A Incrível Viagem



A incrível viagem

Por

Dimas A. Deleo

Sinopse

Num futuro próximo a descoberta de um planeta localizado num sistema estelar sessenta e três anos luz da Terra, é a motivação necessária ao homem para planejar uma viagem até lá, mas o planejamento minucioso não impede a ocorrência de imprevistos e no meio da viagem, quando a grande velocidade da nave trás aspectos desconhecidos ao homem matando a grande maioria dos tripulantes, um cientista extremamente inteligente, mas por causa de suas idéias pouco convencionais fica desacreditado na Terra, ele faz descobertas inacreditáveis e perturbadoras sobre aspectos que estão relacionados à grande energia cinética da nave. O livro faz referência à idéia de que Deus é onipresente, ou seja, está presente em todo o lugar, aproveitando conceitos de que a matéria e feita de vazios e, portanto Deus é o vazio, o livro joga o mal nos lugares de maior densidade de matéria e a nave da viagem, quando está com grande velocidade, têm grande massa segundo a relatividade geral. O livro ainda faz algumas reflexões sobre as causas da grande massa que toma conta da nave quando esta aumenta a sua velocidade, tentando especula sobre relatividade de Einstein, mas esta tentativa é secundária, a idéia de tomar alguns conceitos da religião e tentá-los explicar através da Física Moderna dá à história uma atração a mais.

No final da viagem a chegada ao novo mundo dá aos sobreviventes algum amparo emocional e entusiasmo para a exploração do sistema estelar, pois descobrem dois planetas, em órbitas parecidas com a Terra e Marte, com seres vivos habitando-os, estes seres possuem características diferentes em cada mundo, mas observa-se a evolução natural agindo, tal qual na Terra.

Índice

Sinopse.......................................................................3

Índice.........................................................................4

1 – A Grande Viagem...................................................5

2 – O Teste..................................................................9

3 – O Retorno à Lua........ ..........................................16

4 – A Partida..............................................................20

5 – O Despertar do Mal..............................................42

6 – O Primeiro Crime.................................................56

7 – A Chegada............................................................91

A grande viagem

Em dois planetas e em duas luas do sistema solar o homem havia chegado, em Marte o homem estava mudando sua atmosfera e o ar, num futuro próximo, poderia ser respirável, embora com pressão equivalente as dos picos mais altos da Terra. Três cidades colônias haviam sido fundadas, todas elas localizadas no subterrâneo. A Lua era a plataforma de lançamento para os lugares mais remotos do sistema solar, nela ficava a maior cidade extraterrestre. Em Marte havia duas cidades localizadas próximas às imensas reservas de água, mas a ligação entre essas cidades era difícil, pois estavam distantes uma da outra e a ligação terrestre fazia necessário o uso de jipes pressurizados e de dias de viagem. Porem tudo iria mudar com a construção de um túnel que estava sendo escavado por máquinas, poucos homens trabalhavam nesta obra, neste túnel seriam instalados trilhos magnéticos para trens de levitação.

Depois de muitos e muitos anos estudando novos propulsores de íons, desde o século vinte, finalmente os cientistas e engenheiros haviam conseguido desenvolver um modelo idealizado há muito tempo e que não foi muito alem da prancheta, a não ser em pequenos protótipos, visto que nas viagens até Marte ou até as luas de Saturno acreditava-se que o propulsor de íons não se dispunha com viabilidade, pois ele imprimia somente um pequeno incremento na velocidade da nave a cada instante e como as distâncias são relativamente pequenas, este propulsor faria a viagem demorar mais do que se fosse usado um propulsor com combustível convencional ou a fissão nuclear.

Derick Marcus era o engenheiro chefe responsável pelos testes do propulsor de íons da nave Velox, ele estava ansioso, pois iria viajar até Marte onde a nave usaria a força gravitacional do planeta para voltar à Terra, segundo estudos estes novos propulsores de íons davam maior impulso à nave, possibilitando viagens mais curtas como até Marte. Mas o verdadeiro motivo dos investimentos nesta nave era a descoberta de uma estrela distante do Sol 63 anos luz e que possuía dois planetas similares à Terra. Uma viagem até este sistema estava sendo planejada.

O engenheiro chefe Derick Marcus estava trabalhando em gravidade lunar desde que a montagem final da Velox havia começado, ele subiu até a Lua pouco depois dos propulsores, que foram as únicas peças vindas prontas da Terra. Queria sentir novamente o peso do seu corpo sob a gravidade terrestre, mas também queria ser um dos tripulantes da Velox e os exames estavam marcados para a próxima semana, ele possuía vantagens sobre os outros, pois já estava na Lua e já havia feito os exames médicos para a viagem de teste pelo sistema solar, porem faltava os exames de fertilidade e os exames genéticos.

Uma viagem tão longa deveria ter outro propósito alem da exploração, ela deveria ser também uma viagem de colonização. Embora fossem levados milhares de embriões da Terra, havia também a necessidade de todos os tripulantes serem potencialmente férteis e não terem parentescos entre si, para não haver problemas de consangüinidades, pois as pessoas que fariam a grande viagem a bordo da Velox deveriam se casar e ter filhos. Os tripulantes deveriam ser colocados em hibernação durante todo o grande percurso, para ainda chegarem jovens ao outro sistema, lá eles deveriam procriar, de modo a povoarem o novo mundo, as mulheres deveriam conceber filhos com seus esposos e também, por inseminação artificial, dar vida aos embriões com variações genéticas diferentes dos casais.

Derick vivia um intrigante dilema, pois ao mesmo tempo em que queria voltar à Terra, queria também ir ao novo sistema descoberto. Embora a grande viagem ainda demorasse mais de dois anos para começar, se ele voltasse à Terra depois dos testes, suas chances de conseguir uma vaga na Velox seriam quase nulas. Ele era o único, dos que estavam trabalhando na nave, que estava disposto a empreender tal viagem, seis tripulantes que estavam sendo selecionados para a viagem teste, seriam também pilotos da grande viagem, estes tripulantes formavam três casais, mas eles ainda não estavam na Lua. Dentro de poucas semanas os pilotos chegariam e a nave estaria pronta para o teste final. Derick Marcus ficava imaginando que aqueles homens e mulheres, quando saíssem da Terra, não a veriam mais e que esta possibilidade poderia ocorrer com ele também, isto lhe angustiava. Mas a decisão já estava tomada, ele haveria de ver este novo mundo, se a comissão que cuidava do sistema de escolha de candidatos não o reprovasse.

Na Terra os seis primeiros tripulantes da Velox já haviam sido escolhidos, agora eles estavam sendo treinados nos simuladores e fazendo os últimos exames médicos. Embora a Velox fosse quase totalmente automática, controlada por um computador de grande capacidade, o melhor já construído pela humanidade, os pilotos precisavam conhecer muito bem toda a nave, alias todos os cem tripulantes teriam que conhecer os princípios básicos de funcionamento da grande nave.

Derick observava, pela janela artificial de seu quarto, numa tela de cristal líquido, aquela pequena luz que se aproximava no meio daquelas outras luzes que cintilavam na escuridão ao fundo, a luz ficava cada vez maior Derick via aquela luz com freqüência, mas agora sabia, era diferente, pois aquela nave trazia a tripulação com quem iria se juntar, em três dias, para sua primeira viagem interplanetária. As janelas artificiais eram monitores de alta definição que, durante a noite captava imagens exteriores do céu e transmitia aos dormitórios de todos os moradores e durante o dia, quando estavam presentes, exibia imagens de lindas paisagens da Terra, assim as pessoas sentiriam menos desconfortos relacionados aos lugares fechados.

Naquele mesmo dia haveria uma cerimônia de confraternização entre as pessoas que fariam a viagem teste da Velox, mais o prefeito da cidade lunar e outros trabalhadores de construção da nave. Como não era permitida a imprensa livre na Lua, de modo que, se ocorresse algum incidente as notícias poderiam ser amenizadas e assim não diminuir o apoio aos investimentos nesta colônia, visto que a cidade da Lua ainda estava longe de ser auto-suficiente, mas as pessoas da Terra estavam sedentas por informação sobre a grande viagem, então o prefeito trouxe consigo um assessor de imprensa, este assessor filmava e entrevistava a todos, é lógico que o prefeito iria fazer uma censura prévia sobre o que poderia ser divulgado ou não. Derick estava conversando com o capitão da nave, senhor Almir Mantovani, um homem com certa polidez, porem, apesar da pouca idade, dispunha de um espírito de liderança bastante notável, como deve ser a personalidade de um comandante de uma nave, quando chega o assessor de imprensa.

— Senhor Almir Mantovani, sou Lázaro Pompeu assessor de impressa da administração lunar, posso lhe fazer algumas perguntas?

— Sim, pois não.

— Gostaria de falar com o senhor também, senhor Derick Marcus.

— Senhor Almir Mantovani, o senhor foi escolhido para ser o chefe destas duas missões, das mais importantes de todos os tempos, há alguma angústia em deixar a Terra e nunca mais vê-la?

— Estaria mentindo se dissesse que não sinto nada a esse respeito, o fato é que me deu um aperto no peito quando vi pela última vez a minha casa, a minha rua, as árvores, os amigos e parentes, os jogos de final de semana e tudo mais, mas o espírito aventureiro falou mais alto, quero ver este planeta e ajudar a fundar uma colônia nele, quem sabe daqui alguns séculos não estaremos fazendo viagens regulares através destes dois mundos.

— Dentre os três casais o senhor e a sua esposa eram os únicos casados antes das inscrições, houve algum desentendimento entre vocês, ou os dois estavam dispostos realizar este empreendimento?

— Minha mulher estava disposta desde o inicio, ela que me incentivou nos momentos em que me senti inseguro.

Outros homens com status de capitão ficariam constrangidos em dizer que sentiram insegurança, então omitiriam este fato, mas para o capitão Almir omitir seus sentimentos não era condizente com a liderança que deveria exercer.

— Senhor Derick Marcus, o senhor é o único inscrito aqui na Lua que pretende fazer a grande viagem, você já está decidido e o fato de ainda não estar casado acha que vai afetar sua classificação?

— Apesar de haver tempo para desistir, eu pretendo sim seguir na grande viagem, sei que se for aceito não verei mais a Terra e este fato, por um lado me deixa triste, mas por outro lado me faz imaginar o que nos espera naquele sistema distante e isso me anima em seguir o que tinha planejado. Quanto a uma parceira, tenho que lembrá-lo que o comitê vai escolher dentre todos os inscritos, vinte por cento não casados, ou seja, cinco homens e quinze mulheres, acredito que se passar nos exames de aptidão terei grande chance de estar nesta missão, afinal de contas eu já estou aqui na Lua.

— O senhor deixou alguém querido lá na Terra?

— Sim, ficaram meus pais, meu irmão e alguns amigos, sentirei saudades deles.

Na realidade Derick deixará também Gisele Mautner, sua namorada, ela havia feito à inscrição no comitê de seleção, mas estava em dúvida se iria ou não continuar com os exames, se ela continuasse e fosse escolhida, não teria como desistir. Derick não fez menção sobre ela porque não queria expo-lá. Gisele era uma excelente estudante, tinha o melhor histórico escolar da sua turma e era eximia esportista. Portanto tinha grandes chances de ser aceita como membro da tripulação.

— Capitão, o senhor vê algum problema em levar mais mulheres do que homens, nesta missão?

— Não há problemas, as quantidades de pessoas e as suas personalidades foram exaustivamente estudadas pelos nossos cientistas, tanto das áreas biológicas como das áreas sociais, o fato de levarmos mais pessoas do sexo feminino e pessoas com alto nível de escolaridade, deixa poucas margens para intrigas e atritos. Os casamentos serão amplamente respeitados, as mulheres que não estiverem comprometidas, estarão gerando os embriões que estaremos levando. Estas atribuições estão sendo divulgadas nas entrevistas realizadas com todos, e é uma condição essencial, aceitar estes quesitos de forma incondicional, para ser membro da missão.

O teste

Eles estavam ansiosos pela viagem que duraria cerca de três meses alem da órbita de Marte. A nave usaria a força gravitacional desse planeta para ajudar na aceleração, quando estivesse indo e assim que passasse por ele, usaria sua força gravitacional para desacelerar. Fazendo uma órbita parecida com as dos cometas, porem seria Marte e não o Sol, o responsável pela força de atração gravitacional e com uma força adicional, que são os propulsores da nave.

Na Lua havia um túnel de cerca de cem metros que levava até a plataforma de lançamento, o capitão Almir e os outros tripulantes que chegaram com ele há três dias, incluindo sua mulher Anastácia Limberman, seguiam na frente, Derick e mais dois engenheiros da missão, que seguiriam na viagem teste com eles estavam mais atrás. Derick observava como ainda tinham dificuldade em andar sob a gravidade lunar, eles ainda não tinham se habituado e cada passo era como se tivessem pisando em ovos, exigindo um esforço extra. Joseph Stone fez uma piada sobre isso.

— Olha só Derick, eles estão andando como patos atravessando o deserto ao meio dia e a pé.

— Você não se lembra, Joseph como tinha dificuldade em ir ao banheiro quando chegou aqui na Lua e pedia para o Mario te ajudar com tal tarefa. — Disse Derick, Mario Ernest Farina era o outro engenheiro que estava do seu lado direito, piadinhas desse gênero eram comuns entre eles, mas Derick ficou imaginando se não seria melhor todos terem uma adaptação maior na Lua, com uma gravidade pequena, antes de seguirem viagem, na qual a única força que sentiriam seria a dos motores fornecendo aceleração à nave.

Joseph era escocês e Mario era italiano, eram ambos engenheiros, o primeiro era engenheiro mecatrônico e o segundo engenheiro de computação, ambos excelentes profissionais, mas eram canastrões, boêmios e mulherengos, por isso não queriam deixar a vida na Terra, sabiam que aquele tempo na Lua ou na viagem até Marte iria passar, assim contestavam toda vez que Derick afirmava que eles acabariam indo na viagem com ele.

Havia no projeto inicial a intenção de manter todos os cem tripulantes da Velox na Lua por cerca de seis meses, mas por causa do alto custo para realizar tal procedimento e por acharem que muitos, quando enclausurados na Lua por tanto tempo, iriam desistir da missão, resolveram que iriam começar a subi-los um mês antes da grande viagem. Derick ficava imaginando no que mais haviam economizado, será que não economizaram em algo que não deviam e, dessa forma não poriam a missão e a vida de todos em perigo? Será que a viagem teste apontaria algum problema com a Velox?

Derick havia entrado naquela nave muitas em muitas vezes, mas daquela vez parecia que estava entrando em um lugar desconhecido, a primeira sala ficava os casulos de hibernação, eles estavam posicionados em pé de costas para os propulsores da nave, de modo que, as pessoas que neles estivessem, sentiriam a influência da força dos propulsores sobre suas costas, havia filas e filas destes casulos. Eles não seriam testados nesta viagem, pois foram testados na Terra e na estação espacial.

Todos estavam nervosos, pois ninguém ali tinha realizado alguma viagem interplanetária antes e a nave era a primeira do gênero a ser testada.

— Senhores queiram todos assumir seus lugares. — Disse o capitão Almir Mantovani.

Então cada um assumiu sua posição diante dos inúmeros monitores e sensores daquela sala de comando. Um silêncio se fez durante alguns segundos e logo começou a contagem regressiva. Faltando dez segundos, ouviu-se o barulho dos imensos foguetes do estágio inicial de lançamento, os motores de íons seriam ativados somente quando fosse queimado todo o combustível do primeiro estágio.

O combustível da nave foi totalmente manufaturado na Lua, usando a energia solar de células solares flexíveis que foram jogadas numa imensa área da superfície lunar, onde o Sol brilha o tempo todo. A água usada para a obtenção do hidrogênio e do oxigênio foi obtida de uma grande reserva de gelo descoberta debaixo de uma das crateras do satélite natural da Terra.

