Briga de Galos



O Pedro Ponte mudara-se para a cidade levando na rabeira perto de uma dúzia de filhos. E colocara à venda a terrinha pouca onde o bisavô, o avô e o pai dele criaram um punhado de filhos, porque, com a chegada da calça jeans, do tênis, do radinho de pilha e da televisão, a renda tornara-se insuficiente perante as novas necessidades. Daquelas terras gerações numerosas haviam tirado o sustento, plantado lavouras, colhido o feijão, o arroz, bebido o leite, fabricado o queijo, colhido os ovos, engordado o capado. Viveram muito bem, sem saberem que não tinham conforto. Então, da noite pro dia, vieram os postes de energia e trouxeram o rádio, e o reclame, que lhes contaram que precisavam de mais. E assim, como Adão, que naquele tempo soube que estava nu e se envergonhou, eles souberam que não eram produtivos, que suas crianças eras desnutridas e careciam de estudar na cidade. Então seu Pedro Ponte vendeu a fazendinha.

- Besteira! Mudar pra cidade, praquê?

Encolerizado, o Avô, pai do "seu" Pedro Ponte, discordava da venda daquelas terras amadas, que eram todo o seu horizonte. Com 92 anos, amolando o machado, pronto para enfrentar uma pilha de lenha, o Avô, tirava o cigarrão de palha da boca, feito com fumo mineiro dos fortes, excelente para tontear mosquito, tossia, raspava a garganta, e pontificava:

- Besteira! Esse povo da cidade num tem mais o que inventar! Mudar daqui, praquê?

- Pai, - explicava pacientemente o Pedro Ponte - os meninos mais velhos precisam de escola! E os pequititos tão tudo mirradinhos! Diz a moça do Serviço Social que é desnutrição e...

O Avô raspou de novo a garganta, sinal de cólera, e repetiu a cantilena:

- Besteira! Esse povo da cidade num tem mais o que inventar!

Deslumbrado, um dos netinhos via o gogó do velho descer e subir no pescoço enrugado, parecendo que ia engolir um pedaço do cigarrão. O Avô deu uma esticada no gogó, cuspiu uma pelota de catarro uns três metros de distância, e sentenciou:

- No meu tempo a meninada era toda magricela assim, raramente se via um mais parrudo, um mais gordinho. Com oito anos eu levantava de madrugada, tirava leite, garrava no pesado! Do mesmo modo os meus irmãos, os meus primos e os meus tios! A gente enfrentava uma derrubada de mata, tudo na foice e no machado! Quando nossa turma beirava um pé de peroba-rosa, um bálsamo, com aquela disposição, era de tirar pica-pau do toco!

- É vovô, mas a professora contou que a nossa alimentação tem déficit de proteínas!

Atalhou uma netinha estudada, já pra mais de ano e meio de banco de escola, sabendo que, se deixasse, o avô ficaria horas naquela lengalenga, contando causos que todos sabiam. Esta netinha era uma das poucas que o Avô respeitava. Ele a pôs no colo e carinhosamente contemporizou:

- Será devera, Cabritinha do Vovô? Num sei não, nunca cumi esta tal de proteína e já enterrei muito caboclo que deve de ter comido! Mas vamos deixar pra lá, cabritinha do vovô, se a professora disse, deve de ser verdade.

E assim foi que a voz solitária do Avô não foi ouvida e venderam as terrinhas. Não foi uma venda feita de sopapo. Houve discussão, sim, porém as mudanças que o progresso trouxe, entrando na roça como uma grande boiada destruidora e impaciente, ou um trator de esteira, levando de roldão séculos de costumes imutáveis, derrubou naquela gente despreparada e inocente, a convicção em seus valores. Os mais jovens, que trocavam a botina pelo tênis, ouviam que tudo o que seus pais faziam era atrasado ou fruto da preguiça. Eram métodos improdutivos. E se envergonharam do antigo sistema de criar seus animais à solta. Aprenderam que as galinhas caipiras botavam pouco, alguma coisa em torno de cento e cinqüenta ovos por ano, ao passo que as de raça pura, importadas, botavam pra mais de trezentos. E um frango caipira levava uns cinco meses pra chegar no ponto, enquanto um de granja, era coisa de pouco mais de um mês. Bastava fornecer ração, comprada na cidade e aplicar vacinas de tempo em tempo. Também foi demonizado o porco caipira: produzia excesso de banha e isto fazia mal, ensinava uma nutricionista.

