

__ Meus queridos...

Ludmila sentiu o estomago pulsar na garganta como um relógio de corda.

__ Será que vocês podem brincar em outro lugar hoje? É que nós estamos cansadas e é impossível dormir com vocês gritando sem parar embaixo das nossas janelas...

As crianças obedeceram meio a contragosto, mas se tia Catarina pediu...

Ludmila não continuou a brincar, foi pra casa com as mãos geladas e passou a noite ponderando com a mãe, o que tinha visto e o que devia fazer.

No sábado de manhã, dois guardas municipais o prefeito e o padre batiam na mesma porta.

__ Isso é ridículo!

__ Mas se foi visto, nós temos que averiguar.

__ A gente vai passar é vergonha...

__ Isso é coisa da cabeça de criança!

__ Essas meninas são muito estranhas, a gente nem sabe nada sobre elas!

__ Mas é claro que sabemos, elas trabalham o dia inteiro e olham pras nossas caras todo santo dia!

A porta se abriu e Catarina apareceu enrolada num roupão azul.

__ Bom dia! Nossa é muita gente pra pedir mudas de planta num sábado de manhã!__ disse sorrindo.

__ Nos desculpe pelo horário minha filha__ dizia o padre com uma voz grave.

__ Aconteceu alguma coisa?

__ Na verdade, recebemos uma denúncia muito desagradável de algo ocorrido aqui, e para poder livrar vocês duas logo desse mal-entendido, resolvemos vir o mais rápido possível.

__ Em que podemos ajudar?

__ A denuncia é de que teria ocorrido uma agressão aqui na casa de vocês ontem a noite.

Celina chegou à porta com cara de sono e comendo uma maçã.

__ Agressão? Bom, como vocês podem ver nós estamos bem.

__ Oh, não minha filha__ disse o Padre se voltando para Celina__ a acusação é de que vocês agrediram um homem.

__ Oh! Puxa! Bem que eles merecem...

__ Podemos entrar?__ Sugeriu um dos policiais.

__ Claro!

A casa estava em ordem. Só umas garrafas de cerveja sobre a mesa da sala, uns copos um resto de batatas fritas num pratinho com papel toalha.

__ Desculpem a bagunça, é que nós tomamos uma cerveja com um amigo nosso ontem, e acabamos dormindo sem arrumar.

__ É, mas isso não crime, não é mesmo?__ acrescentou Catarina com um sorriso despreocupado.

__ Claro que não minha filha!__ Riu o padre.

__ Vocês receberam um amigo ontem?

__ Sim. Recebemos.

__ Que horas ele chegou?

__ Umas sete e meia. Veio no ônibus das sete, mas disse que o ônibus atrasou.

__ Houve alguma discussão entre vocês?

__ Não, de jeito nenhum.

__ Bem, é que a testemunha disse ter visto um homem ferido, desmaiado no sofá.

Celina deu uma gargalhada.

__ De fato, quem viu isso não mentiu. Marquinhos!

Um homem saiu de dentro do quarto com um curativo na testa.

__ Meu bem, o seu porre ontem assustou nossos vizinhos!

__ Oi... Bom Dia, eu to meio por fora, num to entendendo nada.

__ Alguém te viu desmaiado no sofá e fez uma ocorrência de agressão!

__ Eh... agressão da cerveja comigo?

__ Ou de você com a cerveja!

O policial continuou entediado:

__ Já vimos que foi um mal entendido, mas vocês poderiam contar em detalhes o que aconteceu?

__ Eu tomei umas a mais, caí de cabeça da quina da mesa... E de fato, apaguei logo que as meninas fizeram o curativo.

__ Ele errou a mira no sofá! __ dizia Catarina no meio das risadas de Celina.

__ Estamos nos sentindo até envergonhados de perturbar vocês essa hora da manhã.__ disse o Padre sorrindo.

__ De maneira nenhuma, é o trabalho dos guardas, não é mesmo?__ respondeu Catarina sorrindo.

Todos se encaminharam à porta. Por fim o prefeito, que entrara mudo, resolveu não sair calado:

__ Ah! Acho que não te agradeci ainda! Meu filho passou no vestibular!

__ Que ótimo, não precisa me agradecer, eu fico muito feliz que ele tenha passado!

Fecharam a porta e foram os três para o quintal. Celina e Marcos se abraçaram no banquinho de madeira:

__ Você sabe que eu faço qualquer coisa por você, não sabe?

__ Claro! E eu espero poder retribuir tudo isso que você faz por mim.

Catarina foi preparar o café.