Os nove tripulantes da Velox sentiam o tremor nas suas poltronas, como se tivessem diante de um terremoto, o mesmo acontecia nos lançamentos da Terra, porém naquele lançamento havia um silêncio absoluto do lado de fora da nave, uma grande quantidade de poeira era lançado no espaço, mas sem a influência da atmosfera, as nuvens de poeira tinham configurações distintas das formadas na Terra, havia o espalhamento mais homogêneo das partículas e sem a formação de vórtices.

Logo a Velox estava subindo fazendo o mesmo esforço que um foguete faz quando é lançado da Terra, apesar de a Velox ser muito maior que tais foguetes, a força gravitacional lunar, bem menor que a da Terra, deixou a situação em pé de igualdade.

Derick estava diante de uma dificuldade maior, a gravidade da Lua lhe impunha um esforço, mas na nave não havia mais gravidade, a sala de comando tinha o teto voltado para frente da nave e o chão voltado para os motores, essa disposição impunha alguma força sob os pés das pessoas, porem muito menor do que na Lua, pois o impulso de um motor de íons não é grande e sim de longa duração.

Durante o procedimento de queima do combustível do primeiro estagio todos permaneceram sentados e devidamente amarrados nas suas poltronas, assim que os motores de íons foram acionados todos puderam levantar de suas poltronas e fazerem leituras mais detalhadas dos sensores, embora se houvesse algum problema o computador daria o alarme.

E assim seguiram na primeira viagem com esta magnífica nave, relatórios eram enviados para a Terra e para a Lua a cada intervalo de tempo de uma hora, o computador já estava programado para fazer uma leitura de todos os sensores da nave e enviar para os dois centros de comando. Os técnicos estavam particularmente interessados nas leituras dos motores de íons.

Ao surgir a primeira oportunidade Derick expôs ao capitão e aos outros tripulantes sua preocupação em relação à falta de adaptação dos tripulantes desta missão e da próxima, a baixa gravidade, passar de uma gravidade terrestre a uma quase ausência de gravidade, sem passar por um período de adaptação em gravidade lunar, a seu ver, era um erro. Dentre os nove tripulantes da Velox havia um médico fisiologista e Derick queria ouvir sua opinião.

— O que acha Doutor Julio Dantas Filho, será que as pessoas vão sofrer mais com seus afazeres?

— Não acredito Derick, temos relatado expedições em órbita terrestre desde o final do século vinte, com os pilotos fazendo treinamento em piscinas em terra sem nenhum incidente relacionado à suas atividades, e alem do mais quase todos os tripulantes da Velox estarão hibernando e a Velox possui um grau de automatização muito alto, diminuindo as atividades humanas na grande viagem. Então não precisamos nos preocupar com isso.

— A adaptação prevista no inicio dos planejamentos da missão estava mais ligada ao conforto dos tripulantes do que à funcionalidade da nave. —Disse o capitão Almir.

— Embora o conforto da tripulação possa diminuir o estresse e eventuais atritos entre eles, o aumento dos custos não justificaria este procedimento. —Disse o doutor Julio.

— Mas o conforto torna-se indispensável, não tinha me dado conta deste detalhe, vou estar atento e qualquer incidente ligado ao desconforto de meus comandados, será relatado. — Disse o capitão Almir.

Terminando a reunião o capitão Almir foi até sua sala e detalhou o fato ocorrido em seu diário.

Depois da primeira semana a viagem se tornou tediosa, os tripulantes gastavam seu tempo fazendo atividades físicas e outras mentais, como jogos de xadrez, o capitão Almir gastava algum tempo com seu diário, embora devesse ser repetitivo por demais em suas palavras.

Cada tripulante tinha direito a uma ligação por semana para a Terra, visto que, à medida que eles ficavam mais distantes a espera pela resposta era mais longa e não se podia tomar muito tempo dos sistemas de comunicações com assuntos particulares. Derick fez uma ligação para Gisele Mautner, ele queria saber se ela já havia decidido se iria ou não seguir na grande viagem. Gisele estava com saudades, pois era a primeira vez que Derick ligava para ela da nave, da Lua ele havia ligado momentos antes do lançamento, mas desde então só fez uma ligação e foi para seus pais, havia deixado uma mensagem para ela, mas esta mensagem não aplacou a saudade que ambos sentiam.

— Olá meu amor, como está tudo? — Disse Derick que espera alguns segundos para obter retorno.

— Tirando essa minha ansiedade e esta saudade de você, está tudo bem e você como está ai em cima?

— Você não imagina como é olhar as estrelas daqui, não existe nenhum lugar da Terra que proporciona tal espetáculo. Quanto a viagem está tudo bem, às vezes nos sentimos um tanto quanto entediados, temos que fazer exercícios físicos varias vezes ao dia e colher informações para confrontar com as obtidas pelo computador, mas quando não estamos realizando estas tarefas, ficamos sem o que fazer. E você já resolveu se irá comigo?

— Sim Derick eu irei, já fiz os testes e fui aceita. Minha mãe não queria que eu fosse, ela tem medo de ficar sozinha, já que meu irmão quase não vai visitá-la, mas minhas amigas me deram o maior apoio, vou começar o treinamento na semana que vem. Mas antes preciso saber se você foi aceito.

Depois de alguns segundos Derick responde. — Ainda não sei, estou esperando a resposta para os próximos dias, fiquei protelando ao máximo essa ligação para ver se recebia a resposta e assim te dar a notícia, mas ela não veio. Na próxima semana é certeza que já terei a resposta e vou te ligar.

— Eu não posso começar o treinamento e depois desistir, porque sem você eu não irei, não posso também largar meu trabalho antes desta certeza.

— Não se preocupe minha querida, já fiz reserva para usar o sistema de comunicações assim que receber a mensagem com a resposta e se o sistema de comunicação não estiver sendo usado para alguma tarefa oficial, terei prioridade para falar com você.

— Agora devemos encerrar nossa conversa, pois o tempo reservado para mim já está se esgotando, um grande abraço e um imenso beijo.

— Um imenso beijo para você também Derick, você promete que me liga o quanto antes?

— Mais é claro meu amor. Tchau.

Agora Derick estava preocupado, daria tempo de ele receber a resposta antes de começar o treinamento da Gisele?

Passaram-se alguns dias e a angustia de Derick terminou, ele havia recebido os resultados e sido aceito para a grande viagem. Derick estava inserindo dados na memória do computador e verificando qual o seu nível de aprendizagem, o computador da nave tinha grande capacidade de fazer leituras do ambiente a sua volta, transformar isso em dados e em conhecimentos, ele carregaria consigo todo o conhecimento da Terra em forma de livros digitais, quase todos os livros publicados estavam sendo armazenados no seu banco de memória, haveria também milhões de fotos, filmes e imagens de obras de arte. O sistema de comunicação de Derick lhe informou que havia uma mensagem, ele a leu e teve uma alegria contida.

— Fui aceito Joseph.

— Meus parabéns amigo, fico contente e triste ao mesmo tempo, pois vamos ter uma despedida melancólica daqui alguns meses. — Disse Joseph Stone.

Agora tinha que avisar Gisele, terminou seu trabalho e seguiu pelo corredor apertado até a sala de controle. Uma apreensão se abateu sobre Derick, pois naquele momento o sistema de comunicações estava sendo usado para transmissão de dados.

— Essa transmissão vai demorar Oliver? — Francis Oliver era o engenheiro de comunicações.

— Talvez demore um pouco. —Respondeu Oliver.

— Eu preciso falar com minha namorada para confirmar que fui aceito para a grande viagem e só tenho um dia para fazer isso.

— Parabéns, ela pretende ir conosco na grande viagem? — Pergunta Oliver.

— Nós combinamos que iríamos juntos e ela já tinha sido aceita, somente faltava eu e a resposta chegou agora, eu também fui aceito.

— Acredito que mais algumas horas e terminaremos com tudo aqui, você tem autorização para fazer essa ligação?

— Sim, ainda não usei minha cota desta semana.

— Vamos fazer o seguinte Derick, você pode ir cuidar de suas obrigações e assim que terminarmos aqui eu te aviso.

A aflição de Derick ainda durou varias horas, mas acabou dando tempo e ele conseguiu encontrar Gisele em casa ao anoitecer.

Exceto pelas imagens vistas pelas janelas da nave, para Derick, este foi o fato mais marcante de toda a viagem. A nave já estava na sua terceira semana de viagem e ainda estava acelerando, era impressionante ver aqueles motores impulsionando a Velox, nas próximas semanas o motor iria ser desligado e a nave invertida, de modo que, ela fosse desacelerada, embora a mudança de sentido da nave fosse realizada com a ajuda da gravidade de Júpiter e Marte, a velocidade escalar deveria ser menor do que aquela que eles estavam sentindo no momento, sob pena da Velox sofrer apenas um desvio de poucos ângulos na sua trajetória. Mas estes cálculos eram feitos pelo computador e confirmados pelos engenheiros de navegação da nave e da base terrestre.

O retorno à Lua

No retorno a Lua é claro que a Velox não pousou, ela ficou em órbita lunar, os tripulantes que seguiriam viagem tiveram permissão de descer na Lua, portanto somente ficaram na Velox os engenheiros Joseph Stone e Mario Ernest Farinas.

Derick olhava a Terra com saudades, aquela esfera azul, com manchas brancas e verdes, parecia uma jóia rara e aquela imagem lhe trazia saudades. Ele pensava nas pessoas e naquelas belezas naturais, coisas que ainda não havia visto e que não veria mais, isto lhe causa certa angustia, mas as expectativas do que estava por vir lhe dava consolo e agora ele pensava na sua namorada, que já estava na Lua. Derick estava ansioso, pois fazia quase um ano que não via Gisele, agora ficava dizendo a si mesmo, não vou mais me separar dela, aquelas manobras demoradas pareciam intermináveis e Derick ficava mais e mais impaciente, mas a viagem finalmente havia terminado.

Rapidamente Derick seguiu para o alojamento, a sala do alojamento tinha sido escavada sob a superfície lunar, para hospedar os tripulantes da Velox, era uma nova construção na zona leste da cidade da Lua. Muitos recursos foram investidos neste novo bloco da colônia lunar, mas era apenas uma fração do montante investido na missão toda ou mesmo na cidade da Lua, que pouco a pouco ficava maior, crescendo em blocos para todos os lados e com os investimentos nas missões planetárias, começou a crescer mais na direção da cratera cuja base continha uma imensa reserva de água congelada.

Desde que começou a colonizar outros mundos, o ser humano gastou infindáveis recursos, isto só foi possível porque houve uma sensível depreciação em investimentos bélicos, paises como os Estados Unidos que gastavam centenas de bilhões de dólares por ano passaram, de uma hora para outra, a gastar cifras com dois ou três zeros a menos. Houve também uma união com objetivos comuns, até a agencia espacial da China, que era mais independente em relação às demais, passou a colaborar com as outras agencias. Com o desenvolvimento de países como o Brasil, suas agencias espaciais passaram a ser mais importantes no âmbito mundial e passaram a dar contribuições mais significativas. Havia, portanto, um clima de colaboração e não de disputa como antes, esse clima de disputa funciona para o setor empresarial, mas não para o setor de pesquisa, que têm um desempenho muito maior com um sistema de cooperação.

Com a diminuição de investimentos em armas pelos governos de inúmeros países, houve uma sensível diminuição da miséria no mundo e com recursos extras para a extravagância da conquista do espaço. Regras igualitárias impostas pela Organização mundial do Comércio, regulamentando uma legislação que proibia o trabalho escravo, e proibindo também os subsídios de qualquer espécie, sob pena de que o país que desrespeitasse essas leis sofreriam sansões de varias espécies, essas particularidades fizeram a riqueza se distribuir, de fato, pelo globo, esta nova configuração da riqueza mundial deflagrou o surgimento de inúmeras outras empresas mundiais que estavam dispostas a investir em exploração espacial, o mundo passou a viver um momento de desenvolvimento num circulo virtuoso.

Derick estava diante de sua namorada, nem acreditava, pois muito tempo havia passado desde que viu Gisele pela última vez. Agora queria abraçá-la e beijá-la.

— Meu amor, como você está? — Disse Derick ofegante.

— Eu estou bem e você, como foi a sua viagem, está tudo bem?

— Melhor do que nunca.

— Minha mãe lhe mandou um abraço, fui ver seus pais e eles também te mandaram um abraço.

— Vou telefonar para eles antes de partirmos.

Os dois olharam para o lado, verificaram que estavam sozinhos, algo raro naquela cidade lunar, trancaram o alojamento e fizeram amor num ambiente de baixa gravidade, foi uma experiência terna e bela, que se repetiria por muitas e muitas vezes durante a grande viagem.

Durante muito tempo Derick quis voltar à Terra novamente, sentir o vento batendo no seu rosto, vendo as ondas quebrando na praia, os rostos das pessoas andando pelas ruas, os pássaros assobiando nas árvores, as crianças a brincar nas praças, mas agora não desejava mais, ele só queria ir até este novo mundo com sua amada Gisele, não havia saudades que o faria desistir de seguir viagem. Queria descobrir o quanto Gisele pensava como ele, então esperou ela acordar e lhe perguntou:

— Gisele você não vai se arrepender mesmo de ir nessa viagem, sem volta, comigo?

— Tive muitas dúvidas, mas agora sei que quero ir, vou ser bastante útil com meus conhecimentos em biologia e estarei com meu amor.

— Ótimo, pois assim também não tenho mais dúvida, estava inseguro quanto algumas coisas como não ver mais a Terra, mas a sua atitude afirmativa dispersou toda essa insegurança, sei que você também tem esta insegurança, mas se nos mantivermos unidos estaremos bem. Ninguém foi tão longe assim até agora, seremos os primeiros e se der certo, seremos lembrados como heróis, embora sem podermos usufruir de todo este prestigio.

— Deixa ver se eu entendi Derick, vamos entrar na nave e quase todos os tripulantes serão colocados em hibernação, isso vai prolongar nossas vidas, se a viagem demorará pouco mais de cem anos, que é a previsão, ficaremos dormindo por mais de noventa e nove por cento do tempo, em sono continuo e essa hibernação nos faz envelhecer lentamente, ou seja, viveremos bem mais que cem anos, será que vamos ter as nossas funções biológicas intactas ao final desse longo sono? Eu li os relatórios das pesquisas sobre hibernação que foram realizadas na Terra e aqui no espaço, parece que não há diferenças por causa da gravidade, porem a meu ver, são inconcludentes, embora os resultados foram positivos, as pesquisas foram realizadas em um curto período de tempo e vamos ficar mais de três ou quatro vezes o que o tempo que os voluntários da pesquisa ficaram. Esta é a minha principal preocupação.

— No relatório havia menção de algum dano nos tecidos dos voluntários?

— Nada significativo, fizeram todos os testes e não houve nenhum dano sério ao sistema nervoso ou às células cardíacas, que seriam as mais prejudicadas na hibernação, eles se preocuparam também com os órgãos reprodutores, eles não sofreram lesões perceptíveis. Mas isso foi o que eles publicaram, embora muitos grupos de pesquisas tiveram acesso a todos os níveis e protocolos experimentais, fico muito insegura quanto ao resultado efetivo das experiência.

— As pesquisas realmente não são inteiramente confiantes, mas acho que não precisamos nos preocupar com isso agora meu amor, não acredito que iriam nos mandar numa missão, tão importante quanto essa, para fracassarmos.

— Acho que não mesmo, estão até querendo colocar a hibernação para as viagens até Marte e outros destinos aqui no sistema solar, embora essas viagens sejam bem mais curtas, e as pessoas só ficariam pouco tempo em hibernação.

— A hibernação permite economia de energia e de suplementos. —Conclui Derick.

