CREUZA MANHOSA



Levanta, levanta, nega manhosa / Deixa de ser preguiçosa, vai procurar o que fazer

- "'Bora, Creuza. Sete horas. Pedrão do Encantado chamou p'rá ver a Pontiac, o ponto de bicho da rua é dele, tô indo".

A mulata se espreguiça e remexe, a combinação levanta, revela um belo par de coxas e uma nesga da calcinha. Juca saboreia aquele pedaço de mau caminho, vinte anos, passista da Império, caixa do armazém do Abel, na mesma rua do Meyer onde vivem, numa pensão - juntaram os trapos. Ambos ressaqueados das Brahmas da véspera, no ensaio da escola - Guarany, de Silas de Oliveira. Agora, vai !

Ela levanta devagar, desliga o ventilador, calça as chinelas, olha a folhinha na parede: 6/12/53, domingo.

- "Chiii, hoje tem tripa lombeira da portuguesada aí da rua, "sêo" Abel chamou p'rá ajudar. Fez café?"

 

Nega, deixa de fita, prepara minha marmita / Levanta nega, vai se virar

- "'Tá na mesinha, esquenta no fogareiro, tem pão que eu trouxe agora."

- "Vai demorar?" – ela escova os dentes na pia do quarto. A boca carnuda cheira a hortelã. Juca quase fica p'rá dar-lhe uma cafungada.

- "Volto p'rá tripa dos galegos, depois é Maraca. Hoje é Fla-Flu, decisão."

- "Me leva ?"

- "P'ro Maraca?. Desde quando 'cê gosta de futebol? Vai ajudar o patrão, tira um extra."

- "Sou Bangu, nasci lá em 33, alvi-rubro Campeão!Traz grana, Neco vem cobrar a fantasia."

 

Deixei em baixo do rádio uma nota de cinqüenta / Vai à feira, joga no bicho e vê se te agüenta

Juca sai p'rá cruzar a linha do trem e pegar o bonde 77 – Piedade. Vai respondendo ao "bom-dia" dos portugas da rua. O primeiro é o Abel:

- "Ora viva, sêo Juca ! E antão, o Mengo hoje arrebenta?"

"Galego filho da mãe", pensa o mecânico. "De olho na Creuza, promoveu a caixa, agora vai falar no Vasco."

- "Depois do tri de 44, o Mengo não fez nada. Já o Vasco, de lá p'rá cá, levou cinco!" E aponta na parede do armazém as fotos do campeão de 45, 47, 49, 50 e 52.

- "Mas neste ano, ó - neca!", responde Juca, batendo o punho direito na palma esquerda.

- "Vai dar Flu hoje! Não tem Fleitas Solich[2] que segure o Telê!" Mas Juca já vai longe, sabe de cor o ritual lusitano dos domingos – cozido, feijoada...hoje é tripa lombeira, aliás, dobradinha. Cada patrício ajuda de um jeito, são donos de tudo, é irmão na quitanda, primo no botequim, sobrinho no açougue. Lá p'rá meio-dia, mesinhas na calçada, panelões num balcão, muito vinho, rádio ondas-curtas na Voz de Lisboa, e depois, o jogo do dia, sempre na voz do Cozzi. Pedrão às vezes aparece, p'rá mostrar quem manda ali.

Juca cruza a passarela do trem. Cisma com Antonio, o açougueiro jovem, chegou da terrinha há um ano, esguio, belo rosto, todo maneiroso com a Creuza, cara de artista de filme. Lembra de dois que viu no Paratodos – A um passo da eternidade e O Cangaceiro. Se Creuza fosse loura, seria a cara da Débora Kerr. E tem as pernas da Vanja Orico? Assobia Muié Rendêra. O 77 sai do ponto, corre para pegá-lo, vai no estribo, pensando na Pontiac.

Economiza, olha o dia de amanhã / Eu preciso do troco, domingo tem jogo no Maracanã!

O carro aprontou, mas Pedrão não veio à comilança, prometeu pagar depois. E a conta da fantasia, como fica ? Juca vai para o jogo cismado. Creuza de vestido amarelo justo e curto, servido dobradinha, Antonio com camisa do Vasco, de olho no decote. Calor infernal, trem entupido até São Cristóvão, camisa do Mengo suadona. Fila na bilheteria, compra ingresso no cambista. Esquece tudo quando sai da galeriapara a arquibancada. Maracanã lotado, visual incrível: um mar de gente, metade rubro-negra, metade tricolor, nuvem de talco, balões de jornal – os "urubus".

"ADEG informa..." Torcidas vibram, os times saem dos túneis: "Flamengo com Garcia, Marinho e Pavão; Servílio, Dequinha e Jordan; Joel, Rubens, Índio, Benitez e Esquerdinha!" Foguetório, gritaria, mais talco. "Fluminense com Castilho, Píndaro e Pinheiro; Jair, Édson e Bigode; Telê, Orlando, Carlyle, Didi e Quincas!" Cara ou coroa, soa o apito e rola a bola....

 

Flamengo, Flamengo, sua glória é lutar!

Dez da noite. Juca salta no Meyer, cheio de cerveja, ri sozinho, enrolado na bandeira do Mengo. Dois a um! É campeãããõ ! Gols de "Doutor Rubens" e Índio. Garcia fechou o arco, Marinho e Pavão trancaram a pequena área, Servílio cabeceava a lua, Dequinha desbundava nos dribles, Jordan dava aula de bola, Joel e Esquerdinha reinavam nas pontas, Benitez armou para os dois goleadores vazarem a leiteria do Castilho! E vai subindo a rua já escura. Flamengo ganhou, os galegos dormem. Luz no açougue, Antonio arria a porta, acena, ri amarelo, o mecânico responde. Entra no quarto sem fazer barulho. Creuza na cama, só de camiseta vermelha e calcinha preta, saúda:

- "Meeeennnngoooo!"

Ele relaxa. Desconfiou à toa da cabrocha. Vai à mesinha, pega o sal-de-fruta e a aspirina que ela deixou ali. Ao lado do vidro, o recibo da fantasia.

- "Neco veio cobrar ? Cumé que você pagou ?"

-"Ué, com o extra da dobradinha!"

Juca arranca as roupas, lava-se na pia, passa água-de-colônia. Vira-se para Creuza, ela abre os braços, ele mergulha, sente seu cheiro gostoso...e dorme como um anjo!

 

Flamengo, Flamengo, campeão de terra e mar!

Onze horas. A porta do açougue se abre, alguém sai e vai até a Pontiac parada em frente. O motorista salta e abre a porta de trás. A luz interna faz brilhar a pulseira de ouro de Pedrão. Ele olha sorridente o rosto maquiado de Antonio. "Que frango", pensa. O portuguesinho entra no carro, abre o roupão, mostra a fantasia de índia que veste e fala, afetado:

-"Cem pratas p'rá alugar da Creuza. O bofe do Juca nem sonha!"

Pedrão ri, abraça o boy e ordena ao motorista:

- "Toca p'ro baile vermelho e preto no Morro da Viúva!"




Autor: Gil Ferreira


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