MÃES DE UTI NUMA PERSPECTIVA EXISTENCIAL



INTRODUÇÃO

Qualquer um que venha a conhecer a obra de Sartre percebe o modo distinto como trata a ficção e um estudo acadêmico (quando a questão é a profundidade da abordagem) e a opção inequívoca pela existência concreta das pessoas e suas relações.

A reportagem "As mães de UTI" publicada na revista Veja, Ed. 2014, aborda o universo invisível para quem está só de passagem por um hospital – o das mães de UTI. São mulheres que, tendo seus filhos em situação de internação hospitalar, abrem mão de outros aspectos da sua vida para passarem mais tempo com essas crianças. Pessoas que tiveram seus planos interrompidos para se unir a uma série de profissionais no ambiente hospitalar com o objetivo de lutar pela sobrevivência de seus filhos. Mulheres que saem pelas portas dos fundos das maternidades, sem o recém-nascido nos braços. De uma hora pra outra elas são arrancadas de seu cotidiano familiar. Planos são interrompidos. A vida é suspensa pelas ameaças permanentes de morte. Não bastante toda essa situação, ainda convivem com a culpa. Inconscientemente, responsabilizam-se pelo fato de o filho não ter nascido saudável. Com isso, isolam-se do mundo e, em muitos casos, até do marido. Entre as mães de UTI o índice de divórcio é altíssimo. Até bem pouco tempo atrás a presença dessas mães nas UTIs seria inimaginável. Durante os últimos cinco anos muitos hospitais não só acabaram com o limite de tempo para a visita materna como investiram numa infra-estrutura especial para as mães.

Segundo um levantamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, 44% das mães de prematuros hospitalizados sofrem de ansiedade e depressão – uma incidência duas vezes maior do que a registrada na população em geral. Não há dúvida de que a possibilidade de permanecer ao lado do filho, sem hora marcada para ir embora, ajuda a amenizar o sofrimento. Porque também é a única maneira de essas mulheres poderem exercer a sua maternidade.

É importante observar que cada uma dessas e de outras mulheres em situações semelhantes, ainda que em linhas gerais (pelo que apresenta a reportagem) agem uniformemente.

Discutiremos questões que se fazem presentes no momento da escolha, bem como responsabilidades assumidas por essas mulheres em conseqüência dessas escolhas.

A ANGÚSTIA DECORRENTE DA LIBERDADE DE ESCOLHA

A situação de uma mãe que tem seu filho hospitalizado na Unidade de Tratamento Intensivo é deveras desafiadora. Socialmente, é definido que as crianças devem ser entregues aos cuidados maternos, devem ser introduzidas no contexto familiar, no entanto quando essas crianças não nascem saudáveis, ou têm sua saúde comprometida por algum fator, são retiradas deste contexto e devem ser entregues a uma equipe médica.

A partir de diversas pesquisas, provou-se que a presença das mães junto às crianças hospitalizadas é muito importante para a recuperação tornando-as mais tranqüilas à intervenção médica. Mas e quanto às mães: elas devem também ser retiradas do contexto familiar? Do trabalho? De seus planos?

A ausência de parâmetros nessa situação gera uma forte angústia. A mãe é antes de tudo uma mulher, uma pessoa, um indivíduo, e no momento de escolher como agir diante deste impasse há uma mescla confusa de expectativas frustradas e de liberdade individual comprometida por uma moral social.

O indivíduo se angustia porque se vê na situação de escolher sua vida, seu destino, sem buscar orientação ou apóio em ninguém. Sente-se desamparado. Livre sendo o projeto que fizer para si, responsável por seu próprio destino, já não há mais desculpas para ele. (PENHA, 2001, p.49)

O existencialismo tem a subjetividade como ponto de partida, faz prevalecer a condição humana de sujeito. Proclama a angústia humana em face da inexistência de parâmetros que o legislem, homem condenado a ser livre. Condenado por que mesmo não tendo escolhido essa condição, deve responsabilizar-se pelas suas escolhas e pelas conseqüências destas. Ainda que o sujeito não tenha controle sobre os fatos que lhe acontecerão, deve legislar à medida que possível de modo a não incorrer numa existência inautêntica.

