Sobre Soldados e Pessoas



ESSA é mais uma guerra. Um dos tantos conflitos que abalam as estruturas sociais e resvalam sobre a própria compreensão da natureza humana. No momento da produção destas linhas, o conflito de maior evidência, a guerra mais presente nos noticiários, é a que tem lugar na Faixa de Gaza, envolvendo israelenses e palestinos. Muitos aspectos podem ser discutidos em relação a essa guerra que é, dentre tantos, mais uma das expressões de conflitos históricos que envolvem os dois grupos, os judeus, os israelenses, melhor dizendo, e os palestinos. Afinal, nem todo judeu é israelense.

Mas o início do ano de 2009 também trouxe, particularmente para minha família, mais um drama. Não, não foram parentes que perderam suas vidas em estradas ou comemorações desregradas de Natal ou fim de ano. Mas foi uma perda de vida, sim. De um, talvez, parente, ainda que não humano. Foi sacrificada nossa cachorra Meg (seu nome, na verdade, é Meg Ryan, em homenagem à atriz hollywoodiana). Ela estava com câncer na boca em estado avançadíssimo e já tinha sido submetida a duas cirurgias – na última, teve de extrair dentes e fazer até uma raspagem do osso. Mas o câncer voltou, com todas as mazelas que traz consigo. E a Meg já estava com mais de doze anos. E já estava com cegueira bem acentuada. E estava com o olfato afetado. Seus olhos, às vezes, inchavam, além de lacrimejar constantemente. Mas era a Meg; um cachorro, sim – cocker – mas, sobretudo, uma vida. Ivete, a “mãe”, ficou desconsolada. Todos ficamos. Não vou forçar a barra com comparações humanas na família: mas tive um irmão assassinado; meu pai faleceu há menos de um ano... Pretendo que a comparação, aqui, se faça a partir da vida animal em toda a sua extensão. Vida animal da qual o animal racional – o ser humano – participa.

Por que essa referência? Por uma razão simples: qual o produto mais certo de uma guerra? Acertou quem respondeu “a perda de vidas”. As causas pelas quais as guerras são deflagradas nem sempre são atingidas; as vidas, contudo, já foram perdidas. Quem duvida basta pensar no Afeganistão e no Iraque de Bush. O exército de Bush venceu? Não creio. Mas vidas foram e continuam sendo perdidas. Em relação a Israel, o que falar da guerra contra o Líbano, há cerca de um ano? E que se pode esperar da guerra de agora? Vai resolver o problema do Oriente Médio ou, em menor escala, da Faixa de Gaza? Sem pessimismos; porém, certamente, não vai resolver grande coisa: matam-se membros do Hammas, porém, as causas geradoras do ódio que mina aquela região só vai receber mais combustível.

Na série de TV Família Soprano, que retrata a vida de mafiosos, Tony, o personagem principal, em determinada ocasião, ao ser interpelado sobre sua vida e seus crimes, responde, sem ressentimentos, que não tem medo de ser condenado ao inferno por mortes que tenha cometido. Em seu raciocínio, os mafiosos são como soldados, e soldados não matam pessoas: soldados matam outros soldados.

Deixando de lado toda a operação intelectual (e emocional) à qual é necessário recorrer para se ficar em paz com sua consciência, podemos dizer que foi essa a diferença que observei entre as imagens das guerras e as imagens de Ivete ao lado de Meg: no primeiro caso, não eram pessoas que estavam sendo mortas – eram soldados; no segundo caso, não era um cachorro que estava morto – era uma vida que fora extinta. Uma diferença abissal. E se é preciso recorrer a livros religiosos, a Bíblia traz um Salmo em que se destaca a seguinte passagem: “Senhor, que é o homem para que dele te lembres? Contudo, pouco abaixo de Deus o fizeste...” (Salmo 8) Saramago publicou um artigo recente em que fala que todo esse conflito israelo-palestino encontra seu fundamento em um Deus rancoroso, em cujo nome são perpetradas as piores atrocidades. Diante do que temos visto, torna-se difícil discutir o eminente escritor. Pois bem, há pessoas, inclusive soldados que comandam soldados, que afirmam que, na guerra, aquele que mata também morre: deixa um pouco de sua vida, muito de sua humanidade, aquele que tirou a vida – direta ou indiretamente – de alguém. Não poderia ser diferente. Afinal, trata-se de um ser vivo, de um semelhante.

Todavia, com as armas modernas, muito do escrúpulo, muito do peso da consciência já não tem mais vez: afinal, quem lança uma bomba, quem lança um míssil, ou mesmo quem dispara um tiro de fuzil à distância, não vê o rosto de sua vítima, o que bloqueia muito do remorso.

A Meg era um cão; e, mesmo assim, ocupava um lugar na vida das pessoas, fez parte de projetos de vida, trouxe alegrias, preocupações... E existem milhares de Megs pelo mundo. Daí o sucesso de Marley, nos livros e nos cinemas.

Aqueles que tombam nos campos de batalha também ocupavam um lugar na vida de outras pessoas. Além disso, eram pessoas: tinham sonhos, talvez famílias... Com a mudança da estrutura das guerras (armas, estratégias...), o papel dos comandantes-em-chefe também se alterou: antes, o comandante dos exércitos chegava ao posto por sua bravura revelada em inúmeras vitórias conquistadas nos campos de batalha. Hoje, muitos dos que determinam as guerras sequer integraram as forças militares. E, durante os conflitos, jamais sairão dos escritórios. O argumento, claro, é de que devem permanecer incólumes para garantir a implantação de seus planos. É uma boa desculpa – e que se estende a seus filhos, igualmente.

A Meg era um cachorro, mas era, sobretudo, uma vida. Sofremos por ela; a Ivete, sobretudo, deixou que parte de sua vida fosse com ela. Ivete morreu um pouco. Ela não é um soldado, ela é humana. A Meg foi alvo do sentimento e da consideração de alguns humanos. Por outro lado: os soldados são desumanizados, tornando-se incapazes de sofrer pelos humanos? Se assim o for, quanta culpa têm os seus comandantes.

Como dizia Vandré: os soldados, de antemão, já estão condenados a matar e a morrer pela pátria. E a viver sem razão. Muitas vezes, menos considerados do que outros animais chamados de irracionais. Descanse(m) em paz!
Autor: Leonides da Silva Justiniano


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