A Deriva Do Universo Na Filosofia Pascaliana
O conhecimento do homem leva ao conhecimento do universo. O universo, pensado via geometria, que para o século XVII era o conhecimento mais seguro que temos, passa a ser concebido de forma infinita, o universo infinito apaga todos os vestígios de Deus presente nas criaturas. Esta falta das marcas de Deus nas criaturas torna o universo mudo. Mudo porque não há mais como o homem significar o universo como fazia os medievais, uma vez que não há mais lugares naturais. Como pode o infinito ter centro ou periferia? (PARRAZ, 2004, p. 52 apud, Aristóteles, 1926, p. 103,)
Assim, em um universo desordenado, pois lhe falta centro, qual o conhecimento que o homem pode ter deste universo? Qual é o ponto em que se apóia este universo? Há uma referência para ele? Ora, o universo está, segundo o pensamento pascaliano, sem referência sólida pelas quais se justifique então o universo está à deriva uma vez que tais referências sólidas não lhe são presentes. Segue-se, então, a pergunta que permeará nosso trabalho: o como e o por quê da deriva do universo?
1 Análise do fragmento 693, Ilha deserta
Os termos chaves para podermos entender a antropologia pascaliana servem também para entendermos sua concepção de mundo. Cela, calabouço, prisão e Ilha Deserta, entre outro, são termos chaves para este entendimento.
Todos esses termos são importantes, mas, sobretudo, nossa reflexão se assentará no fragmento 693, onde encontraremos junto com o fragmento 72 sua visão do universo
No fragmento 693 Pascal diz
Vendo a cegueira e a miséria do homem, observando todo o universo mudo e sem luz, abandonado a si mesmo, e como que exilado neste recanto do universo, sem saber quem o pôs lá e o que veio aqui fazer, o que se tornará ao morrer, incapaz de qualquer conhecimento, eu caio em terror como um homem que tivesse sido levado dormindo para uma ilha deserta e aterrorizante, e que acordasse sem saber onde estava e sem meios de escapar (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 693)
Analisemos esse fragmento em partes.
O homem pascaliano é paradoxal, trás em si marcas de grandeza e miséria concomitantemente: Vendo a cegueira e a miséria do homem (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 693). A cegueira e a miséria, não permite ao homem ver a si mesmo e à sua volta, por isso, ele não pode conceber a totalidade do universo, nem sua origem, nem seu fim. A cegueira atemoriza o homem, pois revela, ou melhor, confirma o que ele já sabe: é nada diante do infinito. o finito se aniquila diante do infinito (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 233)
O mesmo homem que se encontra mísero, observa: observando todo (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72). Não investiga, mas contempla em silêncio ao invés de investigar com presunção. transformando sua curiosidade em admiração, preferirá contemplá-las em silêncio a investigá-las com presunção (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72). Na verdade, observa porque nada mais pode fazer diante do espetáculo do duplo infinito. No fragmento 72, Pascal nos mostra o que é o universo. O universo é um espetáculo, isto é, algo que se apresenta a alguém para admirá-lo: entre esses dois abismos do infinito ... tremerá à vista de tantas maravilhas (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72). O universo causa admiração no homem, porque ele revela ao ser humano mais do que ele pode conceber. mas se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará de conceber que a natureza de revelar (PASCAL, Pensamento, 1973, frag 72).
A observação do infinito é utilizada por Pascal como mecanismo de autoconhecimento: Sur quoi on peut apprendre à sestimer à son juste prix, et former des réflexions qui valent mieux que tout lê reste de la géométrie même 1 (PASCAL, Oeuvres Complètes, 1954, p. 591). É olhando para o que existe que o homem reconhece quem é: que o homem ... considere o que é diante do que existe (PASCAL, Pensamento, 1973, frag 72). É aqui que o homem conhece sua desproporção com relação à natureza.
O que Pascal está sustentando é que esse homem fendido, abandonado a si não tem mais cumplicidade com a natureza, ou seja, é desproporcional a ela. A natureza, tal como era concebida pela filosofia medieval fazia como que a ponte entre o homem e Deus, posto que ela era a via de acesso da razão a Deus. Havia, desta forma, uma cumplicidade entre o homem, a natureza e Deus, uma vez que por meio dela o homem podia chegar ao conhecimento de Deus e, por conseguinte, ao conhecimento de si próprio. Mas, quebrada essa relação (pela queda) do homem com a natureza, isto é, marcada a desproporção entre ambos, a natureza deixa de ser cúmplice do homem, ou em outras palavras, a natureza não revela mais Deus ao homem, muito menos revela-lhe sua própria imagem, isto é, sua essência.