A inexistência de parâmetros por tanto é uma pré-condição relativa à liberdade humana, enquanto único fundamento do ser. Para o existencialismo, liberdade é a capacidade do homem de escolher sobre sua vida e por ela responsabilizar-se, observando as limitações socialmente convencionadas.

A presença/ possibilidade da morte, neste ponto aparecem como catalisadores de reações em que cada minuto pode ser de extrema importância, deste modo aumenta-se a tensão já existente. Todas as mães envolvidas na reportagem falam em uma redefinição de valores, na qual os filhos foram prioridades enquanto outros sonhos foram pelo menos restritos. Em conseqüência da posição tomada há um comprometimento da vida social e familiar.

Há também uma forte sensação de culpa expressa por essas mulheres, de uma certa forma, elas atribuem a si mesmas a responsabilidade pelo estado de saúde das crianças, no entanto não fica bem claro se essa atribuição é decorrente de uma falta de cuidados durante o período da gestação ou se elas atribuem tal responsabilidade a si como uma "obra do destino".

"O existencialismo não é de modo algum um ateísmo no sentido de que se esforça por demonstrar que Deus não existe. Ele declara antes: ainda que Deus existisse, em nada alteraria a questão;" (PENHA, 2001 p.49)

Neste segundo caso, a atitude pode ser enxergada no contexto da má-fé, uma vez que se cria a ilusão de um destino pré-determinado e se incorre numa omissão de tomada das decisões ou das conseqüências das mesmas. A Má-Fé – é uma maneira de homem escapar do paradoxo de estar condenado à liberdade, deixando iludir-se pela idéia de que seu destino esta traçado, assim omitindo-se de tomar decisões sobre sua vida.

Entre os temas sartrianos, a conduta de má-fé fascina. O que leva alguém "[...] em seu ser para poder ser de má-fé?" (SARTRE, 2001, p. 101). Como é mentir para o próprio eu? Uma "certa arte de formar conceitos contraditórios [...]" certamente existe. (SARTRE, 2001, p. 102, grifo nosso).

Durante a entrevista uma mãe declara que seu bebê contraiu pneumonia ao nascer e ficou numa UTI por onze dias. No relato ela explana a sua angústia por sentir-se dividida em relação à sua filha mais velha que na época tinha apenas dois anos. Com freqüência ia pra casa e voltava pra maternidade onde o bebê estava internado, no anseio de poder suprir às necessidades das duas crianças. Não suportou por muito tempo e decidiu-se por ficar em período integral no hospital. Podemos extrair desse caso a fala de Sartre segundo Penha:

Quando o indivíduo escolhe, atribui um significado ao mundo que ultrapassa o simples ato de uma decisão individual. Ao escolher para si, escolhe também para os outros. (PENHA, 2001, p.47)

A liberdade, ou é refletida a partir do indivíduo que se manifesta particularmente dentro de uma racionalidade ou é captada como a ação deste mesmo indivíduo sob a égide de condições postas para outros essencialmente semelhantes. De uma perspectiva pessoal, temos a tendência de julgar e tomar partido, ora pela mãe que decide abandonar tudo por um objetivo que acredita ser o certo, ora pelos indivíduos que sofrem a conseqüência dessa escolha.O homem vive de perspectiva em perspectiva, sempre contemplando de um ponto, de uma janela, um horizonte que consegue imaginar. O futuro é algo necessário já que define o tipo de horizonte que será visto e é uma construção do presente. Quando se antecipa aos fatos, o homem faz opções, sabe que decide no momento porque é livre para tal. "[...] o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio: mas livre, porque, lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer." (PENHA, 2001, p.49) Percebe-se nessa mãe a manifestação de uma culpa intensa, culpa esta resultante da responsabilidade que ela sente diante da situação do filho. O fato de a criança nascer com algum problema, remete a essas mães a responsabilidade, pois essa enfermidade pode ser resultado de alguma negligência nos cuidados durante a gestação. E o seu filho agora lançado ao mundo é responsabilidade sua, uma vez que ela teve a liberdade de se permitir engravidar.

