A Identidade na Pretensa Construção da Aldeia Global



A identidade na pretensa construção da Aldeia Global

Vanessa Steigleder Neubauer[1]

Pensando-se na atualidade do universo contemporâneo de valorização exacerbada das técnicas e distanciamento da ontologia, historicidade e finitude do ser, é importante refletir sobre as questões que conduzem este processo de homogeneização de maquinarias na busca de um capitalismo desenfreado.

A partir de tais inquietações, faz-se necessário retomar as questões pertinentes à historicidade e linguagem. Portanto, este texto propõe-se a refletir sobre a identidade e a confusão da falta de pertencimento em que nos encontramos e ao mesmo tempo a retomar a importância da tradição na construção de uma possível identidade da Aldeia Global.

Para se falar de aldeia global é preciso explicitar o que é a globalização, para Santos é um processo de internacionalização do mundo capitalista, considerada perversa e tirana pela sua competitividade, exigência de velocidade e homogeneização de injustiças sociais (2007 p 24).

A questão não é tirar o valor da ciência e da técnica, suas grandes conquistas e avanços, mas sim rever pontos que ficaram esquecidos e que deixaram lacunas, para se pensar na universalidade de um contexto complexo que é o humano em seu sentido ontológico e empírico.

Portanto, pensar-se na construção da identidade pela interação, apesar das turbulências enfrentadas pelas fragmentações do mundo moderno, são pontos fundamentais para se pensar na sociedade, sua construção e reconstrução.

Segundo HALL, as velhas identidades que por tanto tempo estabilizaram o mundo social estão em declínio, novas identidades estão surgindo, deixando o indivíduo moderno fragmentado (2006, p.7). Esta desestabilização descentralizada pode ter ligação com a grande quantidade de informação que o mundo globalizado tem disponibilizado.

Ainda de acordo com o autor, a confusão a que nos referimos na introdução deste texto é a "crise da identidade" que envolve um processo amplo de mudança, deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.

SANTOS (2007, p.16) considera que essa pretensa aceleração das ciências é a verdadeira responsável pela criação da "Torre de Babel" em que vive nossa era globalizada, sendo necessário buscar-se um afastamento para compreensão da complexidade em que nos encontramos.

Mas, para isso, a busca deve iniciar-se na base da torre, em nossa construção de identidade, nos aspectos culturais e historizados de uma tradição, da relação vinculante entre os espaços e tempos, construídos na presença-ação, ou seja, na intencionalidade do momento e do tempo presentificado, assim pode-se tentar permear os cernes da epistemologia desse mal estar da atualidade.

O mundo globalizado é uma pretensão que estimula a repetição e o consumo, uma máquina que sustenta as ações preponderantes que alimentam um sistema dominante, por muitas vezes excluindo os diferentes. No entanto, tem facilitado a vida das pessoas pelos avanços da tecnologia e das pesquisas, bem como pelo acesso à informação que anteriormente poucos detinham e hoje já não é somente de uma classe minoritária.

A questão central do problema está em se pensar que com a globalização as identidades modernas estão sendo descentradas, deslocadas e fragmentadas, o indivíduo está perdido, não tem mais a certeza de um pertencimento, pela velocidade do mundo em decorrência de competitividade, capitalismo, crise de valores morais e éticos...

O próprio conceito de identidade que estamos lidando, conforme HALL (2006, p.8), é demasiadamente complexo, pouco desenvolvido e compreendido nas ciências sociais contemporâneas.

Mas, é interessante lembrar-se o que o mesmo autor aponta sobre a noção de sujeito sociológico e sua construção de identidade, que se forma pela interação entre o eu e as sociedades. O sujeito ainda tem um "eu real", mas este é formado e modificado, num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que os mundos oferecem (2006, p.11).

Sendo que a condição constitutiva do homem é a linguagem comunicada e compartilhada e é nela que se estabelecem as relações com os outros e com o mundo, tudo transcorre em um caráter de compreensão e interpretação. Pode-se entender que o homem não só está na história como faz a história. Se acreditamos neste suposto, percebemos a ação presentificada, construindo as tradições que são conjuntos de identidades com apontes em comum.