- Bobagem! - resmungara a avó, 87 anos nos robustos costados, fazendo farinha de mandioca.- fui criada na banha!

- É não, vó. - explicava a neta. - banha tem muito colesterol!

O progresso entrou naquelas bandas, pelas mãos do povo do seu Maciel, que, em pouco tempo, comprara os radinhos, a TV, largara as botinas e desfilara de tênis nas veredas da roça. Logo surgiram os imitadores, invejosos daquelas modernidades. A família do seu Maciel acabou com as galinhas caipiras, briguentas, coloridas, cantoras, que ornamentavam o terreiro, e com os cinco galos, que, altaneiros, dominavam o quintal, e, de madrugada, cantavam ora um, ora outro, despertando aqui, despertando lá, o peão para trabalhar. Sinfonia roceira que começava nas baixadas e subia pelas beiradas do córrego, até chegar lá em cima nos campos.

A cantoria daqueles galos... Os galos viraram coxinhas. Fizeram um barracão, cobriram o piso com palha de arroz e lotaram com um pintaiada branca. Era um tal de comprar ração na cidade..., e ficaram livres das galinhas caipiras, o quintal e as minhocas e os escorpiões...

Tinha aquele galo, lá da Fazenda Paineirinha, quatro horas da madrugada ele acordava rouco e seu canto levantava da cama aqueles que precisavam tirar leite e pegar no batente mais cedo, como era o caso do vaqueiro Osmarzinho, que tirava leite de cento e oitenta vacas, a metade de peito duro. Esta vacada era cria do coronel Zeca dos Novais, um criador de pé-duro que recebia a tiros qualquer que fosse aquele que elogiasse vacas holandesas! Dizia ele:

"Só são boas na cocheira e dão muito carrapato!"

Tinha aquele galo, lá do Mané da Viola, galo índio, mais pra miúdo do que pra gigante, cantava nas sete notas, canto bonito que se encompridava pelas veredas, espalhava-se pelos campos de capim meloso, capim bom pras vacas de leite, que dava ao queijo um sabor típico; o canto do galo índio ondulava mata abaixo até à beira do ribeirão, acordando a comadre Branca, que de branca não tinha nada! E lá ia ela, levantando ainda antes do dia nascer, fazendo café ralo com bolo de mandioca, pro meninos. Quatro meninos, sendo que o mais novo já passara dos quatorze anos, e o mais velho, solteiro como todos os outros, marcara trinta na folhinha dos anos. Tudo solteiro, os quatro. Solteiros e pouco animados a pegar na enxada! A velha dona Branca é que havia de empurrar seus meninos pro serviço. Ela era garradeira, agradada de trabalhar muito. Devia ser por isto que seus meninos tinham mais o gosto de ficar na sombra do rancho, cavucando terra com o dedão do pé, pensando na vida, sem pressa de garrar no pesado. O mais que faziam era ir vender na cidade o bom polvilho que dona Branca fazia. Polvilho renomado. Pena que os meninos gastavam na pinga boa porcentagem do arrecadado com a venda.