Como era mesmo lindo aquele jardim! E agora com o canteiro de cactos, estava completo.

Na verdade, ninguém conhecia Celina e Catarina, o que era uma raridade numa cidade de três mil habitantes.

__ Oi Catarina.

__ Marcelo! Tudo bem? Nossa você está ótimo!

__ Desculpa a demora, é que o ônibus atrasou um pouquinho.

__ Que nada, entra.

__ A Celina disse que era pra eu não vir de carro que a estrada era horrível, mas pelo que eu vi no ônibus, não é tão ruim assim. E atrasou tanto!

__ Ah não! A estrada é ótima, é que a Celina é tão exagerada!

__ O que vocês estão falando de mim?

__ Caramba Celina! Você está ótima!

__ Estou mesmo, mas você também não ta mal não...

__ Há quanto tempo não nos vemos?

__ Uns cinco anos?

__ Nossa é muito tempo!

__ Queridos vou trazer uma cerveja pra gente. Senta aí Marcelo, fica a vontade.

Catarina voltou com três garrafas de uma vez.

__ Vai ficar quente, não?

__ Nada, ta super gelada! Vou fritar umas batatas pra gente.

E voltou para a cozinha.

__ Sabe Celina, quando você me ligou eu não acreditei... Tem tanto tempo que a gente não se fala...

__ É. Como anda sua vida?

__ Trabalhando no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas.

__ Que tédio!

__ É! Bem entediante. E você?

__ Trabalhando no que eu gosto, ganhando meu dinheiro, cuidando de mim...

__ Nunca te imaginei morando numa cidade pequena, muito menos com a Catarina e o Arthur!

__ Por que não, nós duas sempre fomos tão unidas.

__ Nem sempre.

__ Tínhamos nossas crises, mas nunca nos abandonamos.

__ Hoje eu vejo que é muito bonita a amizade de vocês duas. Eu queria ter um amigo assim.

__ Pessoas como você não são capazes de ter uma relação assim, nem com amigos, nem com família, nem com namoradas... Por que pra ter uma relação assim é preciso se doar por inteiro e ser transparente com a outra pessoa, e isso você é incapaz de fazer.

__ Uau! Eu sabia que um encontro com você depois de tanto tempo, não ia ser fácil, mas não sabia que você ia pegar tão pesado comigo!

__ Ainda nem começou.

__ Não... Você não me pediu pra vir até aqui pra discutir um relacionamento que acabou a cinco anos né?

Celina riu.

__ Seis. E não... não mesmo.

__ Então por que me chamou?

__ Saber como você estava? Como estava sua vida... Ah! Me diz uma coisa. O que a sua mãe falou de você vir me visitar?

__ Nada. Não falei com ninguém que viria, aliás, você me chamou hoje de manhã e falou que era urgente, nem se eu quisesse ter falado com ela não teria dado tempo.

__ Mas aposto que seus amigos chatos falaram pra você não vir!

__ Você não conhece nenhum dos meus amigos atuais...

__ Mas seu gosto pra amizades é péssimo.

Catarina chega por trás do sofá e acerta a nuca de Marcelo com uma pá.

Marcelo cai para o lado.

__ Merda Catarina!

__ Que foi? Acertei de primeira!

__ Mas não esperou ele falar se os amigos dele sabiam que ele estava aqui!

__ Ah! Cê! A gente não pode contar com isso de qualquer jeito, temos que fazer tudo como sempre,

__ Tudo bem, você ta certa. Pelo menos não veio de carro.

__ Pelo menos! Lembra o trabalhão que deu pra sumir com o carro do Ivan?

__ Se lembro!

__ Vou no quarto pra pegar a morfina antes que ele acorde. Vamos tirar logo dali. Uma mancha de sangue no sofá branco vai ser difícil de limpar.