Com tanta instabilidade circundando a informação e as relações interpessoais, o sujeito que antigamente tinha uma identidade unificada e estável, hoje está se tornando fragmentado, composto não de uma única identidade, mas de várias que às vezes se apresentam até como contraditórias ou não resolvidas.

HALL reforça que, antes as identidades compunham paisagens sociais que asseguravam nossa conformidade subjetiva e hoje, com as necessidades objetivas da cultura, isso está entrando em colapso, resultado de mudanças estruturais e institucionais (2006, p.12), pois o próprio processo em que projetamos nossas identidades culturais tornou-se provisório, variável e problemático.

Quando se pensa nessa situação provisória de pertencimento, funda-se a fábula de uma pretensa Aldeia Global, unificada pela homogeneidade que, acreditamos, torna-se inviável em alguns aspectos como a diversidade na qual se organiza a pluralidade necessária para o reconhecimento de uma verdade não absoluta, mas de uma pretensão de verdade.

Para SANTOS, aldeia global supõe que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas, mas isso é um mito do encurtamento das distâncias e de espaços contraídos, é como se o mundo estivesse ao alcance da mão de todos (2007, p. 18).

No entanto, as diferenças são locais e profundas, a busca da uniformidade é algo avassalador e de certo modo pretensioso e está a serviço do consumismo, tornando-se perverso, pois se pode perder a qualidade de vida e autonomia das diferenças culturais. Grandes males foram feitos à humanidade pensando-se na homogeneidade, como os ideais do nazismo...

Pode-se pensar em uma globalização mais humana, na qual se colocam os conhecimentos técnicos a serviço da sociedade e da política, e estas colocações são tanto do plano do espírito como do labor. Mas no que diz respeito às diferenças culturais, é importante a diversidade.

O plano empírico nos faz perceber a enorme mistura de povos, raças, culturas, gosto em todos os espaços, trata-se da sociodiversidade, que historicamente é bem mais significativa que a própria biodiversidade. Mas é nas ações que as relações acontecem, colocando em prática o pensar do espírito, a conexão052 deve manter-se presente.

Assim, a identidade do indivíduo organiza-se conforme seu pertencimento, com relação aos aspectos culturais étnicos, raciais, lingüísticos, religiosos, entre outros e com o passar do tempo vai se solidificando e se construindo como tradição (Hall, 2006, p.8).

Hoje, no século XXI, a mudança das sociedades modernas está fragmentando as paisagens culturais, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado nos ofereciam sólidas localizações como indivíduos sociais e, por conseqüência, estas modificações estão também modificando nossas identidades pessoais, deixando-nos confusos com o novo (Hall, 2006, p.9).

Hall aponta uma possibilidade de três concepções de identidades, construídas ao longo da história, como o sujeito do Iluminismo, o sociológico e o pós-moderno. O primeiro estava centrado pela razão, consciência, ação, que emergia do interior do sujeito, desde que nascia o centro era o eu, a identidade de uma pessoa (Hall, 2006, p.11).

Já a noção de sujeito sociológico que constitui a identidade nas interações com o meio, ainda segundo o autor, refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que o sujeito interior não era autônomo, mas dependia dos outros, que mediavam seus valores, sentidos, símbolos, cultura do mundo no qual vivia.

Esta concepção sociológica de sujeito preenche as questões que dizem respeito ao espaço interior e exterior, assim mundo pessoal e público. E mais, somos nós que projetamos "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que prendemos seus valores e significados, internalizando-os e construindo a nossa identidade pessoal (HALL, 2006, p.11,12).

O que está se percebendo neste novo mundo é que os indivíduos anteriormente tinham bem sólidos seus valores, crenças, estilos de vida e, hoje, o que predomina é a fragmentação por várias identidades. No entanto, não é como se a tradição estivesse se reconstruindo com uma nova cara, mas sim há falta de identidade essencial ou permanente, o que se percebe é que a identidade torna-se uma "celebração móvel" (Hall, 2006, p 13).