Mas o galo índio acordava muito mais gente que a dona Branca lá do rancho da beira do rio. Acordava gente trabalhadeira e gente preguiçosa, sem discriminação. Mas o galo índio só cantava depois do galo do Zico Raimundo, o galo velho de canto grave, compassado. Diziam, nos galinheiros, que ele já havia desencaminhado quase todas as galinhas da região e as franguinhas também. O galo do Zico Raimundo era peitudo, colorido, a crista penteada de lado, meio assim daquele tipo duns velhos que num aceitam envelhecer, mas conservava a crista vermelha, um olhar rápido, que enxergava qualquer galinho atrevido que teimasse em aparecer. Diziam que a galinhada, na hora em que o Galo Velho chegava, já ia agachando... Contavam até que umas patas..., umas angolas... Já pra mais de oito anos estava o galo do Zico Raimundo traçando todas...

Coitado da Amarildo, o filho do Pedro Ponte! Uma vez comprou um galo duns ciganos, um galo cantor. Não era muito grande, mas bonito: duas penas coloridas no arco do rabo. Porém, o danado estava com as gonorréia de galo, lá naqueles lugares que eles usam pra fazer as coisas. Morreu o galo, um mês depois, deixando um punhado de galinhas enxertadas da doença.

A gente poderia acabar logo com esta história de galos, todavia, mais adiante, quando a fazendinha do povo do Pedro Ponte foi vendida, teríamos de voltar ao causo, então já se conta logo duma vez!

Um tal de Edmundo comprou a fazendinha e se mudou com a família pra lá. Seu filho caçula, o Gerson, criava um frango e mais duas frangotas, e não eram, os três, crias do mesmo ninho nem farinha do mesmo saco. Eram crias que o menino reunira: a pintinha sura e carijó, mais a branquela, foram salvadas lá do cerrado, duma galinha atrevida e geniosa que uma raposa levou. O caçulinha salvou as duas e criou. A franga sura ostentava não ter rabo como se fosse uma medalha. Era uma franga carijó, vaidosa, ficava desfilando lá por cima, nas beiradas dos currais, como uma princesa. Orgulhosa, não misturava com a ralé. A irmã dela, branca e inocente, no primeiro cocoricó que escutasse, ou no primeiro grão de milho que jogassem, vinha... e aí os frangotes subiam nela... Quem olhasse, nem precisava olhar direito, veria na hora, que as duas não eram filhas do mesmo pai.

Quando a família de Edmundo mudou-se para o sítio levaram o frango e mais as duas frangotas. Ah, esqueci de contar o nome do frango! O filho de Edmundo, o caçula, vira um filme, ou uma série na TV, e adorou o herói! Então pôs no frangote o nome de Conan. Ah! Eu esqueci de contar! O menino tinha um outro frango, cumprido e perneta que ele arrumou num sei aonde e sempre andava junto do Conan, mas esqueceu de batizar: todo mundo o chamava de Frango.

Ah! Preciso terminar de contar a história do galo Conan e o seu amigo Frango, mais a Sura e a Branquela! Num é que no dia em que desceram a mudança do caminhão, a frangota sura e o Frango, o amigo do Conan, desceram, tontos da viagem, é verdade, mas querendo briga? Foi um custo o Conan e mais a Branquela convencê-los a ficarem quietos! Conan conhecia aquele provérbio que ensinava que no terreiro do vizinho, galo canta de galinha. Enfim, novatos no terreiro, decidiram ficar escanteados, o mais discreto possível.

De tarde anoiteceu e eles empoleiraram no curral, ali por perto mesmo. De madrugada, o galo Conan soltou seu canto. Começava rouco, entrecortado, quase medonho, ia crescendo, alcançando uns agudos e se encompridava... Bonito e gostoso aquele canto. Marcante e inconfundível, anunciando que chegara a madrugada e também um novo rei no terreiro.

O canto do Conan deve ter incomodado muitos rivais: o galo velho de canto grave, lá da fazenda do Zico Raimundo, O galo rouco, lá da Fazenda Paineirinha, o galo índio, do Mané da Viola...