__ Claro que não__ respondia Celina__ Porque você acha que eu fiz questão de um sofá de courino? É só passar um paninho com Veja!

Catarina volta pra sala com os vidrinhos.

__ Toma. Aplica aí que eu vou ligar pro Marcos... Que barulho foi esse?

__ As crianças estão brincando lá fora?

__ Estão.

__ Detalhe importante.

__ Vamos fechar as janelas?

__ Não, vai chamar mais atenção que despistar. Peraí que eu vou dar um jeitinho.

Catarina chega sorrindo à janela da sala:

__ Meus queridos... Será que vocês podem brincar em outro lugar hoje? É que nós estamos cansadas e é impossível dormir com vocês gritando sem parar embaixo das nossas janelas... Pronto. Vou ligar pro Marcos.

__ Hora do trabalho sujo!

__ Esse morto é seu!

__ Quebra essa pra mim vai! Fiz a unha de manhã... e queria conversar com ele mais um pouco.

__ Onde?

__ Depois das roseiras, vai chamar pouca atenção.

__ Ta me devendo essa hein?!

Catarina vai para o jardim com a pá e some no meio das folhagens.

Marcelo acorda sentado num banco de madeira no jardim. Apesar de dopado, tem a absoluta certeza de estar ouvindo Roxette. Noite de lua minguante. Quente e mal iluminada.

__ Oi querido. Achei que você ia gostar de ver nosso jardim. Sabe, eu não sei qual é o problema com vocês homens... Como vocês conseguem se sentir tão à vontade e tão livres de culpa depois de fazer uma mulher pensar em suicídio...

Celina dá um beijo no rosto dele e aponta para cada canteiro.

__ O Israel foi o primeiro. Ah! A Catarina tentando acertar a nuca dele com a pá parecia uma criança brincando de tiro ao alvo, quase que ele conseguiu sair da casa... ela sempre foi péssima de mira! Pra tirar fotos então... O Israel era namorado dela. Do tipo que fala "eu te amo" numa semana e "estou me sentindo atraído por outra pessoa na próxima". Tadinha! Chorou uns dois anos por causa dele. Ele foi o primeiro, a gente tava morrendo de medo, por isso além de enterrarmos o corpo, fizemos o orquidário por cima. Aquele ali é nosso pezinho de trombeta... uma flor linda não é mesmo? Por baixo dele está o Ivan... ele nunca atendia o telefone, nem retornava as ligações! Deixa ver, ali está a...

Catarina aparece do meio dos canteiros com a pá.

__ O Marcos já pegou os cartões do Marcelo. Vai se hospedar no motel mais longe que ele conseguir ir e voltar até o amanhecer

__ Eu preciso te dizer algumas coisas... faz parte da nossa estratégia... fazer vocês escutarem... Eu me dediquei a você por quatro anos e você me tratou como se eu fosse lixo. Eu abri mão dos meus planos e dos meus amigos. Eu me adaptei a você. Eu te dei uma família! Eu te apoiei nos seus piores momentos. E a primeira coisa que você fez quando se deu bem na vida foi me chutar como se eu fosse um cachorro que estivesse pedindo um pedaço de pizza fria num botequim qualquer! Você não teve nem a decência de terminar comigo! Você simplesmente me ignorou até eu entender sozinha o que você queria e ter que terminar com você... mesmo sabendo que eu te amava! É claro que você tinha o direito de não me amar mais, mas você tinha o dever de ser honesto comigo!

__ Chega de conversa. Acabei.

__ Você abriu essa tão rápido!

__ To pegando a manha do negócio.

__ Muito bem, em suma você foi um cretino. Mas foi um cretino com a mulher errada!

As irmãs se arrastam pelo jardim carregando o homem.

__ Marcelo, quando eu disse que você estava ótimo era mentira... você está gordo!

Jogam o corpo na vala aberta por Catarina.

__ Meu bem, eu não sou do tipo rancorosa. Eu sou do tipo que enterra as lembranças! E você pode ter certeza que depois disso, eu vou ter te perdoado.

Enterram.

Plantam lindos cactos por cima e decoram com cristais.

De fato, é um lindo jardim.


Autor: Gracinda Barros


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