O sujeito pós-moderno forma e transforma continuamente a identidade, conforme as suas experiências com o mundo e com o que lhe interpela, definindo-se historicamente e não biologicamente, apenas (Hall, 2006, p13).

A questão com a experiência de mundo do que vivemos é que a identidade vai se organizando, no entanto a variedade do mundo moderno faz com que tudo seja muito rápido e transitório, música, moda, estilos, tudo que circula no "ser e estar no mundo". No entanto, a diferença possibilita que se mantenham trocas nas relações circundantes, que ocorrem sempre parcialmente, não havendo um abandono total das identidades anteriores, apenas uma reconstrução.

Portanto, o mundo moderno é o ápice da fragmentação, mas o que está em jogo é a pluralização de identidades e o perigo de se perder as tradições antigas e o pertencimento que se convergia com outros pertencimentos, na diversidade, fazendo-nos reforçar os valores morais e éticos.

A globalização hoje, mesmo com seus pontos positivos de informação e alta tecnologia, impõe-nos o fim das culturas que não se adaptam aos novos sistemas, no entanto, temos que reconhecer que estes novos sistemas nos colocam muitas incertezas e desajustes, anteriormente bem alicerçados nas tradições que norteavam as ações.

Agora com as tradições se dissolvendo, a expectativa é de se construir novas identidades, fortalecidas com essa nova era globalizada, mas sem deixar de reconhecer a importância das identidades e, conseqüentemente, tradições anteriores.

Assim, a cultura popular, fazendo uso das técnicas também a seu favor, possibilita a emersão de um novo discurso, de uma nova metanarrativa, podendo contar com a universalidade empírica e teórica. Para SANTOS (2007, p. 21) a universalidade deixa de ser uma elaboração abstrata da mente dos filósofos e, sim, emerge da experiência ordinária de cada homem.

Para se tentar entender a globalização, temos dois pontos fundamentais a elucidar: o estado das técnicas e o estado da política, mas ambos caminham juntos em um sistema de combinações que são utilizados em momentos e lugares de uso determinado. A globalização não é só a existência de novas técnicas, mas sim a fusão das técnicas com a política em uma demanda de um mercado global responsável pelas políticas eficazes.

As técnicas se dão como famílias. Nunca, na história do homem, aparece uma técnica isolada, o que se instala são grupos de técnicas, verdadeiros sistemas. (SANTOS, 2007, p. 24)

O sistema técnico representa uma época, assim pode-se pensar na construção da identidade dessa época, desse tempo e espaço determinado, carregado de marcos culturalmente intrínsecos, nas elaborações das técnicas e sua comunicação e no próprio foco de interesse da comunidade política.

Elaborar essas questões complexas de construção de identidades diversificadas, tentando homogeneizá-las, é uma fragmentação absurda de modelamento, ao mesmo tempo que um desrespeito com a tradição.

Se a razão necessita ser comunicativa, a diversidade, a negação se faz necessária para o pretenso crescimento da humanidade, pois o discurso homogeneizado se encerra ali, ao contrário da oposição, que pressupõe a necessidade de reflexão, estabelecendo a dialogicidade de razões intersubjetivadas pela sua condição humana de finitude, historizada por um tempo e um espaço marcados culturalmente pela tradição.

É importante levar-se em consideração a unicidade dos tempos e dos momentos em tempo real e tempo histórico, sendo que o primeiro autoriza a usar o mesmo momento a partir de muitos lugares e todos os lugares a partir de um só, o dele, de forma concatenada e eficaz, abrangendo o conhecimento instantâneo do acontecer do outro. Por exemplo, duas pessoas conversando no MSN, cada uma de um lado do mundo, pessoas que estão em lugares geograficamente distintos, mas que pela tecnologia da era globalizada se encontram em um tempo e local virtual paralelo de troca de informação, de comunicação e que pela troca de experiências informam e desinformam.