Dentro de dois meses eles estariam partindo, para colocar todos os cem tripulantes na Velox demoraria vários dias, os primeiros tripulantes que entrassem a bordo já seriam colocados em hibernação, havia poucas salas para todos se acomodarem e eram todas muito pequenas, no único dormitório existiam quatro camas encaixadas em duas paredes opostas, sendo duas de um lado e duas do outro, uma em cima da outra no estilo de beliche, um pequeno corredor dividia o quarto em dois lados quase que idênticos. Todo o combustível necessário à viagem seria levado antes dos tripulantes, alem dos dois engenheiros que estavam na Velox, Joseph Stone e Mario Ernest Farina, juntaram-se a eles mais três engenheiros que faziam as últimas avaliações na Velox e ajudariam no abastecimento tanto dos combustíveis, quanto dos mantimentos. Eles somente retornariam à Lua quando o módulo que fazia as viagens até a nave levasse os últimos tripulantes.

A partida

Nunca, em toda a história do homem, houve uma despedida como essa, todos os noticiários de televisão, os jornais da internet, as pessoas na rua, todos falavam da grande viagem da Velox. Até nos locais onde a discórdia reinava secularmente, como no oriente médio pessoas especulavam o que podia acontecer com aqueles bravos homens e mulheres que não retornariam mais à Terra, esses locais somente conheceram a paz relativa quando veio, de fato, uma maior distribuição de riquezas pelo mundo, ainda assim essa paz era superficial, pois a ferida que cicatrizara a pouco tempo podia ser aberta a qualquer momento, muitos anos de paz deveriam passar até que se pudesse curtir a paz em sua plenitude. Às vezes se ouvia falar de algum assassinato por ódio religioso ou relacionado a conflitos pela posse de terras em assentamentos de pessoas de outras etnias, mas não havia mais atentados à bomba, as indústrias bélicas tinham perdido seu poder econômico, passaram a vender armas de defesa e não mais de ataque, em número reduzido para poucos países que ainda se aventuravam em gastar dinheiro em itens supérfluos como armas, a maior parte da população mundial finalmente entendeu que se seu governo comprasse armas, somente haveria um país que se beneficiaria com esse comércio, e não era o seu e sim aquele país que abrigasse a sede da indústria em questão. Então países cuja população não se interessava por ciências ou por exploração espacial, porque essas populações estavam sendo manipuladas pelos seus lideres e afastadas de uma educação cientifica adequada para, no lugar desta educação ser disseminado ódio religioso e justificar os gastos com armas, essas populações passaram a se interessar por estes assuntos, embora de maneira discreta.

Outros países que tinham uma educação secular mais aberta, mas que antes não acompanhavam os acontecimentos de perto por não terem alcançado o estatuo de desenvolvidos, agora cada acontecimento que ocorria nas estações espaciais ou nas colônias era cuidadosamente analisado por técnicos em todas as mídias e as pessoas acompanhavam atentas a tudo. A partida da Velox virou sensação dos meios de comunicação, bilhões de pessoas em todo o mundo pagavam para ler as notícias mais recentes, comentários sobre a missão eram feitos em cada canto de todas as cidades do mundo, pessoas dizendo que conheciam algum dos tripulantes, contavam que eram amigos e que faziam muitas coisas juntos. Na televisão um físico famoso explicava que mesmo que a Velox voltasse à Terra, depois de uma visita ao planeta de outro sistema solar que se localizava há 63 anos luz do Sol, centenas de anos haveriam ter se passado e os habitantes da Terra seriam outros. Outras discussões como estas eram realizadas a exaustão, especulações sobre o que todos aqueles homens e mulheres iriam encontrar naquele mundo longínquo, haveria vida inteligente, animais perigosos, doenças causadas por microorganismos para a qual o corpo humano não teria resistência? Todas estas questões eram levantadas sob hipóteses, pois não havia como saber, as observações davam como certa a existência de uma atmosfera respirável nos dois planetas, e isso era uma evidência forte da existência de vida. Essas especulações também eram feitas pelos tripulantes da Velox, os coordenadores, médicos e psicólogos da missão diziam a todos que evitassem estes pensamentos, para que não ficassem inseguros, eles eram orientados a ter pensamentos positivos, mas eram treinados a enfrentar os problemas que eventualmente aparecessem.

O computador da Velox tinha um protocolo inserido em seu banco de dados para que a nave voltasse caso o planeta não oferecesse condições de abrigar vida, neste caso os tripulantes seriam reinseridos nos casulos de hibernação e a nave seguiria para a Terra, é claro que as pessoas chegariam de volta à Terra em outra era, pois o combustível restante na nave daria para a Velox acelerar até certa velocidade, bem abaixo da velocidade esperada para a ida. Talvez mais de mil anos houvesse se passado. Mas todos esperavam que em pelo menos um daqueles dois planetas tivesse condições de abrigar vida e o espírito de aventura dentre os tripulantes estava empurrando-os para o desconhecido e todos viviam aquela imensa ansiedade diante do inesperado.

Finalmente o dia da partida tinha chegado, havia uma grande tempestade sobre o Atlântico Norte e os meteorologistas diziam que um furacão estava se formando. Nos monitores que mostravam o ambiente externo da Lua, a Terra estava visível e ficaria assim por mais alguns minutos, Derick observava aquele planeta lindo acima de sua cabeça e se perguntava, haveria beleza igual naquele mundo na qual eles estavam tentando chegar? Chamou Gisele para compartilhar sua contemplação, o alojamento estava cheio naquele momento, muitas pessoas se juntaram a eles e ocuparam os outros dois monitores que passaram a mostrar, por um comando de voz, a mesma imagem, e alguém comentou:

— Se vamos hibernar durante quase toda a viagem, então daqui a pouco estaremos vendo as imagens do novo mundo, vamos ficar quanto tempo, um mês, uma semana acordados durante a viagem? Será que vamos encontrar imagens tão belas e parecidas como estas?

Derick disse. — Se tiver correndo tudo bem, seremos acordados somente na última semana, esse procedimento permite a economia de insumos necessários a nossa sobrevivência nos primeiros dias ou meses naquele novo mundo.

Eles seriam os últimos a serem levados para a Velox, mais duas viagens com os tripulantes e nave estaria pronta para a partida, aquele dia seria longo para os pilotos dos dois módulos que fazia a ligação entre a Lua e a Velox. Um problema num dos módulos fez as entregas atrasarem, no dia da partida implicava que a Velox deveria estar pronta desde o dia anterior e não com vinte pessoas ainda na Lua. Mas estavam confiantes, pois o módulo havia sido consertado e daria tempo para levar todos os tripulantes até a nave e colocá-los em hibernação.

Depois da breve contemplação da Terra as pessoas do alojamento da Lua seguiram para a sala de lançamentos. Aquele corredor parecia outro para Derick, mas já havia passado por ele muitas e muitas vezes, apertou a mão de Gisele e seguiu em frente, ele era o que possuía o andar mais natural dentre os vinte tripulantes que seguiam pelo estreito corredor. Ao final do corredor o grupo se separou, dez pessoas foram para um módulo e outras dez foram para o outro, esses módulos faziam no máximo uma viagem por dia, pois o abastecimento com combustível produzido na Lua demorava cerca de quinze horas.

Derick e Gisele sentaram-se lado a lado na primeira nave, aquela que iria ser lançada antes, era como um miniônibus, com os assentos todos apertados e o teto baixo. Na frente via-se o piloto, era somente um, pois a economia de combustível impunha que a massa a ser lançada deveria ser minimizada e havendo menos um corpo para carregar o módulo cumpria suas premissas. Num futuro próximo, talvez o módulo fosse todo automático, não havendo a necessidade de piloto.

No lançamento do módulo todos fizeram silêncio e a apreensão tomou conta daquele cubículo, só se ouvia a voz do piloto e o rádio, todos sentiam a pressão de suas contas sobre as poltronas daquela pequena nave e essa situação permaneceu por mais algum tempo, quando Derick viu dois pequenos pedaços de papel, que acidentalmente alguém havia deixado cair, flutuarem do lado de sua poltrona, no corredor do módulo, ele percebeu que finalmente estavam em órbita, agora era esperar que o módulo atracasse na nave, esta era a manobra mais delicada e demorada da abordagem na Velox.

Alguns minutos se passaram e as vozes começaram a se difundir pelo pequeno espaço daquele módulo, as pessoas iam ficando mais relaxadas e começavam a conversar, até que tiveram, por um instante, a visão da Velox através da janela do módulo. Naquele momento quase todos se calaram, apenas os que não viram é que continuaram a conversa.

O processo de abordagem era demorado e aquelas pessoas já estavam impacientes, havia somente uma entrada na nave cujo módulo poderia se fixar e eles teriam que ser rápidos, descer todas as pessoas e desengatar o módulo em questão de poucos minutos, pois o outro módulo já havia partido da Lua e ele deveria encontrar a entrada livre, e assim foi feito todos desceram com dificuldades, pois a falta gravidade os impedia de serem ágeis, passaram pela sala de descompressão e entraram na sala de hibernação. Ali viram as pessoas que já dormiam há dias ou outras desde o dia anterior, era de impressionar ver todas aquelas pessoas em estado de hibernação, colocadas em pequenos casulos brancos, completamente fechadas, de modo a manter as condições necessárias à hibernação. Os casulos eram dimensionadas para ocupar o menor espaço possível, elas tinham o formato de um corpo humano em tamanho um pouco maior, estavam em pé com relação às portas da sala.

Derick viu seus amigos Joseph Stone e Mario Ernest Farina e chamou Gisele para apresentá-la a eles. Joseph e Mario estavam observando o Dr. Julio Dantas Filho colocar as pessoas em hibernação, os pilotos que fizeram a primeira viagem com Derick também estavam, pois eles iriam se revezar com mais outros casais, que já estavam em hibernação no comando da Velox. O processo não era complicado, porem para se colocar alguém em hibernação havia um protocolo a ser seguido, a não obediência desse protocolo podia levar a morte ou deixar seqüelas irreparáveis na pessoa que estava sendo colocada em hibernação. Ficaria somente um casal por vez acordado na Velox, durante um período de dez anos, passado este período outro casal deveria ser despertado e assumir o lugar do primeiro casal.

— Olá amigos, quero que conheçam minha namorada, Gisele Mautner.

— Gisele, este Mario Farina e este é Joseph Stone.

— Como você está Gisele? O Derick fala muito de você. — Disse Mario Farina.

— Vou bem e você?

— Tudo bem Gisele? — Diz Joseph.

— Estou bem e você como vai?

— Bom pessoal, acho que é a última vez que nos vimos, vocês já vão voltar para a Terra ou vão dar um tempo na Lua? Pergunta Derick.

— Nosso trabalho aqui acabou, vamos ter que voltar para a Terra, temos alguns exames médicos para fazer e verificar se nossos ossos estão intactos, senão perdemos muita massa óssea. — Responde Mario Farina.

— Pegaremos a primeira nave para a Terra, têm outros técnicos que voltarão conosco. — Diz Joseph Stone.

— Vou sentir saudades das nossas brincadeiras, foi uma honra trabalhar com vocês. Quero que vocês procurem meus pais e a mãe da Gisele, o endereço eu mandei via e-mail para vocês, diga que sentiremos saudades de todos, mas que estamos felizes. Eu falei isso por telefone, mas senti minha mãe preocupada, a mãe da Gisele não queria que ela viesse, se eles souberem que estamos felizes se sentirão melhor.

Assim que Derick termina de falar eles olham a entrada da nave e vêem as últimas pessoas chegando, então Joseph diz:

— Agora é adeus mesmo meu amigo.

Derick dá um abraço em cada um deles e a Gisele um beijo em seus rostos. Nisso o piloto do outro módulo chama, pelo rádio, todos os cinco técnicos que estavam preparando a Velox nos seus últimos detalhes.

Gisele e Derick eram os últimos do primeiro módulo a chegar à nave que ainda não haviam sido colocados em hibernação. O Dr. Julio diz aos dois:

— Agora é a vez de vocês, quem vai ser o primeiro?

É aplicada uma injeção com um anticoagulante, para não haver congelamento do sangue e uma outra injeção com uma droga que diminui o metabolismo do organismo. O Dr. Julio pede que os dois fiquem calmos, que não doerá nada. Derick sente seu coração diminuir os batimentos e de uma hora para outra fica inconsciente, o mesmo acontece com Gisele.

O Capitão Almir Mantovani e sua mulher Anastácia Limbermann acompanhavam todos os procedimentos e agora sabiam decor como proceder para colocar uma pessoa em hibernação.

Depois de todos os pilotos que trabalhariam na viagem, ou seja, todos os casais que seriam despertados durante a viagem, ainda faltavam o Dr. Julio Dantas Filho, ele foi o último a ser colocado em hibernação, esta tarefa coube a Anastácia, pois com seus conhecimentos em enfermagem podia realizar um melhor trabalho do que o Capitão Almir.

— Finalmente a sós meu amor, será que teremos outra lua de mel? —Disse o capitão.

— Estava mesmo muito tumultuado por aqui, agora somos somente nós dois por um longo período.

Aos casais que ficavam acordados era permitido e até recomendável que fizessem sexo durante a viagem, de modo a diminuir a solidão e amenizar a falta de outras companhias. Havia apenas uma restrição, eles não poderiam ter filhos, pois não havia casulos sobressalentes, existia apenas mais duas que eram para os dois pilotos, para alguma eventualidade, e também não era permitido que as mulheres fossem colocadas em hibernação grávidas, visto que não haviam sido feitas pesquisas que indicassem a segurança do feto durante o processo de hibernação.

A Velox estava programada para partir em quatro horas e vinte minutos, havia muito que fazer para somente duas pessoas, embora quase todo o procedimento fosse automático, Anastácia e o Capitão Almir tinham que verificar inúmeros sensores e monitores. Os engenheiros tinham verificado todos os itens da nave, mas para maior segurança, os itens principais deveriam ser verificados novamente.

Novamente a Velox iria começar sua jornada com quatro foguetes auxiliares trazidos da Lua, eles dariam um impulso inicial maior do que aquele obtido na viagem teste, pois agora estavam mais longe do campo gravitacional da Lua. O procedimento seguinte seria o mesmo, assim que terminasse o primeiro estágio, os motores de íons seriam ligados e permaneceriam ligados por décadas.

A contagem regressiva estava terminando, nesse instante os dois tripulantes da Velox já estavam devidamente sentados em suas poltronas, o baque do impulso deste primeiro estágio seria grande, equivalente ao sentido pelos foguetes lançados da Terra. O Capitão Almir e Anastácia estavam nervosos, eles eram os únicos conscientes que viveriam aquela aventura arriscada e empolgante. . ., quatro, três, dois, um, lançar. E a Velox partiu para talvez nunca mais voltar.

Dois minutos depois terminava o combustível do primeiro estágio e eram desengatados os quatro foguetes da Velox, eles seriam atraídos pela gravidade da Lua e cairiam perto da colônia, mais longe o bastante para permitir uma grande margem de segurança e não causar um acidente na base lunar. Na Velox sentiu-se outro baque e a nave parou de acelerar, porem imediatamente foram ligados os motores de íons, estes eram quase imperceptíveis aos corpos humanos, pois a aceleração era pequena. Desde momento em diante os tripulantes da Velox poderiam se movimentar livremente, todo o primeiro estágio daquela grande nave era apenas um petisco na conjuntura total da energia necessária para levá-la por aquele enorme percurso, mas o restante da energia seria servido aos poucos tal como um remédio homeopático.

Anastácia e o Capitão Almir viam a Terra se afastando dia a dia, era uma visão muito bonita porem saudosa, os dois ficavam observando aquela imagem durante muito tempo, por quase todos os dias, a noção de dia e noite havia desaparecido há muito tempo, desde a chegada deles na Lua, mas eles tentavam seguir uma rotina, de modo a manterem o estresse o mais longe possível e isso era recomendado e até mesmo imposto a todos os pilotos que iriam assumir o controle da missão depois deles.