O homem é um ser que não tem relação com a natureza: conhecemos a existência do infinito e ignoramos a sua natureza, porque tem extensão como nós, mas não tem limite como nós (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 233). É essa falta de relação, causada pela queda, que torna o homem cindido, estranho à natureza. Esta estranheza, manifestada na desproporção do homem com relação à natureza, marca a quebra do elo entre o homem e Deus. Por isso que o universo de Pascal é mudo.
Em toda filosofia medieval a concepção de que Deus falava por meio da natureza era muito forte. As marcas do Criador estavam impregnadas em toda parte. Com a aplicação da geometria euclidiana no conhecimento do universo, este, o universo, passa a ser concebido de forma infinita. Com a infinitude do universo as cosias não carregam mais as marcas de Deus, os vestigias Dei, pois os espaços sagrados, privilegiados, esvaem-se no cosmo infinito. No infinito não há referência, daí a negação da possibilidade de haver direções, lugares naturais como afirmava Aristóteles. O cosmos aristotélico cai por terra em meio a infinitude (via matemática, do cosmo na Idade Moderna). Há a dessacralização do mundo. A geometria ausenta Deus do mundo, em outras palavras, o mundo perde Deus. E esse Deus perdido 2, ou mesmo, a perda da figura e do lugar de Deus na ordem do cosmos faz com que o universo seja lançado ao léu, ou seja, lançado à deriva. O infinito do universo revela o rompimento entre Deus e o mundo, o mundo e o homem.
Outrora podia-se fazer uma espécie de hermenêutica do universo, dado o fato de estarmos em uma posição privilegiada, a saber, o centro do universo, daí poderíamos inferir o que estava acima e abaixo; do lado direito do lado esquerdo etc. Partindo da afirmação, que o homem estava no centro do universo, era possível a ele classificar as outras coisas a partir de seus lugares naturais, suas direções. Porém, com a infinitude do universo isso se torna impossível, pois se perde toda referência. A idéia de infinitude implica que todos os lugares são equivalentes, uma vez que perde-se os lugares privilegiados. Não há lugares naturais. No universo infinito os espaços são isótropos e homogêneos.
O universo que falava 3 outrora aos homens, pois havia em todas as coisas os vestígios de Deus, torna-se mudo. Não há como afirmar mais nada acerca do mundo, senão sua infinitude. E isso é que mais causa temor ao homem, é insuportável a ele: o silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 206). Esse pavor supera em magnitude a transferência de centro operada por Copérnico, uma vez que a mudança de centro do mundo não implica necessariamente na infinitude, mas ao homem acarreta a perda do seu lugar privilegiado.
Diz Pascal: sem luz natural, abandonado a si mesmo (Pensamentos, 1973, frag 693), o homem encontra-se no mundo numa total falta de sentido, garantia e paz. Ele não tem uma luz no sentido de uma luz natural como havia em Descartes que revelava a ele a verdade acerca de todas as cosias existentes no universo. O homem está no universo, segundo Pascal, abandonado e sem luz, por isso, não pode tratar racionalmente de uma criação, visto que conceber o ato criador no pensamento de Pascal é da ordem de uma revelação sobre natural e não racional.
Sem poder encontrar um fundamento para o seu existir, posto não poder compreender Deus, nem sua criação, o homem está abandonado a si. Neste abandono ele só pode encontrar-se em uma profunda inquietude. num mundo que o relembra sempre de sua verdadeira existência, ou seja, estar como que perdido neste recanto do universo (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 693).
Em Platão tínhamos o corpo como cárcere do homem, em Pascal é o universo o cárcere da alma: imagine-se um homem na prisão, não sabendo se sua sentença ... (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 200). O homem está perdido. A mais notável característica de quem está perdido é que todas as direções se equivalem. Quem está perdido está sem referência, e mais ainda, a pessoa perdida sente-se estranha e num lugar estranho. Por isso que o homem, diante da nova cosmologia ou nova ciência do cosmo, só pode estar perdido, sem referência, com sentimento de estranheza com relação ao mundo; e este sentimento é conseqüência de se afirmar a infinitude do universo, pois o ser cindido percebe sua desproporção em relação ao universo e se pergunta: o que é o finito diante do infinito? (PASCAL, Pensamentos, 1973, frag 72).
Autor: Fábio Moraes
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