Ainda referindo-se ao exemplo acima, podemos pensar o seguinte, uma dessas pessoas é um japonês e a outra um americano, com culturas, vivências, identidades totalmente distintas, mas conectadas por uma tecnologia global. Será que é necessário que todos tenham a mesma experiência, gostos, ações... ou a vida pode ser globalizada em seu potencial de redes para o progresso e não para a homogeneização?

SANTOS chama isso de unicidade do tempo ou convergência dos momentos e diz que só se pode pensar na ideologia de um mundo global se considerarmos o tempo real como patrimônio coletivo da humanidade, mas ainda estamos longe deste patamar, o que não é impossível, argumenta o escritor (2007, p. 28) .

Aldeia global tanto quanto espaço-tempo contraído permitiriam imaginar a realização do sonho de um mundo só, já que, pelas mãos do mercado global, coisas, relações, dinheiros, gostos largamente se difundem por sobre continentes, raças, línguas, religiões, como se as particularidades tecidas ao longo de séculos houvessem sido todas esgarçadas. Tudo seria conduzido e, ao mesmo tempo, homogeneizado pelo mercado global regulador (SANTOS, 2007, p.41).

A idéia da fábula da aldeia global, da intenção de se ter só um mundo regulador de tudo, das línguas, religiões, raças e continentes, é algo exacerbado. Não é por que a informação é facilitada, obtida em acesso instantâneo e disponibilizada pelas técnicas que a diversidade e a complexidade não se façam necessárias.

Para Santos, no fim do século XX, a linguagem ganha autonomia, constituindo sua própria lei (2007, p. 43), pois a idéia de uma aldeia global é um mito, não existe humanização desterritorizada e sim muito bem territorizada por suas interações de culturas e tradições que se constroem na e pela linguagem e se estabelecem por suas metanarrativas, que se apresentam com seus signos e significados, carregados de historicidade e universalidade.

A idéia de mundo unificado, de uma identidade única, nos faz refletir como essa homogeneização poderia robotizar a humanidade e romper as possibilidades de reflexão e autonomia, há que se perguntar o que ocorreria com os sujeitos que não se enquadrassem no ritmo frenético desta globalização mercantilista.

No entanto, isso não significa que as identidades, devido à condição constitutiva do homem de finitude, não devam sofrer alterações, é o "círculo da vida", em que as antigas tradições sofrem adaptações para sobreviver ao mundo moderno, construindo assim uma cultura de universalidade, mas preservando o que é significativo e histórico.

Vejamos uma metáfora: " não é porque o homem não tinha luz elétrica que vivia de lampião, que hoje com as facilidades que temos de luz, que ele vai voltar a usar o lampião" aproveitar, para se reformular (mas um reformular consciente) é um momento positivo de crescimento, também não podemos nos estagnar no tempo, as adaptações são necessárias para que possamos evoluir, por isso as tradições e identidades também se reconstroem com o tempo e o espaço, e as que não passam por essa possibilidade acabam desaparecendo...

O filósofo Heráclito aponta "nunca podemos nos banhar no mesmo rio", as coisas têm movimento e se transformam, claro que a transformação deve passar pelo uso da razão, pois se aceitarmos tudo que nos é imposto perdemos a noção de consciência, aí a globalização é um desastre total.

Por fim, percebe-se a pretensão de uma aldeia global, mas para isso as identidades deveriam estar homogeneizadas e isso, tanto para Santos como Hall, não parece positivo para o respeito à diversidade.

Porém, se a identidade sociocultural for reconstruindo uma tradição nova, com base nas anteriores, pode ser que exista uma pretensa verdade nessa mutação que o mundo pós-moderno está vivendo, a de dissolver a tradição e reconstruí-la, acolhendo o novo sem abandonar o velho, utilizando-se o filtro da razão para permear as questões que realmente são significativas.

Referências Bibliográficas:

Santos, Milton: Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro, Record, 2007

Hall, Stuart: A Identidade cultural na Pós-Modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2006.




Autor: Vanessa Neubauer


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