A viagem tinha um aspecto enfadonho, era como se tivessem presos em uma penitenciaria, pois a rotina dentro daqueles aposentos que, eram todos pequenos, exceto o aposento onde ficavam as pessoas em hibernação, esse era maior, mas tinha o teto baixo, cabia uma pessoa alta em pé e esse aspecto da sala era necessário e suficiente para que coubessem os casulos em pé. Para afastar essa melancolia e a solidão, o casal fazia amor todo o dia, às vezes mais de uma vez ao dia, afinal de contas eles ainda eram jovens, esse detalhe e o fato dos dois serem compreensivos um com o outro é que tornava a viagem suportável. A jovialidade das pessoas era um pré-requisito para serem aceitos na missão. O Capitão Almir Mantovani era o mais jovem a comandar uma nave, tinha apenas trinta e dois anos e era um dos mais velhos do grupo, somente o Dr. Julio é que superava essa idade, com trinta e oito anos.

Anastácia tirava boa parte de seu tempo livre para estudar, ela estudava Física, mas também estudava Biologia e Química, queria aprender mais sobre aplicações da nanotecnologia tanto em medicina como também nas engenharias, tecnologias que a humanidade já dominava há décadas como: transporte de medicamentos por moléculas artificiais, moléculas que desabilitavam enzimas tornando-as inoperantes nos processos que desencadeavam doenças degenerativas ou que provocavam tumores e construções de transistores, mas também queria aprender sobre as novas tecnologias, ela gastava seu tempo com estudos desse tipo.

Já o Capitão Almir lia sobre as últimas inovações em motores de íons, ele tinha todos os artigos importantes publicados nos últimos anos, seu interesse tornava-se mais oportuno, pois tinha em suas mãos o comando da nave mais moderna já construída e com propulsão a íons. Conhecia todo o processo deste motor, mas estava interessado nos detalhes, procurava entende-los integralmente, quando terminava o dia de estudos pensava sobre o que iria se debruçar logo após aqueles tópicos, tinha interesse por muitos assuntos e as informações estavam todas a sua disposição, podia acompanhar sua mulher, seria até mais agradável para os dois se compartilhassem o mesmo assunto para estudo, porem havia uma determinação para que se especializassem em áreas distintas, embora o tempo livre fosse bastante extenso durante o percurso e havia tempo de sobra para que estudassem mais de um assunto. Depois de esgotar os estudos sobre propulsão e Anastácia terminasse o seu sobre nanotecnologia, iria convidá-la para estudarem juntos.

A Velox estava sendo acelerada há três meses e esse incremento na sua velocidade se estenderia por anos a fio, era impressionante sentir aquela força e o Capitão Almir comentava com Anastácia:

— Pena que somente nós dois estamos sentindo a força dos motores acelerando essa nave, Ana.

— É mesmo de se admirar Almir, esses motores estarão trabalhando mesmo depois de nós entrarmos em hibernação.

— Vamos ouvir o que hoje Ana, Beethoven ou Mozart?

— Coloca Mozart, mais coloca as mais alegres.

— Computador acesse arquivo de músicas, Mozart.

— Pois não Capitão.

Na tela apareceram todas as músicas de Mozart, mandaram executar as de preferência dos dois.

Anastácia e Almir tinham tarefas bem definidas dentro da Velox, a ele se incumbia de verificar diariamente os sensores dos propulsores de íons da Velox e outros sensores, em intervalos mais longos, embora o computador verificasse todos estes sensores automaticamente, se houvesse algum problema seria emitido um alerta e o computador verificaria a possibilidade dele mesmo resolver o problema, não podendo ele indicaria os procedimentos necessários para tal intento. A Anastácia caberia a tarefa de verificar diariamente os monitores dos noventa e oito tripulantes em hibernação, da mesma forma o computador também monitorava os tripulantes em hibernação e qualquer problema com algum deles era alertado imediatamente, mas Anastácia verificando os monitores diariamente diminuía as chances de algum tripulante sofrer algum dano por causa de um eventual problema nos sensores. No inicio da viagem os sensores estavam em ótimo estado, mais depois de décadas, eles estariam com desgastes, assim seria mantida rotina de verificar pessoa por pessoa durante toda a viagem.

O casal resolveu que iriam fazer revezamento em suas atividades, de modo a diminuir o tédio, para isso teriam que treinar um ao outro nos primeiros dias, assim fariam suas tarefas juntos nesses dias.

Os dias agora pareciam mais iguais do que nunca, a nave estava saindo do sistema solar, a Terra há muito já deixara de ser vista. O gigante Júpiter também agora não se via mais a olho nu. Ana e Almir usavam um pequeno telescópio para observar a Terra e os planetas. O Capitão Almir dizia:

— Pelo menos nós temos o privilégio de sermos os últimos, dessa nave, a vermos a Terra.

— Realmente é um privilégio Almir.

A nave agora fazia incríveis cinqüenta e cinco mil quilômetros por segundo em relação ao Sol, nunca na Terra ninguém havia chegado a tal velocidade. Ainda assim a nave continuava acelerando.

O Sol agora era uma estrela um pouco maior que as outras e tinha um aspecto diferente, emitia luz avermelhada.

— Olha Ana a essa velocidade já podemos notar o efeito Doppler sem o uso de instrumentos, veja o Sol tem um aspecto mais avermelhado.

— Como não acreditar na Física vendo essa prova irrefutável?

Estava chegando a hora deles hibernarem, apesar de manterem um bom astral com momentos vividos juntos, o casal não agüentava mais ficar sem falar com mais ninguém durante mais de dez anos, tinham somente um ao outro para declarar confidencias e mais ninguém, os dois tinham que ter grande equilíbrio emocional para manter-se sóbrio e a união.

— Uma semana meu amor e vamos ver como é dormir num estado de torpor ou de baixo metabolismo. —Disse Anastácia, enquanto os dois verificavam os monitores das pessoas que hibernavam.

— Será que sonham Ana?

— Nunca foi relatado nenhum sonho nas muitas experiências que fizeram, o cérebro consome muita energia quando está sonhando, e com o metabolismo baixo não há como manter nenhum sonho, na verdade existe pouca oxigenação no cérebro com os baixíssimos batimentos cardíacos, os neurônios não morrem por causa da baixa temperatura. Em todo caso veremos se vamos sonhar ou não daqui alguns dias.

Finalmente o dia de descansar havia chegado, o Capitão havia deixado varias instruções aos outros dois tripulantes que assumiriam seus lugares, ele dizia nas instruções que o casal deveria respeitar um ao outro; que deveriam estudar durante o tempo livre; praticar exercícios físicos com os aparelhos de ginástica que a Velox possuía; manter a dinâmica de cooperação, realizar as tarefas rotineiras, sem deixar passar um dia e, baseado nas experiências dele com Anastácia, deveriam fazer sempre que possível as tarefas juntos, de modo a manter a moral elevada.

Os dois membros que seriam despertados tinham realizado a primeira viagem da Velox junto com o Capitão e com Anastácia. O nome do homem era Pedro Demétrio Villar, e o da mulher era Martha ­Zappan, o computador podia desperta-los automaticamente, porem Ana e o Capitão conversaram e decidiram que eles mesmos realizariam a operação.

O jovem Pedro tinha um nariz proeminente, e encostado naquele casulo, esta característica ficava mais evidente, como todos os cem passageiros foram submetidos à depilação com laser, a barba de Pedro não havia crescido, se não tivesse depilado o rosto, sua barba deveria estar grande, porem menor que em condições normais, a hibernação diminuía o crescimento de pelos, ainda assim os cabelos estavam grandes. Seu rosto estava pálido, talvez pelo frio a que fora submetido, ele tinha a pele clara, mas esse estado lhe dava a característica de um boneco de cera, sua testa era maximizada pelas entradas sobre o couro cabeludo dando maior evidência a ela, provavelmente Pedro ficaria calvo cedo, se não fizesse algum tratamento para acabar com a queda de cabelo.

Martha era bela, seu cabelo estava maior do que o de Pedro às mulheres era permitido um cabelo mais longo, Anastácia mantinha o seu bem longo, mas sempre preso, provavelmente Martha também manteria o seu cabelo longo e assim deveria prendê-lo. Ela dormia com o mesmo aspecto de boneca de cera verificado em Pedro, o frio que mantinha as células intactas durante o processo de hibernação, deixava todas as pessoas hibernadas com aquele aspecto de palidez. Martha estava qual uma princesa num conto de fadas a espera de seu príncipe para ressuscitá-la e o príncipe na realidade seria uma mulher, Anastácia daria animação à aquele objeto inanimado que parecia fazer parte de um museu.

Anastácia inicialmente começou com Pedro depois passou para Martha, o Capitão Almir observava do lado, aquele processo que viu em ordem inversa a mais de dez anos, Pedro e Martha estavam um do lado do outro, então Anastácia fazia um procedimento em Pedro depois fazia o mesmo procedimento em Martha, assim, pensou ela, os dois estariam despertados quase que ao mesmo tempo.

As primeiras palavras de Pedro foram:

— Onde eu estou?

— Você está na nave Velox a caminho de outro mundo. —Respondeu Anastácia.

Ele sentia muito frio e custou a acreditar que estava mesmo fazendo tal viagem.

— Você está bem, não sente nenhuma dor, ou alguma tontura? —Perguntou o Capitão Almir.

— Não, eu estou bem, só que estou com muito frio.

Seus batimentos cardíacos estavam abaixo do normal, mas estavam tendendo ao valor esperado.

Um minuto e meio depois de Pedro, Martha acordou tendo os mesmos sintomas e também sem senso de localização. Ela tinha parte do cabelo cobrindo o lado direito de seu rosto, impedindo a observação de uma pequena cicatriz que possuía na testa causada provavelmente por uma espinha ou por alguma doença viral que deixam marcas pelo corpo, as vesículas da catapora, por exemplo. Mas aquela marca era muito pequena para deixar o rosto de Martha menos atraente, ela era sim atraente, tinha os lábios grossos e a boca do tamanho médio, seus dentes eram bem brancos, seu nariz era fino e proporcional ao resto do rosto, tinha o corpo bem definido, embora não fosse uma atleta, antes de sair da Terra, fazia ginástica regularmente, aliás, esta era uma condição para os que foram aceitos para grande viagem, que todos deveriam ter bom condicionamento físico. Martha era um pouco mais baixa que seu marido, Pedro, talvez uns cinco centímetros, ele deveria ter aproximadamente um metro e setenta e cinco centímetros.

Pedro e Martha foram tirados dos casulos, enrolados em cobertores térmicos e levados para o quarto.

Anastácia quis saber mais sobre a hibernação e começou um pequeno interrogatório:

— Existe algum desconforto durante o processo de hibernação, vocês sentiram dor na hora de serem colocados em hibernação?

Pedro, que havia sido despertado antes respondeu:

— Eu não me lembro direito, parece que faz tanto tempo, acho que não senti nada, agora só senti muito frio.

— Na verdade faz muito tempo, vocês estão tomando como referencia uma noite de sono de oito horas e esse é o parâmetro de comparação para quem é colocado em hibernação. — Observou o Capitão Almir.

— Vocês lembram de terem sonhado? — Continuou Ana.

Agora foi Martha quem respondeu.

— Não lembro de nenhum sonho, também não tive nenhuma espécie de dor ou desconforto, durante o processo de hibernação, agora também só senti frio.

O Capitão Almir havia mudado de idéia, ele pretendia que os colocassem em hibernação, ele e sua mulher, logo que o próximo casal fosse despertado e se verificasse que estavam bem. Mas aquele tempo todo sem falar com ninguém, exceto sua mulher, deixou-o com vontade de conversar com outras pessoas, chamou Anastácia para o lado e perguntou a ela.

— Ana, meu amor, vamos ficar hoje com eles e deixarmos para sermos colocados em hibernação somente daqui a algumas horas?

— Acredito que é a melhor decisão, pois assim verificamos se eles estão bem mesmo para assumir os controles da nave, e alem do mais, nós podemos conversar com outras pessoas depois de tanto tempo.

— Então vamos esperar até o horário que dormimos todos os dias, seguindo uma certa rotina?

— Está certo, vamos.

Apesar dos dois casais terem feito aquela viagem experimental juntos até Marte, ainda não se conheciam intimamente, pois naquela viagem havia mais pessoas e conversas reservadas eram dificultadas e o treinamento na Terra era muito individualizado dando poucas chances de contato entre os treinados.

— Bom Pedro e Martha, vamos ficar com vocês durante o dia de hoje, precisamos conversar um pouco com outras pessoas, em dez anos vocês vão sentir a mesma vontade. Daqui a oito horas nós seremos então colocados em hibernação.

— Claro capitão Almir, vamos conversar um pouco, nós também estamos um pouco confusos, melhor termos companhia durante as próximas horas. — Disse Pedro, com a voz já menos tremula.

— Vamos contar tudo o que aconteceu nestes dez anos de viagem. Disse Anastácia. — Embora esteja tão monótona que praticamente não temos nada de novidade para lhes contar.

— Mas isso é um ótimo sinal, então as coisas estão caminhando bem, não estão? — Pergunta Pedro.

O Capitão Almir apressa-se a confirmar o que disse Pedro.

— Claro que sim, não há nada de errado conosco, agora devemos estar a uma velocidade de aproximadamente cinqüenta e cinco mil quilômetros por segundo em relação ao Sol.

— Nossa... — Se surpreende Martha.

— E ainda estaremos acelerando por muito tempo, daqui alguns anos o incremento na velocidade será menor, por causa da relatividade geral de Einstein, e então iremos desligar os motores. — Continuou o Capitão. — Esse momento está programado no computador e acontecerá no final do comando de outra dupla e não de vocês, porem as dificuldades maiores serão enfrentadas pelo casal que estiver no comando quando tiver que girar a nave em cento e oitenta graus no sentido do movimento, o computador também está programado para fazer a manobra sozinho, porem eles terão que acompanhar tudo bem de perto. Acho que as tarefas de vocês estarão tão rotineiras quanto as nossas.

Todos já sabiam destas coisas, mas o Capitão Almir não perdeu a oportunidade de revisar.

Então começaram a conversar como amigos, Anastácia contou que havia conhecido o Capitão Almir durante um congresso no Brasil, ele participava como expositor, na sua Universidade e ela era a visitante, ainda estavam fazendo as graduações nas suas respectivas áreas. Eles trocaram telefones e-mails e ela voltou para a Alemanha, seu país natal. Depois disso trocaram mensagens e começaram a falar pelo telefone, em pouco tempo já estavam namorando, ele foi fazer pós-graduação na Alemanha e começaram o relacionamento, mais alguns meses para organizar as coisas e de repente estavam morando juntos.

O Capitão Almir estava preparando um bom café quente, não havia possibilidade de eles tomarem café ou qualquer outro líquido em xícaras ou copos, pois não existia gravidade, então tinham que tomar qualquer líquido em copos tampados e com canudinhos.

Enquanto Anastácia contava sobre sua vida, ela fazia os exames de rotina nos dois, o exame de sangue, exames mais diretos..., não encontrou nada de anormal.

Assim que Anastácia terminou de contar como havia conhecido Almir, Martha começou a contar como conheceu Pedro. Eles foram assistir a uma palestra sobre a grande viagem e acabaram se sentando um do lado do outro, durante a palestra ele começou a falar com ela dizendo que queria muito ir a essa viagem, ela respondeu que também estava com muita vontade de conhecer este planeta descoberto há poucos anos, comprovadamente com vida, embora não pudessem precisar que tipos de seres habitavam este mundo.

Nesse momento Anastácia interrompeu.