Pela manhã, este grupo novato ficou dos lados de cima do curral, beirando a estrada, sem medo, mas sem mexer com ninguém. À tarde, a galinhada antiga esparramou-se pelo quintal, vigiada por dois ou três galos conhecedores do terreno. Uma galinha das mais velhotas, da turma das fuxiqueiras, andou beirando os quatro estranhos, que se mantiveram em olímpica distância. A fuxiqueira imaginou uma maneira de contar pra sua turma, alguma improvável ofensa e um dos galos mais novos foi tomar satisfações. O Conan procurou evitar confusão, mas sem fugir e sem abaixar a crista. Uma boa dúzia de galinhas do terreiro o admiraram ao constatar que havia chegado sangue novo no pedaço e se lembraram que, de madrugada, ele cantara bonito e elas até arrepiaram as penas. Uns frangotes mais rebeldes que formavam uma turma arredia, e andavam se acostumando a ficar pra lá do chiqueiro, tremelicaram as penas, comentaram animados:

- Vai ter briga!

O tal galo vermelhão, meio legorne, a crista imponente como um elmo, rodeado de seu harém, chegou perto do Conan, tendo como favas contadas que o recém-chegado haveria de abaixar a crista. Todo empavonado, ou melhor, todo engalanado, cacarejou uns desaforos, levantou a perna mostrando a espora afiada, esticou e encurtou o pescoço, arrepiando as penas. Balançou a majestosa cabeça, fechando os olhinhos e virou-se para as suas galinhas, como afirmando:

- Este ai, já, já, vai cantar noutro terreiro.

Para seu espanto, ao abrir os olhos, Conan permanecia ali, indiferente, ciscando o chão. O outro se enfureceu e atacou com a espora. Conan desviou-se com uma ginga de corpo. Um novo assalto, desta vez com o bico. Conan com um golpe da asa aproveitou o embalo do adversário e dobrou o impulso, o presunçoso foi estatelar-se bem no meio de suas favoritas.

"Porra, será que este assunto vai ser mais complicado do que eu pensava?"

Assim pensou o galo, limpando as penas empoeiradas. E voltou ao ataque. Ganhando velocidade na corrida, esticou as duas pernas tentando cravar os esporões na base do pescoço de Conan. Este agachou, os esporões passaram no vazio. O galo mudou de tática, preferindo estudar melhor o rival. Arrepiou as penas do pescoço, abriu as asas, rodeando Conan, que só então resolveu prestar mais atenção na briga e encarou o outro, olho no olho, os pescoços dos dois subindo e descendo, esticando e encolhendo ao mesmo compasso. O Vermelho (as frangas, mais sabedoras dessas línguas novas, o chamavam de "Red") resolveu atacar e bicou mirando o papo. Não atingiu o alvo, mas em compensação levou uma esporada na asa. Recuou com um salto, desentusiasmado. Se não fosse a platéia, teria deixado o assunto pra lá, afinal sempre cabe mais um, tem galinha pra todos. Mas olhou de banda, por baixo das sobrancelhas e viu o olho reprovador da sua turma. Voltou à briga, era o jeito! Levou mais uma esporada, que cortou do alto da cabeça e desceu rasgando enviesado no pescoço. Aí vieram outros dois galos em socorro, atacando de bico. Conan saltou por cima, os dois passaram no liso. Da maneira que passaram, voltaram. Conan saltou de banda, mas desta vez esticou a perna para trás, dando uma parada, a espora triscou nas costas dum, jorrando sangue. Aí a coisa ficou preta, a galinhada entrou na briga, aquela zoeira, poeira, penas, sangue e gritaria. A Sura carijó, a Branquela e o Frango, amigo do Conan, deram um tempo para ele esquentar e depois entraram na briga. Foi só pena que voava e o que se viu foi galinha correndo pelo quintal afora, chorando, cocoricando, esgoelando e galos estropiados, pulando numa perna só.

O resto do dia, Conan a Sura, a Branquela e o frango, ficaram na parte acima do curral, andando para lá e pra cá e não foram mais incomodados. Nunca mais puxaram briga com eles, que se tornaram os donos do terreiro.

Onivaldo Paiva – [email protected]


Autor: Onivaldo Paiva


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