"Sartre, enfim, defende a tese de que o existencialismo é um otimismo, uma doutrina da ação. Seu desespero, diz, é ativo, pois obriga o homem a agir." (PENHA, 2001 p.50) No momento de angústia e desespero o homem se vê impulsionado a tomar uma atitude. É o caso dessas mães que precisam escolher, não sabemos se de forma legítima, a ponto de renunciar trabalho, filhos e esposo para se dedicarem a uma situação repleta de incertezas. Esse desespero obriga algumas mães a agirem escrevendo livros sobre o que vivenciam e fundando ONGs para apoiar outras em situações semelhantes.

CONCLUSÃO

A angústia é apreensão reflexiva da liberdade: pela própria escolha apenas o ser é responsável. Em contrapartida, na vida reflexiva, a esta angústia, à forma de lhe fugir, Sartre chama má-fé. Porém, a má-fé de que fala Sartre não se confunde com a má-fé nas relações com os outros, por exemplo, nos negócios, aquela má-fé que se opõe à boa-fé e que reportamos à deslealdade de alguém acerca de uma verdade sobre si mesmo e com o propósito intencional de causar prejuízo a outrem, deslealdade acerca do que se pretende ou do que se espera, ou ainda, acerca do que se sabe, do que se ignora, do que se concebe. Diversamente, a má-fé de que fala Sartre é uma mentira a si que uma consciência se proporciona a si mesma. Mentira em que, porém, nunca chega realmente a crer, e que tem como intuito contornar a angústia. Fazer-se ser o que não se é por inteiro, fazer-se não ser por inteiro o que de algum modo se é - eis a estrutura da má-fé de que fala Sartre. E este é um fenômeno que tem múltiplas formas de expressão. Como podemos constatar nessas mães essa intenção de fugir da angústia através deste comportamento.

A má-fé é, pois, em tese que aqui propomos um instrumento de que dispomos para nos determinarmos escolhas apesar da angústia. É não apenas uma forma de contornar a angústia, mas uma forma de vencê-la. Enganamo-nos, ludibriamo-nos a cada instante quando nos fixamos em certos motivos e reprimimos outros e isto justamente para nos determinarmos uma escolha. A própria idéia de reversibilidade das escolhas sai reforçada com este ponto de vista sobre a má-fé. A escolha, não estamos a falar da simples decisão entre o que tem todos os motivos de um lado e o que não tem nenhum, essa não é realmente escolha de nada, mas continuação de uma escolha que não se deixa determinar sem tensão e que converte todas as outras escolhas em seus corolários racionais, essa escolha de fundo, digamos assim, é determinada sem que o conjunto das crenças e desejos de uma pessoa cheguem para a determinar. Tudo isto está colocado inerentemente à condição humana e mais claramente, no caso das Mães de UTI, quando é constantemente presente o tema da morte.

REFERÊNCIAS

LOPES, Adriana Dias. As mães de UTI. edição 2014-ano 40- n° 25. VEJA. São Paulo: Abril, junho 2007.

PENHA, João da. O que é o existencialismo. (Coleção primeiros passos) São Paulo: Brasiliense, 2001. 84p.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de

Paulo Perdigão. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. 782 p.


Autor: Anália Alves dos Santos


Artigos Relacionados


Eu Jamais Entenderei

Para O Dia Das MÃes - Ser MÃe

Nos Palcos Da Vida

Angústia

A Lei Maria Da Penha Nº 11.340/2006

Refletindo A EducaÇÃo

A Paz Como Realidade