— Mas então vocês estão juntos por conveniência?

— Não. Gostamos sim um do outro, pelo menos eu gosto do Pedro.

Pedro falou:

— Eu também gosto muito dela.

Apesar de ter passado dez anos Pedro ainda não acreditava, ele olhava do lado e não via nada de diferente, a nave estava extremamente limpa e organizada, do jeito que tinha visto há dez anos, então resolveu olhar pela janela da Velox que mostrava a Terra quando a viu pela última vez, não precisou fazer nenhuma força para se levantar, pois a força que o puxava para o chão era pequena, levantou-se meio que desajeitado e mirou seu olho naquela pequena janela, não viu nada, somente estrelas distantes, resolveu então olhar para a janela de cima, viu aquela estrela que se destacava dentre as outras e em cor avermelhada, então disse:

— Aquele é o Sol?

O Capitão, que lhe trazia o café, respondeu.

— É meu caro amigo, já não dá para ver a Terra com os olhos nus, temos que usar o telescópio.

Pedro, como era físico, logo notou.

— Olha só o efeito Doppler em ação, que barato!

Conversaram durante todo o tempo, falaram da infância de cada um, correndo nos campos ou brincando na rua com os amigos e enfim seria a vez de Anastácia e o capitão Almir serem colocados em hibernação. Estavam apreensivos e nervosos, mas lembraram das orientações do doutor Julio Dantas Filho, que dizia que a tensão dificultavam o processo de hibernação e procuraram se manter calmos.

Desta vez o procedimento de hibernação seria realizado por Martha, pois Pedro não tinha experiência com agulhas e ficava nervoso com elas, alem do mais Martha era bióloga e teoricamente teria mais habilidades com estes objetos médicos.

— Vocês vão ficar bem. — Disse Pedro, lembrando da sua experiência dez anos atrás.

— Eu sei, mas ainda assim é horroroso pensar que vamos ficar dormindo dentro de uma nave que viaja através do vazio, por dezenas de anos, absolutamente ignorantes com relação o que se passa ao nosso redor. —Respondeu Anastácia.

O capitão Almir não disse nada, mas também estava nervoso e parecia nervoso, algo não muito oportuno para um comandante demonstrar. Seguiu-se o procedimento e logo os dois Anastácia e o capitão estavam adormecidos.

Pedro olhou para Martha e disse em voz baixa:

— Agora somos sós nós dois, vamos ficar sozinhos aqui por muito e muito tempo, o capitão deixou as instruções no computador, vamos lê-las?

Martha estava ansiosa para começar suas tarefas, talvez tentando disfarçar o sentimento de medo que de repente tomou conta de seu peito.

— Vamos ver estas instruções, quero começar logo com estas tarefas.

— Calma Martha, você está nervosa, não precisa se preocupar, nós ficaremos bem, não há nada do que nos preocupar, o computador fará quase todas as tarefas, nós ficaremos somente como juizes verificando e revisando alguns monitores com dados dos sensores. A tarefa mais demorada durante um dia é verificar os monitores das pessoas que estão hibernando.

— Mas e se alguma coisa de fora vier nos atacar? Estamos tão longe de casa, em um lugar onde ninguém já esteve, é uma situação perturbadora.

— Não há nada lá fora Martha, se você tiver levando em conta a possibilidade de haver outras formas de vida fora da Terra, não se esqueça que o Universo é tão grande que a probabilidade de encontrá-los numa viagem interestelar, como a nossa é menor do que a possibilidade de ganharmos dez vezes na loteria.

— Mas se colidirmos com uma rocha, um meteorito, vamos morrer e ninguém vai ficar sabendo.

— No espaço interestelar não existe meteoritos, os micrometeoritos e as rochas maiores são atraídas para perto das outras estrelas, passamos há muito tempo, pelo cinturão de asteróides do sistema solar que maior representava perigo para nós, agora a possibilidade disso acontecer é muito pequena e o casco desta nave é muito resistente, não há com que nos preocuparmos.

Pedro sabia que com aquela velocidade a nave não teria muitas chances contra qualquer colisão, mas não podia deixar mais Martha nervosa.

— Tudo bem meu amor, acho que estou exagerando, eu vou mandar uma mensagem para a Terra.

Daquela distância, uma mensagem para a Terra, demoraria anos para chegar. Martha iria mandar mensagens para seus pais e para o centro de comando, pensava: talvez meus pais já devam estar mortos, afinal de contas passaram-se dez anos aqui na nave e na Terra quanto tempo havia passado? O capitão tinha dito a eles que mandassem mensagens diárias para a Terra, mas não havia dito quantos anos a mais tinham se passado lá, nem se estava tudo bem. Afinal qualquer noticia recebida da Terra estaria defasada em anos.

Ainda assim mandou a mensagem com as últimas notícias da nave e que agora havia outros dois tripulantes comandando a Velox, depois leu as últimas notícias recebidas da Terra, olhou a data e depois comparou com a do computador, verificou que a data registrada na mensagem estava seis anos, dois meses e oito dias atrasada em relação à data do computador. Pensou: a maior parte desta defasagem está relacionada à demora para as ondas eletromagnéticas chegarem até aqui, e a outra parte está relacionada com a relatividade de Einstein, afinal estavam a grande velocidade.

Leu a mensagem que dizia: "Aqui na Terra continuamos enfrentado problemas com o clima, a Europa ocidental está enfrentando uma seca severa depois de um inverno extremamente longo e rigoroso, e a África central tem sofrido com inundações. Vocês dois logo estarão em hibernação, queremos desejá-los muita boa sorte nessa jornada e que vocês encontrem um lugar melhor que a Terra para viver".

Martha, se quisesse mandar uma mensagem para seus pais, teria que encaminhá-la para o controle da missão, eles mandariam para seus pais, mas ela não fez isso, apenas escreveu que estava seguindo tudo como planejado e que os outros dois tripulantes, Anastácia e capitão Almir, estava em hibernação, ela apenas perguntou de seus pais, se estavam bem, não poderia esperar tanto tempo para ter uma resposta, mas o que não sabia era que no dia seguinte ela receberia as notícias dos pais, o controle da missão tinha calculado o dia exato que acordariam e tomado à iniciativa de procurar saber sobre a família de Martha e de Pedro.

Martha voltou para a pequena sala de exercícios e de alimentação, onde se encontrava Pedro, ele já estava fazendo exercícios, de modo há diminuir um pouco os efeitos da hibernação, cuja imobilidade atrofia os músculos, tanto quanto a falta de gravidade.

— Pedro, acabei de mandar uma mensagem para a Terra dizendo que estamos bem, perguntei também como estão meus pais e os seus. Li a última mensagem enviada pelo controle da missão e os problemas climáticos na Terra parecem que pioraram.

— Você sabe que essa mensagem vai demorar muito a chegar? Talvez quando tivermos notícias deles . . .

Pedro não quis terminar a frase, pois não queria deixar Martha mais nervosa.

— Eu sei que existe o fator distância e que as ondas eletromagnéticas viajam na maior velocidade possível, mas mesmo assim elas demoram muito tempo para chegar aqui por causa da grande distância, mas eu quero saber o que está acontecendo ou o que aconteceu com eles.

— É melhor você fazer um pouco de exercícios, depois vamos verificar os sensores dos motores e alguns controles, nas instruções do capitão Almir ele faz uma pequena menção sobre como ele e Anastácia faziam suas tarefas, ele diz que no inicio faziam suas obrigações separados e que era muito penoso ficarem tanto tempo sozinhos naquele silêncio inexorável, depois passaram a fazer as tarefas juntos o que trouxe mais prazer e alegria em realizá-las. Vamos fazer igual a eles logo de início, Martha?

— Tudo bem vamos, mas preciso me acostumar de novo a andar nessas condições, não consigo dar um passo sem perder o equilíbrio.

Praticamente todo o chão da Velox era coberto por velcro, as sapatilhas dos tripulantes também tinham o solado com uma fita de velcro, assim não haveria perigo de saírem flutuando pela nave, mas arrancar o pé do chão para dar o próximo passo, necessitava de certo esforço e às vezes fazendo a pessoa perder o equilíbrio. O uso correto daquela sapatilha exigia treino.

— Você sabe Pedro, que se formos juntos fazer as tarefas vai sobrar pouco tempo para outras atividades?

— O capitão descreve que no início eles tinham tempo de sobra, ficavam muito tempo parados ou fazendo exercícios, quando seguiam essa última alternativa achavam que estavam se transformando em viciados em ginástica, e então resolveram fazer suas obrigações juntos.

Martha já havia concordado, mas quis deixar claro que poderiam ter problemas com os horários ela, na verdade, estava nervosa e procurava a todo custo cabelo em casca de ovo, estava vendo as coisas de forma negativa.

Depois de algum tempo Pedro falou:

— Vai ficar tudo bem Martha.

O trabalho se estendeu ainda por algumas horas, fizeram todas as atividades juntos, e ao final Martha exclamou:

— Apesar de ter ficado dez anos dormindo, parece que não durmo há dias, e você que fez muito mais exercícios que eu Pedro, não está cansado?

— Como estou. Realmente parece que não durmo há dias.

Seguiram para o quarto olharam para a cama.

— Martha, estamos sozinhos aqui, isso não te dá uma idéia? Podemos considerar como sendo a nossa segunda lua de mel, e sob condições de baixa gravidade, são condições novas e tentadoras, será uma experiência e tanto.

— Sozinhos? — Retrucou Martha. — Estamos é muito mais do que sozinhos.

Ela disse aquilo da boca para fora, na verdade aquelas condições a excitava. Estavam livres, leves e soltos, foi uma experiência realmente muito interessante para os dois.

Os dias passaram a ter ares de rotina, a tensão e o nervoso de Martha foram se abrandando. As notícias da Terra não traziam nada de novidade, às vezes pensava que os dirigentes do controle da missão estavam escondendo fatos, às vezes pensava que com aquela defasagem de tempo não podia saber de nada com certeza do que acontecia naquele longínquo pontinho, que a cada dia ficava mais distante. Com o tempo acabou se conformando e adquirindo o equilíbrio necessário para seguir em frente.

A rotina importuna era reforçada pelos fatos de que nada acontecia de diferente, os sensores dos motores de íons da Velox estavam fazendo leituras dentro do padrão exigido, os sensores que monitoravam os hibernados faziam leituras dentro dos parâmetros exigidos, embora fosse muito melhor que continuasse assim, o casal se incomodava com aquela rotina, mas tinham pensamentos positivos e, desta forma, conseguiam contornar qualquer irritação mais aparente que pudessem ter.

Os dias se passaram, os anos vieram e finalmente havia chegado à hora de Martha e Pedro voltarem aos casulos de hibernação. Realizaram os mesmos procedimentos que Anastácia fez quando os tiraram da hibernação e acordaram os outros dois tripulantes que ocuparam seus lugares. Eles também fizeram companhia ao casal durante aquele dia. O homem era engenheiro civil, seu nome John Marvin, era negro, tinha os cabelos maiores do que Pedro quando foi tirado de seu sono, talvez por este último ter ficado menos em hibernação, era, com certeza, a pessoa mais alta da nave. John era americano, também casado com uma americana, Susan Andréas Lazaro, ela foi a primeira a ser trazida do seu sono profundo, Susan tinha cabelos lisos e castanhos, mais lisos do que Martha, embora Martha tivesse alguns traços que a deixava mais bonita, Susan não ficava muito atrás, ela só não era mais bonita porque tinha a boca desproporcional ao resto do rosto, era um pouco menor do que deveria ser e também possuía a cavidade dos olhos um pouco profundos. Ainda assim Susan era muito atraente, tinha o corpo muito bonito, talvez mais bonito do que o de Martha. Susan tinha também a especialidade em engenharia, ela era engenheira de materiais, mas como todos os casais tinham que ter um membro com algum curso em medicina ou enfermagem, John também possuía o curso de enfermagem, então caberia a ele realizar os procedimentos para colocar Martha e Pedro em hibernação. Ao outro membro da equipe ou da dupla, cabia a observação, eles faziam sim cursos de primeiros socorros e se precisassem de seus serviços para alguma eventualidade, teriam que ajudar.

Agora voltariam à hibernação, não estavam muito entusiasmados com a idéia, mas talvez seria melhor do que continuar naquela rotina, que por mais otimista que fosse suas atitudes perante aqueles dias irritantemente idênticos, eles encaravam os problemas que apareciam de forma correta, como ensinavam os analistas e psicólogos da missão.

Nunca, ninguém na Terra tinha chegado a aquela velocidade, estavam a cento e vinte dois mil quilômetros por segundo e continuavam acelerando, não havia nada que eles conheceram que viajasse naquela velocidade, o Sol era uma estrela que, cada vez mais ficava igual às outras, ela tinha agora um padrão mais avermelhado do que antes, ao fundo as estrelas também tinham um padrão mais avermelhado. Os motores de íons da Velox forneciam a mesma quantidade de energia por unidade de tempo, sua potência era a mesma, porem cada dia que passava, era mais difícil acelerar a nave, era a prova definitiva da Teoria da Relatividade Geral de Einstein, não havia como fugir dela e o incremento na velocidade Velox ficava cada vez menor, daqui alguns anos não seria mais viável manter aqueles motores ligados e correr o risco de ficar sem combustível para desacelerar a nave no trajeto final da viajem, por isso os motores seriam desligados em alguns anos, quando a nave estaria, segundo cálculos da missão, a cento e noventa quilômetros por segundo, cerca de dois terços da velocidade da luz. A nave viajaria mais quarenta anos com os motores desligados depois seria invertida, com os motores apontando para o destino da Velox e os motores seriam religados, neste instante a nave começaria sua lenta desaceleração, nesta fase o novo sistema estaria muito mais próximo e o telescópio deixaria as claras qual deveria ser o rumo exato a seguir, pequenas correções de infinitésimos de graus poderiam ser feitas durante o restante da viajem, assim a nave rumaria para o planeta destino e não para a estrela.

As janelas da nave ficavam paralelas ao chão, com uma leve inclinação para cima, o chão da nave era um conceito diferente, tomando como referência a Terra, para quem tinha vivencia na Lua ou nas estações espaciais, o conceito de chão da Velox era mais bem assimilado. Tomava-se como chão o plano de onde vinha à força que os prendia a ele, e força era o empuxo, trazida à tona por aqueles grandes motores de íons, embora um motor de carro comum empregasse mais impulso numa arrancada do que a Velox, assim uma pessoa sentada nele sentiria uma força a empurrando contra as poltronas, maior do que na Velox, esse empuxo dura poucos segundos, enquanto na Velox ela vinha se estende por décadas.

Embora o telescópio pudesse registrar o sistema solar de destino, não havia janela na Velox que apontava para o alto, assim não podia se ver a estrela que se aproximava lentamente, mas nos monitores via-se que esta estrela adquiria um aspecto diferente, enquanto que o Sol ficava avermelhado a estrela de destino ficava azulada, era, mais uma vez, a confirmação do efeito Doppler. À medida que a Velox se aproximava daquela estrela irmã do Sol, ela ficava mais interessante e despertava mais a curiosidade nos tripulantes da missão.

John e Susan estudavam juntos durante boa parte do dia, faziam suas obrigações e depois observavam o Sol e a estrela que iam visitar, quase todo o dia.

O despertar do mal

Embora eles estivessem bem adaptados a aquela situação havia uma angustia e uma tristeza que aumentava com o passar do tempo e eles não conseguiam descobrir o que causava aquilo, afinal estavam obstinados a fazer aquela viagem e não havia motivo para terem aqueles sentimentos negativos. Conversavam a respeito e pensavam que a ausência de gravidade poderia estar alterando os parâmetros neurológicos, desequilibrando neurohormônios e causando aqueles sintomas desagradáveis, que lhes tiravam o bom humor e vontade de realizar as suas obrigações.

John e Susan estavam sós e aquela solidão os incomodava, embora tivessem um ao outro, não era o bastante precisavam ver pessoas novas, mas não podiam, então começaram a tomar pílulas para dormir e dormiam mal, pois agora a falta de gravidade também os incomodava, nos bancos de dados do computador da Velox os relatórios dos outros casais faziam menção aos problemas enfrentados pelos tripulantes, com a ausência de gravidade, mas não havia nada que mencionasse um incomodo tão grande quanto vinha passando o casal atual, seriam eles pessoas pouco adaptáveis à essas condições? Ou inconscientemente teriam mudado de idéia e preferindo estar na Terra perto de outras pessoas, será que aquela sensação de solidão estrema estava afetando seus corpos também?

Seguiram em frente a todo custo, pois queriam sim conhecer este novo mundo e apesar de as duras penas, o tempo estava passando e logo seriam reinseridos nos casulos de hibernação. Depois de ficarem os dez anos sozinhos, o período para que eles tomassem conta da nave havia se esgotado, os novos tripulantes eram ingleses, a mulher se chamava Diana Laureal e o do homem era Albert Kingdown Miller, era um casal típico inglês, ele formado em Geologia pela Universidade de Manchester, apesar da pouca idade, Albert usava um bigode que é mais comum nos homens de quarenta anos para cima, tinha estatura mediana e falava pouco. Diana, por sua vez, era mais extrovertida, tinha cabelos semi-encaracolados, que estavam bem grandes e deveriam ser presos imediatamente. Albert não teve dúvida, quanto ao seu cabelo, pediu que Diana cortasse bem baixinho.

Susan e John estavam preocupados, pois sabiam que sendo Diana do jeito que era, extrovertida e tendo sempre a necessidade de falar com alguém, sabiam que os dois teriam mais dificuldades de passar pelo período de dez anos do que eles próprios. Chamaram então Albert para um local reservado e recomendaram, de forma bem diplomática que tivesse muita paciência com Diana. Albert ouviu e aceitou os conselhos com bastante humildade, afinal John e Susan tinham passado pelo que eles iriam passar.

Os dias vieram e Diana começou a entrar em forte depressão, Albert falava pouco e essa característica o tornava mais distante de Diana, ela sentia falta da conversa com outras pessoas. A situação foi ficando desesperadora e Albert que não se incomodava muito com a situação diferente que estavam vivendo, assim mesmo acabou tendo problemas de angústia e agonia, não só por ver Diana daquele jeito, mas por sentir que havia algo estranho naquela nave.

Diana não mais podia ajudar em todas as tarefas a serem executadas diariamente na Velox, limitava-se a pequenos afazeres, nem seus exercícios ela fazia mais, Albert estava sobrecarregado, e apesar de não ter tempo nem de pensar em nada, aquela angustia, o aperto no coração e o nó na garganta estavam presentes a cada instante. A primeira discussão ocorreu em pouco menos de seis meses de missão.

— Diana você não vai me ajudar? Eu estou fazendo minhas obrigações e as suas, gostaria de um pouco de compreensão de sua parte. Nem sexo nós fazemos mais, você se lembra do primeiro mês como estávamos bem?

— Eu não deveria ter aceitado te seguir nessa aventura a esse mundo que ninguém sabe como é, se pudesse voltar eu voltaria. Não sabemos nem como vamos sobreviver nesse lugar, talvez nem cheguemos lá, e você vem me cobrar ajuda?

— É sua obrigação me ajudar, temos que vistoriar muitos sensores e circuitos todos os dias, você nem está fazendo seus exercícios, vai ficar com seus músculos e ossos atrofiados e então teremos problemas.

Ela não suportando mais aquela conversa, mandou que Albert calasse a boca e seguiu para o quarto, onde se deitou novamente.

Muitas discussões se seguiram a essa e menos de um ano depois de terem sido despertados, na última briga, Albert bateu em Diana, ela ficou assustada num primeiro momento e depois começou a desenvolver um sentimento de ódio por ele e por aquela viagem que considerava como sendo uma viagem suicida, quem visse Diana falando agora diria que ela não queria ir à viagem desde o inicio, porem ela estava mais animada que o Albert antes da partida da Terra.

Quatro anos e três meses tinham se passado desde que Albert e Diana assumiram seus postos de tripulantes ativos na Velox, então aconteceu algo que ninguém esperava, a comunicação com a Terra era mais deficitária do que nunca e o computador agora deveria tomar uma decisão, embora houvesse nos bancos de dados do computador da Velox um protocolo que orientasse sua decisão, este era vago, pois ninguém esperava pelo que tinha acontecido.

De repente o computador começou a despertar todas as pessoas que estavam hibernando e nem mesmo os que tinham adormecidos a pouco, como John e Susan, foram poupados. Ninguém entendia o que estava acontecendo, pois até tomarem consciência de onde estavam, e ainda mais que não viam pessoas em pé ao lado, os primeiros que se davam conta de onde estavam achavam estranho aquele ambiente extremamente quieto e o primeiro que se manifestou foi Derick, gritou com pouca força que havia lhe sobrado.

— Onde está todo mundo?

— Tem mais alguém acordado? — Pergunta o capitão, que acabava de recobrar a consciência.

Então muitas vozes são ouvidas, a maioria respondendo a pergunta do capitão. Derick falou:

— Será que chegamos capitão?

— Não faço a menor idéia, se tivéssemos chegado os dois tripulantes estariam aqui conosco, preciso me lembrar, quem estaria na última turma? — O capitão vez um esforço e conseguiu se lembrar. — Priscila Marconi e Otanael Marques, vocês estão ouvindo?

— Estamos sim capitão, acabamos de acordar também. — Responde Otanael.

O capitão faz um esforço e se levanta, a essa altura Derick já estava em pé, ele foi o primeiro a levantar, correu para o casulo de Gisele.

— Você está bem querida?

— Tudo bem meu amor, o que está acontecendo?

— Ainda não sabemos, mas vamos descobrir.

A nave ia ficar muito pequena para todas aquelas pessoas, a sala de hibernação, agora parecia uma pista de dança de um baile qualquer. O capitão pediu que todos ficassem ali esperando notícias, chamou Derick para acompanhá-lo.

— Vamos investigar para ver o que está acontecendo.

Seguiram então para a sala de controle, não viam ninguém pelo caminho, era estranho, dava calafrios, pois esperavam encontrar alguém. A nave era pequena, em poucos minutos todos os compartimentos estavam vasculhados, inclusive o compartimento que dava acesso aos motores da Velox. Retornando à sala de controle o capitão foi então buscar informações no banco de dados do computador.

— Acessando informações a respeito de Albert Kingdown Miller e Diana Laureal.

O computador responde com a voz sintética que lhe é característica.

— O que quer saber senhor capitão?

— Onde eles estão?

— Estavam na nave, mas agora não estão mais.

— Sabemos disso, queremos saber onde que estão agora.

— Eles saíram da nave.

— Por que saíram da nave?

— Não tenho essa informação senhor.

O capitão pergunta sem pensar, pois se refletisse um pouco saberia que o computador diria.

— Havia algum problema com a nave, por isso que saíram?

— Não há nada e nem houve nenhum problema com a nave senhor.

— Então por que sairiam da nave?

— Eles estavam agindo de modo estranho desde o segundo mês que foram despertados, senhor.

— Mas estavam arrependidos de virem nesta viagem? — Quis saber Derick, que até o momento estava em silêncio.

No computador havia um programa com um protocolo que lhe permitia fazer analise de personalidade das pessoas, a partir de características como a voz e os gestos. Ele fazia a leitura a partir das câmeras e dos microfones da Velox.

— Tive acesso a várias discussões entre os dois e em nenhum momento Albert falou sobre ter mudado de idéia a respeito de ter vindo, mas Diana estava sim arrependida, no primeiro mês ela ficou bem, estava animada, mas com o passar do tempo ela começou a ficar deprimida. Albert conversava com ela nas primeiras semanas, mas depois passou a ignorá-la. No inicio da tomada de seus postos aqui na nave, eles agiam de modo normal, eram carinhosos um com o outro, mas depois passaram a agir de modo estranho, como se odiassem um ao outro. Se olhar os relatórios capitão, verá que ultimamente não cumpriam suas obrigações com regularidade.

O capitão pediu que o computador acessasse os relatórios da nave nas últimas semanas e constatou, que de fato não estavam fazendo o que deviam.

— Capitão por que fomos todos despertados? — Pergunta Derick.

— Na realidade se algo saísse errado, o computador deveria despertar somente a mim e o casal que assumiria o posto na seqüência. — O capitão então se dirige à máquina. — Computador, porque fomos todos despertados, não havia ordens para que você despertasse só a mim e ao próximo casal.

— Senhor capitão minhas leituras estão confusas, se é isso que chamam de sentimento, eu me sinto confuso.

Um mistério ainda maior começou a se formar, alem do estranho modo de agir de John e Diana, que culminou com a morte ainda mais estranha dos dois, o computador também agia de modo estranho.

Uma decisão errada ele tomou, porem outras decisões mais importantes, se fossem erradas, poderia colocar toda a missão em risco.

A nave estava em perigo, as pessoas dentro daquela nave estavam em perigo, o capitão teria que tomar uma atitude, mas primeiro tinha que saber o que exatamente estava acontecendo e se poderia confiar naquela incrível máquina, que agora dava um passo na direção da sua humanização, se é que era o objetivo de uma máquina ter sentimentos.

Uma dúvida pairou por sobre a cabeça do capitão, será que o computador não teria mudado a rota da nave? Se tivesse mudado de rota, em poucos graus que fosse, nesses meses que se passaram sem uma verificação direta nas coordenadas, fariam com que perdessem anos de navegação e talvez sem a possibilidade de chegarem ao destino.

— Derick, vamos verificar a rota da nave.

— Sim senhor capitão.

Abriram a tela que ligava diretamente o telescópio ao monitor fizeram cálculos manuais comparando as posições das estrelas laterais à estrela de destino e chegaram a conclusão que não havia mudança na rota da nave.

Ainda assim o capitão estava decidido fazer testes no computador, seguiram então, ele e Derick, para a sala de hibernação, os técnicos responsáveis pelo computador deveriam assumir a tarefa de realizar estes testes e fazer o que fosse necessário para manter o computador funcionando de maneira satisfatória. Os quatro cientistas da computação a bordo da Velox, foram chamados num canto da sala de hibernação, não havia como ter uma conversa reservada naquela sala, nem era essa a intenção do capitão, manter segredos quanto ao que estava acontecendo, ele queria era gastar pouca energia e expor o ocorrido para quem realmente interessava.

Boatos começavam a aparecer, e quem ouvia as conversas do capitão com os quatro especialistas em computação aumentava esses boatos, que passavam de ouvido a ouvido.

— Estão dizendo que o computador da nave está com problemas e que teremos que desligá-lo. — Disse uma voz do lado oposto da sala ao canto onde acontecia a conversa.

O capitão sabia que depois de passar as informações e dar as instruções para os técnicos, deveria voltar à atenção para o restante da turma. Os cientistas da computação ouviram atentamente tudo que o capitão dizia e depois seguiram para a sala de controle. Eram de nacionalidades diferentes, um era australiano, seu nome Willian Mayerick, Manoel Felix era português, Ferdnand Matias era norueguês e Marvin Manfred canadense.

Uma investigação deveria ser realizada, e agora o capitão precisava definir quais as especialidades lhe seriam útil, todos os outros deveriam voltar à hibernação, mas antes precisava explicar, com calma, o que estava acontecendo, não podia deixar as pessoas mais ansiosas por notícias e as expectativas vinham crescendo, as especulações também.

Assim que os cientistas da computação foram trabalhar, o capitão Almir começou com as explicações.

— Senhores e senhoras, estamos todos acordados porque o computador cometeu um pequeno engano, mas o fato mais grave ocorreu com os dois pilotos que comandavam a nave. Há cerca de vinte horas os dois deixaram a nave com seus trajes espaciais, os últimos relatórios informam que eles vinham agindo de forma estranha, brigavam com freqüência e acabaram tomando a decisão de deixar a nave. Os sensores de seus trajes pararam de registrar atividades biológicas e devem estar mortos, portanto não devemos parar a aceleração da nave para resgatá-los, a essa altura devem estar com uma velocidade bem menor que a nossa e a centenas de quilômetros atrás de nós.

Muitos sons de pessoas murmurando em tons de espanto ouviram-se, uma voz no meio daqueles noventa e seis rostos ressoou.

— Mas não havia no computador programas que lhe orientava sobre o que fazer numa situação dessas?

— Sim, somente alguns de nós deveríamos ser despertados caso ocorresse algo estranho, mas ao que parece o computador não entendeu assim, já ordenei que os especialistas descubram o que está errado com ele, verificamos também se havia algo errado com nossa rota, mas está tudo certo. Não temos suprimentos para todos por muito tempo e devemos economizar para quando chegarmos ao nosso destino, portanto vamos colocá-los de volta nos casulos de hibernação.

Alguns usaram o banheiro, outros pediram que lhes cortassem os cabelos e depois de uma hora estavam todos na sala novamente. O capitão disse então:

— Vou precisar de dois psicólogos e dois físicos para me ajudar nas investigações, depois que terminarmos com ela, voltaremos todos à hibernação. Pelo que sei das fichas de todos, existem quatro psicólogos a bordo e onze físicos, quem gostaria de ser voluntário e me acompanhar nestas investigações?

Dois psicólogos e três físicos ergueram a mão, então o capitão decidiu que ficaria com todos eles. Havia dentre os três físicos, um jovem muito talentoso, que não conseguira se afirmar na universidade que estudara, por suas idéias um tanto quanto excêntricas. Seu nome era Daniel Max Fargyson, ele havia sido casado com Amanda Vargues na Terra, uma francesa que era muito bonita com quem vivera por cinco anos, mas não tinham tido filhos, o casamento não dera certo, assim como sua vida profissional e agora estava rumando ao desconhecido em busca de um reconhecimento que talvez nunca viesse. Os dois psicólogos responsáveis pela investigação era uma mulher, Kelly Smith doutora em psicologia pela Universidade de Harvard, com a especialidade em solidão, apesar da pouca idade tinha um livro publicado. Kelly era americana e a única psicóloga mulher da nave, o outro psicólogo era Pedro Álvares um espanhol formado pela Universidade de Sorboni.

Os outros dois físicos que se propuseram a ajudar eram David Martin Lee um chinês da ilha de Hong Kong, cujo pai era chinês e a mãe era austríaca, formado pela Universidade de Nova York e Joel Scagliarin, um alemão que havia se formado pela Universidade de Berlin.

O capitão queria somente dois físicos e dois psicólogos para tratar do assunto, mas acabou aceitando os três físicos por causa do interesse de todos.

O próximo casal de pilotos que assumiria o comando da nave também deveria ficar acordado, pois assim que todas as investigações fossem concluídas os dois deveriam assumir seus postos, o casal tomaria o comando da nave bem antes do programado, e isso era mais um motivo para que os dois ficassem mais apreensivos. O capitão Almir conversou com eles e disse que não havia motivo para se preocuparem. Enquanto houvesse mais pessoas acordados dentro da nave eles se sentiriam melhor, mas e depois que todos fossem postos em hibernação? Pensou Dimitri Antonov, casado com Bárbara Antonov, casal de origem russa, eles tinham a missão de comandar aquela nave, depois daquele incidente horroroso, ocorrido há poucos dias e que ninguém conseguia explicar as causas.

— Será que a vida solitária, naquelas pequenas salas da Velox, faria alguém perder o equilíbrio emocional, de tal forma a provocar uma tragédia? — Comentou Dimitri diante de sua esposa, Bárbara.

— A solidão não era assim tão absoluta, afinal havia a companhia de um ao outro. — Completa Bárbara.

Derick, que havia acompanhado o capitão até agora, também iria ficar acordado para as investigações, estivera com Gisele por todo o tempo depois que voltou das diligências feitas por ele e o capitão Almir. Ele acompanhava tudo de perto, mas sempre de mãos dadas com Gisele.

Depois de quase um dia de conversas e especulações, o doutor Julio começou colocar a todos em hibernação novamente. Na vez de Gisele, Derick está ao seu lado e diz:

— Meu amor, logo estaremos juntos novamente, não vou deixar nada de ruim acontecer a você. Assim que terminarmos estas investigações, vou me deitar aqui, neste casulo do seu lado e vamos dormir até o final da viagem.

— Mas Derick, estas investigações podem não acabar e você pode ficar acordado anos a fio. No final da viagem você estará muito mais velho do que eu.

— Não querida, acredito que não vai passar de uma semana até que cheguemos a uma conclusão sobre o que está acontecendo. Depois é só tomar as providências e voltaremos a dormir.

Derick dá um beijo na boca de Gisele, que já estava deitada no seu casulo, quando chega o doutor Julio.

— Vamos dormir mais um pouco Gisele?

— Por que não doutor?

— Então tenha um bom sono. — Deseja o doutor.

— Tchau querida, até mais.

E ela cai no sono com seu metabolismo sendo reduzido, de forma lenta e gradual, a menos de dez por cento dos valores de uma pessoa em condições normais.

O capitão pensava numa maneira de resgatar os corpos de Albert e Diana, mas não vinha nenhuma idéia em sua mente a não ser o óbvio, diminuir a velocidade da Velox. Pediu então, as opiniões dos físicos presentes.

— Capitão, mesmo que o senhor desligue os motores, a velocidade dos corpos de Albert e Diana, a esta altura, são menores do que a nossa e eles não irão nos alcançar, a menos que diminuamos nossa velocidade. — Disse Joel Scangliarin.

— Mas é claro, entendo, eu só queria dar uma chance a eles de ter uma cerimônia de despedida digna, trazendo seus corpos para bordo, mas em vista das dificuldades, devemos esquecer os dois e trabalharmos para descobrirmos o que está acontecendo nesta nave.

Segundo as teorias de Daniel, um objeto acelerado tem energia crescente, a energia cinética, e sabe-se que, pela relatividade geral de Einstein, quanto mais velocidade um corpo possuir maior será sua massa, ela cresce exponencialmente com a velocidade e tende ao infinito quando este corpo se aproxima da velocidade da luz. Mas sabe-se também que lugares com muita energia, ou seja, com temperaturas elevadíssimas possuem a capacidade de criar matéria em pares, uma partícula e uma antipartícula.

A teoria de Daniel dizia que lugares ou pontos do espaço com muita energia criavam condições para uma abertura espacial entre outras dimensões, então ele pensou, será que não existem dois outros universos com características diferentes do nosso, enquanto nosso universo se caracteriza por espaços vazios, ponteados com matéria e talvez antimatéria, um outro seria caracterizado por uma prevalência de matéria e um outro, um universo oposto a esse, seria formado apenas por antimatéria, nestes universos as leis físicas universais seriam diferentes. Aumentando a energia cinética de algum corpo num ponto qualquer do nosso universo, estaríamos criando uma ponte virtual entre estes dois outros universos, como se fosse rompida uma barreira de potencial sobre a nave. O fluxo de matéria ou de antimatéria entre estes dois universo teria um sentido privilegiado, de modo que, estas partículas se encontrassem de um lado ou de outro desta ponte virtual, assim elas não poderiam ser detectadas, diferentemente no caso das colisões nos aceleradores de partículas também com grandes energias, neste caso consegue-se detectar as partículas e seus pares, as antipartículas, esta ponte se tornava mais e mais larga a medida que a Velox ganhava energia cinética. Daniel intuía estas idéias mais não conseguia explicar, porque existe um sentido privilegiado das partículas de um universo ao outro, as tentativas de equacionar o problema não foram frutíferas, deixado a sua carreira abalada. Assim ele decidiu seguir nesta aventura, se conseguisse provar alguma das características de sua teoria, seria excelente, se não teria uma chance de recomeçar, embora se conseguisse êxito com suas teorias, não teria muitas pessoas para lhe admirar.

À medida que a nave Velox aumentava sua velocidade, ela começava a participar de três universos paralelos, por isso que sua massa aumentava progressivamente. Havia a contração espacial e Daniel tinha esperança que poderia explicar também este fenômeno, ­­­como a Velox era a ponte entre estes dois outros universos, à medida que a velocidade aumentava a ponte ficava mais e mais larga, ou olhando do nosso ponto de vista, a nave ficava mais contraída na dimensão do espaço, cujo movimento estava ocorrendo, a participação cada vez menor da nave neste universo, tirava mais e mais do corpo dela, no sentido do movimento, e toda a massa das partículas que passavam pela ponte, a nave, deixava a massa da Velox muito maior e o número de partículas aumentava conforme a ponte se alargava ou a nave ficava mais contraída e isso ocorria com o aumento da velocidade da Velox, o tempo, por outro lado, com a nave participando cada vez menos do nosso universo, proporcionaria a alguém que estivesse olhando de fora, uma percepção diferente desta grandeza, havendo sensação de que ele passava mais lentamente dentro da nave.

Quando se propôs em ser voluntário nas investigações do que ocorreu à nave, queria ficar acordado e pensar um pouco em tudo aquilo, sua intuição lhe dizia que havia algo para o qual poderia dar alguma contribuição, e ainda usar suas teorias para tanto. Mas uma semana se passou e nada dele descobrir algo sobre alguma coisa que pudesse demonstrar que estivesse certo em suas teorias, e é chegada a hora de todos voltarem à hibernação.

O capitão Almir já havia decidido colocar mais um casal junto com Dimitri e Bárbara, no comando da Velox, somente precisava decidir qual casal. Poderia escolher qualquer um, mas preferiria que fosse algum voluntário, pois melhor seria a aceitação da missão e menores as chances de ocorrerem novos incidentes. A melhor oportunidade de escolher dois voluntários para o comando da nave junto ao casal Antonov, foi há oito dias atrás, quando todos estavam acordados.

Agora o capitão tinha que tomar uma decisão acertada, não podia ficar despertando os casais e depois descobrir que havia algum impedimento que os tornavam inaptos para assumirem seus postos. Pensou em convidar a psicóloga Kelly Smith com seu marido, Pierre Stern, para os postos auxiliares, mas será que eles aceitariam? Embora todos os tripulantes da nave devessem obedecer às ordens do capitão, ele não queria colocar alguém a contra gosto em uma missão, pois como já havia acontecido aquele incidente com pessoas que já estavam conscientes de que ficariam naquela situação por muitos anos, ficava imaginando como se portariam pessoas contrariadas nesta missão? Pensava o capitão durante longos períodos.

Kelly Smith seria a candidata ideal, pois ela era psicóloga, o melhor perfil profissional que aquela situação pedia, e alem do mais já estava acordada, o capitão Almir estava inseguro quanto a convidá-la para aquela missão, pois ela já havia se oferecido como voluntária nas investigações dos últimos acontecimentos na Velox, mas assim mesmo resolveu perguntar a ela se aceitaria tal missão monótona.

— Doutora Kelly Smith, você está segura de que a solidão é a principal causa desta síndrome que acomete os tripulantes no comando da missão? Você estaria disposta a acompanhar Bárbara e Dimitri em sua missão pelos próximos dez anos? Você ficaria com a tarefa de acompanhar todos os aspectos psicológicos dos dois e do seu marido também e é claro manter-se em forma, que alias é uma das condições necessárias para a permanência fora do sistema de hibernação a bordo da Velox, e isso eu sei que você faz, quanto a seu marido ele seria um ajudante nas tarefas de Dimitri e Bárbara, somente para se sentir útil e não ter pensamentos negativos. Se você aceitar, vamos agora mesmo acordar Pierre, para que conversemos com ele e mostremos o quão importante seria a sua permanência acordada na nave depois do incidente.

Kelly hesitou um pouco e por fim disse:

— Está bem capitão eu aceito, mas porque tem que ser eu, porque não chamar Pedro Alvarez, ou outro psicólogo que esteja a bordo?

— Primeiro o seu currículo a credencia como a mais qualificada da sua área à bordo da nave e depois somente você e Pedro Alvarez estão acordados e prefiro você para essa missão. Para a próxima turma à comandar a nave talvez tenha que chamar algum deles mais para essa situação prefiro que você fique observando.

— Está bem capitão, eu aceito, mas temos que verificar se meu marido estará disposto a me acompanhar.

— Vamos desperta-lo e perguntar se ele quer participar.

Seguiram para a sala de hibernação e lá despertaram Pierre Stern, este quando recobrou a consciência estava a se perguntar se já haviam chegado ao destino, pois sabia que depois daquele primeiro despertar iria acordar somente no novo mundo.

— Olá querida, já chegamos?

— Ainda não chegamos meu amor, queremos ter uma conversa com você.

O capitão Almir e Kelly esperaram um pouco mais de tempo até que Pierre recobrasse melhor a consciência depois que este levantou-se com esforço, pois não está familiarizado com aquele ambiente de baixa gravidade, as pessoas que saiam da hibernação tinham muito mais dificuldade para adaptar-se à aquele ambiente, mais do que os que vinham da Terra para a estação espacial.

— Você ainda está envolvida naquela investigação para a qual foi voluntária?

— Sim estou, mas ela já está encerrada e capitão precisa de mim e de você para auxiliar no comando da missão.

— Como assim precisa de nós, ele quer que fiquemos fora dos casulos de hibernação?

— Isso mesmo, nós precisamos de vocês. — Responde o capitão, meio encabulado.

— Mas eu estava dormindo tão gostoso, na verdade não era um sono tão gostoso assim, pois eu não sonhava e a sensação que tenho agora depois de acordado é que, esse tempo todo que estive hibernando parece não ter existido para mim.

Este relato era comum entre as pessoas que hibernavam, a ausência de sonhos e o metabolismo baixo davam a sensação de que o tempo não havia passado, e de fato o tempo biológico passava bem lentamente.

Pierre era biólogo, formado pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, ele era curioso, mas estava querendo saber o que lhe esperava no fim daquela viagem, e não o que lhe aguardava naquela monótona viagem, ele estava ansioso por ver o fim daquela viagem e ficar acordado por tanto tempo poderia ser muito extenuante.

— Você aceitou ser voluntária mais uma vez Kelly, querida?

— Sim, acho que nós dois seremos de grande utilidade na nave, os tripulantes que ficarão no comando precisarão de nossas companhias.

— Tudo bem, eu aceito, mas não vamos ter que ficar controlando a nave, nem ficar lendo os monitores para ver se está tudo certo?

— Este trabalho caberá à Bárbara e Dimitri, à vocês ficará a tarefa de fazer companhia aos dois e auxiliá-los no que for necessário.

O primeiro crime

Seguiram-se muitos dias e nada fora do comum acontecia, exceto pelo fato daquela sensação angustiante ir tomando conta de seu peito. A doutora Kelly descrevia essa sensação, como algo relacionado à solidão do espaço, em meio aquela imensidão que os tornavam insignificantes, em seus relatórios. E todos os quatro passageiros sentiam a mesma sensação, pelo menos era o que descreviam em suas conversas. À medida que os meses iam passando Kelly sentia piora no seu quadro, pensava até em começar a fazer uso de medicamentos, mas não podia fazê-lo, pois teria que prescrever medicamentos à todos os quatro tripulantes e não tinha autonomia para tomar tal decisão, talvez nem tivesse remédio para todos os quatro, para um período curto de tempo. Não, definitivamente ela não poderia receitar nenhum remédio, para ninguém naquela nave, talvez nem com as ordens do capitão, ela teria que descobrir o que estava acontecendo.

A doutora Kelly se debruçava sobre seus pensamentos e ficava horas pensando, mas não conseguia descobrir o que causava aquelas angustias nas pessoas. O que teria acontecido a todos se não fosse aquelas conversas diárias? Perguntava-se Kelly em seus devaneios diários. Fazer as suas obrigações em completa solidão, como: escrever relatórios, fazer exercícios físicos e também pensar, eram tarefas das mais árduas. Kelly procurava, sempre que possível, fazer essas tarefas acompanhada de alguém, seu marido, Pierre, estava sempre disponível, embora ele viesse agindo de maneira estranha do usual, com gestos agressivos e cada vez mais calado. Pierre, na Terra, era extremamente gentil e bem humorado, apesar de ser americano de origem francesa, cujos predicados relacionados ao seu país de origem e ao país que cresceu deveria lhe dar pouca abertura de convivência com pessoas fora da família, e do círculo de amizade, eram considerados pouco amistosos. Mas Pierre havia crescido próximo a um bairro latino americano, onde as pessoas faziam confraternização com freqüência e ele acabou adquirindo características mais alegres.

Pierre, por sua vez, não podia compreender aqueles sentimentos negativos que tomavam conta de seu peito, de onde vinham tanta angustia? Questionava ele, sem obter respostas, sentia raiva, sentia tristeza, tinha vontade de dizer coisas obscenas a aquelas pessoas que ali estavam, que compartilhavam aquela pequena mesa, numa das três refeições que faziam juntos todos os dias.

Todos eles, a respeito de estarem todos juntos naquela reunião de jantar, já estavam questionando as orientações da doutora Kelly sobre ficarem juntos no maior tempo possível, principalmente nas horas das refeições, inclusive a própria doutora Kelly estava considerando aquelas reuniões monótonas, sem utilidades práticas aparente e irritantes.

Apesar de não aprovar as reuniões nos instantes de consciência racional, a doutora Kelly instintivamente via utilidade nas suas idéias iniciais de realizar aquelas reuniões, e por isso insistia em continuar realizando-as. Porem o clima amistoso entre aqueles tripulantes já não mais existia, qualquer diferença entre opiniões era motivo para desavenças. Dimitri e Pierre protagonizaram a primeira briga mais séria.

Havia algo inexpressível no olhar de Dimitri, não se notava mais aquela audácia intrínseca a todos os aventureiros e ele tinha essa natureza: de desbravador e de curioso. Quando criança, em tempos de férias escolares, Dimitri saia de casa cedo e ficava o dia todo fora, andando pelos campos ao sul de Moscou, Dimitri explorava pequenas estradas sem pavimentação, que levavam à pequenas aldeias e plantações das mais variadas, ele comia coisas que lhe davam e bebia em fontes de água distantes.

Dimitri, um homem ligeiramente musculoso de tamanho mediano, com a aparência física e disposição de um atleta, agora parecia sem vontades, mas ainda assim, com apetite para entrar numa briga.

Pierre, por sua vez, era aplicado nas suas metas e tinha decidido de maneira irreversível, junto, é claro, de Kelly, em realizar esta viagem, mas agora a meta havia se esvaecida, e restava somente, em seu peito, uma raiva contida e que cada vez mais parecia transbordar pelo caminho ondese deparava com os outros três tripulantes da Velox e muitas vezes, até com objetos inanimados.Os jogos de xadrez com o computador já não lhe satisfazia, pelo contrário, causava irritação e a vontade de Pierre quando estabelecia contato com aquela máquina era de quebrá-la em pedacinhos. Sua mulher, que ainda tinha um pouco de paciência com ele, estava cada vez mais distante, Pierre não a procurava mais, nem para namorar.

A formação acadêmica de Kelly, nas ciências da mente, dava a ela uma pequena vantagem em relação aos outros, ela conseguia manter o equilíbrio mental por mais tempo, mas em alguns períodos a insegurança, a incerteza e o medo tomavam-lhe a mente, nestes instantes ela não conseguia fazer nada. Kelly sabia que alguma coisa estava errada, que havia algo causando aqueles distúrbios, mas continuava apostando suas fichas nas saudades de casa, apesar dela próprio sentir saudades de casa raramente.

Bárbara também vivia seu inferno interior, realizava suas tarefas com responsabilidade, mas quase sempre sob o efeito da depressão, as discussões com Dimitri vinham se exacerbando e se realizavam por motivos fúteis, já não existia carinho, nem afeto na relação entre os dois. Ela também possuía um espírito aventureiro, como do seu marido, era hiperativa quando criança, sua mãe dizia que Verônica deveria ser uma corredora de maratona, apesar da hiperatividade ela não desapontava na escola, suas notas eram sempre as melhores da sala. A loirinha Verônica também costumava sair com sua bicicleta depois das aulas, acompanhada por três amiguinhos da escola, dois deles meninos e outra menina e andavam por toda a cidade, na qual ela cresceu.

Dimitri e Bárbara se conheceram na Universidade e de lá para cá não haviam brigado de maneira séria, quando tomaram a decisão de seguir na viagem a bordo da Velox, não houve em nenhum momento, repúdio, por parte de um ou de outro, com relação à idéia.

A doutora Kelly sabia de todos esses fatos, pois ela tinha acesso irrestrito às fichas médicas dos tripulantes, e estas questões a intrigavam muito, ainda mais quando pensava nas atitudes de seu marido a bordo daquela nave.

Os atritos entre os tripulantes aumentavam progressivamente à medida que os dias iam passando, principalmente entre Dimitri e Pierre, as ironias e críticas trocadas entre os dois já não paravam simplesmente em palavras, por duas vezes as mulheres tiveram que se interpor entre eles, para que não se agredissem fisicamente.

Na última vez não houve jeito, Dimitri fez um comentário irônico, atacando Pierre na sua maior fraqueza naqueles momentos, a falta do que fazer. Pierre não suportava aquela ociosidade forçada que estava vivendo, sentia-se culpado por estar vivendo sem poder fazer nada de útil, mas também não se permitia ir oferecer ajuda à Dimitri e Bárbara, embora houvesse pouco a fazer. Dimitri, por sua vez, se sentia explorado, pois tinha que realizar, junto com sua mulher, todas as atividades da nave.

Assim que Dimitri terminou com seu sarcasmo.

— Quando será que as outras pessoas da nave vão poder nos ajudar?

Pierre levantou-se rapidamente, com toda força que aquelas condições físicas externas lhe permitiam, e pulou sobre Dimitri, que caiu ao chão da nave, num movimento que mais lembrava uma pessoa caindo na Lua do que na Terra. Com Dimitri no chão da nave, Pierre sentou-se sobre o seu peito, com uma perna de cada lado e passou a golpeá-lo, com as mãos fechadas. Apesar da baixa força externa que agia sobre eles, era devido somente ao empuxo dos motores de íons da nave, Dimitri não conseguia retirá-lo de cima de seu corpo.

Finalmente com a ajuda das mulheres, Dimitri conseguiu se livrar daquela situação ruim, mas assim que se livrou, procurou atacar Pierre, apesar de estar com um corte nos lábios e sangrando do nariz.

Bárbara e Kelly, a todo custo conseguiram afastá-los, um para cada canto daquela sala. Naquele instante Kelly pensou: "Decidimos tirar Pierre da hibernação para ser meu companheiro e isso não estava acontecendo, então por que mantê-lo acordado? Vou ficar eu com o casal Verônica e Dimitri para observar como irão se comportar e vou obrigar Pierre a voltar à hibernação".

A doutora Kelly agiu sob sua intuição e naquele momento era a decisão mais sensata a tomar, porem ela não pensou nas conseqüências, pois vários anos iriam se passar e ela estaria sozinha todo este tempo e mais, ela sofreria os efeitos do tempo enquanto Pierre, protegido pelo baixo metabolismo do processo de hibernação, não sentiria este tempo passar. Pierre encontraria Kelly bem mais velha ao fim daquela viagem, mas agora o que interessaria era chegarem ao destino final da viagem e o resto eram pequenos detalhes.

— Por que você fez isso Pierre?Você não precisa se sentir culpado por não ter o que fazer neste momento da viagem, seus serviços serão extremamente úteis no lugar onde vamos, mas agora a sua única função era ser a minha companhia e estudar os temas propostos.

Pierre teve um instante de lucidez e começou a chorar.

— Kelly você me perdoa, eu sei o que me deu, faz tempo que ele vinha me provocando, está certo que eu não deveria ter agido assim, mas eu não consegui me segurar.

— E o fato de estar agindo de forma agressiva e estranha, não pedirá desculpas por isso?

Pierre agora estava agindo defensivamente e iria se desculpar por tudo que Kelly viesse reclamar, poderia atacar também, para justificar suas atitudes, mas isso ele não fez. Quando Kelly propôs colocá-lo de volta no casulo de hibernação, ela esperava reações adversas de Pierre, o que não aconteceu.

Para ele seria cômodo ser colocado de volta em hibernação. No entanto para ela seriam vários anos vivendo sem carinho, sem afeto e sem sexo, somente com a companhia de um casal, que segundo relatos antigos era equilibrado, mas que agora agia de maneira extremamente desajustada, definitivamente não eram pessoas felizes.

Alem de todos estes aspectos negativos que Kelly deveria enfrentar durante aquele período em que ficaria acordada, havia também aquele sentimento ruim que frequentemente tomava seu peito, e a doutora Kelly não descobria de onde vinham aquelas sensações, ficava ainda mais intrigante quando ela se analisava e constatava que era a primeira vez, durante toda sua vida, que sentia aquelas emoções. O fato de estar sentindo saudades de casa não era o fator desencadeante daqueles sentimentos ruins, e disso ela tinha certeza, tanto que relatou em seu diário mais de uma vez.

Depois de ter conversado exaustivamente com seu marido, inclusive sobre as diferenças entre as passagens de tempo para ele, que hibernaria por quase dez anos e para ela, cuja passagem de tempo seguiria normalmente, a doutora Kelly segue com seu marido para a sala de hibernação, ela exitou alguns instantes, refletindo se não seria melhor fazer seu marido ir se desculpar pelo que fez ao Dimitri, mas devido ao clima, ainda muito pesado, desiste da idéia, e decide ela mesma pedir desculpas mais tarde, os dois continuam então sua caminhada para sala de hibernação.

Dimitri estava com sua esposa na cozinha, onde ela havia acabado de colocar um pequeno curativo no supercílio dele e Dimitri segurava sobre sua boca um saco de gelo.

Kelly quis saber de Dimitri.

— Tudo bem com você Dimitri?

— Você me pergunta se está tudo bem? Olha o que seu maridinho fez.

— Eu gostaria de pedir desculpas, em meu nome e em nome de meu marido. Eu sei que a atitude dele foi completamente errada, beirando a estupidez, mas eu gostaria de insistir, e que todos nós aqui estamos enfrentando uma situação crítica e adversa, temos que tentar nos manter unidos.

Bárbara que até aquele momento somente observava, interronpeu.

— Você colocou Pierre na hibernação?

— Sim, acredito que é o melhor a fazer no momento.

Os ânimos estavam mais apaziguados naquele momento e Dimitri acabou aceitando as desculpas de Kelly, antes de dormir porem, quando já estava deitado na sua pequena cama, ele refletia sobre como havia ficado à mercê de Pierre, submetido àuma sessão de pancadas, uma humilhação e o ódio voltou ainda mais forte do que antes.

A doutora Kelly, no seu relatório, escreveu: "Hoje aconteceu um fato extremamente negativo nesta nave, Pierre Stern, meu marido, aceitando a provocação de Dimitri Antonov, acabou usando da violência física contra ele num gesto lamentável. Eu posso afirmar que, apesar de conhecer meu marido há cinco anos, nunca havia visto ele agir desta forma. Todos dentro da nave ao acordarem, parecem que começam a agir de maneira estranha, com atitudes que não representam sua ações durante suas vidas na Terra. Tivemos um casal morto que aparentemente se suicidou, antes deste casal tivemos um outro casal com inúmeros relatos de brigas, mas como nos relatos feitos pelo primeiro casal não há menção à brigas, o que concorda com seus históricos da Terra. No segundo casal algumas brigas esporádicas são relatadas, principalmente no final do período do dez anos que ficaram trabalhando na nave. Este casal também possui uma ficha limpa, com histórico de vida bastante equilibrada, embora sejam novos e tenham pouco tempo de vida para apreciação e uma comparação. O tempo que estão longe da Terra deveria ser uma questão a se considerar, mas a percepção de tempo para os que ficam hibernando é diferente, eles não percebem o tempo passando durante a hibernação e portanto deveriam pensar estar o mesmo tempo do primeiro casal longe da Terra. Eu acredito que sai da Terra a dezoito meses e na realidade fazem décadas, o que nos leva a desconsiderar o tempo como fator agravante nestes surtos psicológicos e nos deixa com a distância de casa para ser analisada, será que ao nos afastarmos da Terra, ficamos propensos à atitudes más, à pensamentos maus, será que nos afastamos de Deus? Estas são minhas reflexões, feitas num instante de extrema canseira, eu não sei mais o que pensar, não consigo obter nenhuma conclusão mais significativa, estou desanimada. Quanto a meu marido gostaria de pedir ao capitão que relevasse o que ele fez, se for possível e se houver a necessidade de alguma punição, que ela seja branda. Por hora é só o que tenho a relatar, agora verei se consigo descansar um pouco".

Depois daquela briga tudo parecia ter voltado ao normal, isto é, Bárbara e Dimitri falavam-se somente o necessário e não mantinham relações sexuais, como já acontecia a mais de um ano. Kelly e Dimitri também não se falavam, apesar dela pedir com freqüência para conversar com ele, como uma profissional, mas ele não atendia. Certo dia a doutora Kelly perguntou a ele se guardava alguma magoa pelo que havia acontecido, ele disse simplesmente que não, logo após ela emendou outra pergunta.

— Dimitri você ainda não perdoou meu marido e me trata assim porque não consegue perdoá-lo, não é verdade?

Ele ficou sem saber o que falar por alguns instantes e depois disse.

— Eu não guardo magoas de você Kelly.

— Então por que você não vai às nossas reuniões? Eu procuro marcar sempre num horário no qual você já terminou todas as suas atividades e mesmo assim você não aparece.

— Eu não tenho tido vontade de conversar com ninguém.

— Mas é necessário, você está evitando até os nossos horários das refeições, quando nos reunimos todos juntos, fazíamos uma terapia de grupo e isto era muito positivo.

— Foi numa destas reuniões que aconteceu um dos fatos mais lamentáveis desta viagem, doutora Kelly.

— Mas agora não existe mais o Pierre, e você pode aparecer sem maiores problemas Dimitri.

— Verei o que posso fazer.

Seguiram então um para cada lado, a nave tinha poucas salas, havia pouca área para a tripulação circular, ainda assim Kelly ficava dias sem ver Dimitri.

Quanto a Bárbara, Kelly a via com mais freqüência, elas se conversavam mais, mas não era, de maneira alguma, uma conversa franca, também estas conversas não se estendiam muito, Kelly sentia que não havia confiança de Bárbara em relação a ela, então havia muita dificuldade de estabelecer confiança.

Os três tripulantes da Velox estavam vivendo conflitos internos extremados, principalmente Dimitri, que fazia crescer em seu peito, o ódio por Pierre, mas Bárbara e Kelly também procuravam motivos para sentir raiva, excetuando alguns motivos de lucidez, que eram mais raros em Verônica do que em Kelly, qualquer atitude que outra pessoa não concordava eram criticados no mesmo instante, atos banais, que em circunstâncias normais, não mereceriam nenhuma atenção, eram observados com olhares críticos severos, porem elas ficavam somente com as conversas, paravam quando viam que estavam cruzando a delicada e fina linha tênue entre uma pequena discussão e uma briga mais séria. Mas as tensões vinham se acumulando e talvez chegaria o dia em que elas fossem até as últimas conseqüências, como fizeram Pierre e Dimitri.

Dois meses se passaram desde que aquela briga deixará as pessoas despertas, dentro daquela nave, mais exaltadas e tensas do que antes, Dimitri porem, alem de tudo isso sentia uma raiva, que crescia e transbordava e ele pensava no quefazer para se vingar. As poucas conversas que teve com a psicóloga, doutora Kelly, durante esse período todo, não surtiu efeito.

O que fazer para se vingar? Este era o pensamento que ia e vinha na mente de Dimitri durante o dia todo. Ele havia decidido o que fazer, esperaria as duas mulheres irem dormir e então se vingaria daquele que outrora havia lhe humilhado diante de sua mulher.

Seu alvo era fácil, Pierre dormia num sono que mais aparentava um cadáver, pois com o baixo metabolismo e com a temperatura baixa, todos que vissem, não só Pierre, mas também os outros, diriam que eles estariam mortos. Portanto Pierre não ofereceria resistência alguma num atentado contra sua vida, mas primeiro teria que tentar enganar o computador, pois não queria deixar provas do crime que cometeria.

Desligar as câmeras da sala de hibernação seria fácil, mas deixaria registros no banco de dados do computador, Dimitri pensou então em reprogramar o computador para desligar os controles do casulo de Pierre, assim que Pierre morresse, ele voltaria com o programa antigo.

Depois que Bárbara e Kelly se retiraram para o período de sono diário, Dimitri se sentou diante do computador e começou com a tentativa de reprogramação. Dimitri deveria encontrar o programa de manutenção dos casulos e depois o programa específico da cápsula de Pierre. Mas apesar dele estar em posse do número do casulo, ele não possuía o código de acesso, ao verificar que necessitava do código de acesso para mudar qualquer sub-rotina daquele programa, Dimitri tem um surto de loucura e segue para a sala de hibernação, lá desliga os controles da cápsula de Pierre manualmente. Um alarme de alerta dispara dentro da nave e as duas mulheres acordam assustadas, e seguem rapidamente, na medida do possível, para a sala de controle.

— Computador, o que está acontecendo? — Pergunta Bárbara.

Se houvesse como fazer aquela pergunta antes, elas o teriam feito, mas para reduzir a massa da nave, reduziram drasticamente os acessórios, que segundo os engenheiros eram objetos supérfluos. A nave era limpa, como um apartamento de uma pessoa solteira, nem um local, exceto na sala de controles e na sala de hibernação, nos outros lugares não possuíam nem monitores, nem controles. Na sala de hibernação havia monitores portáteis que eram usados para verificação dos sensores em algumas partes da nave. Os filmes eram assistidos na sala de controle.

— O suporte à vida do casulo de Pierre Stern foi desligado manualmente por Dimitri Antonov. — Responde uma voz sintética e grave.

Kelly, que não havia se sentado, vira-se rapidamente e segue para a sala de hibernação, com Bárbara a uns metros atrás. Kelly pensava naquela dificuldade que tinha para se locomover, se fosse na Terra já teria chegado naquela sala.

Quando chegaram à sala de hibernação não havia mais o que fazer, o batimento cardíaco havia aumentado até níveis normais, mas a temperatura não aumentara, o sangue, ainda muito espesso, fizera estragos consideráveis em inúmeras artérias, inclusive no coração. Estes estragos não provocaram rupturas e hemorragias, pois a viscosidade do sangue não permitia que houvesse escape de sangue pelas paredes das artérias, mas as lesões em quase todos os tecidos eram consideráveis. A solução aplicada no sangue durante a hibernação, não permitia que ele se solidificasse com as baixas temperaturas, mas se tornava mais viscoso. Com o aumento dos batimentos cardíacos e da pressão sanguínea, os tecidos ficavam expostos à forças de atrito maiores e o principal órgão do corpo, o cérebro de Pierre, sofrera danos irreversíveis.

Ao chegar próxima à cápsula Kelly religa os aparelhos, mas o restabelecimento da funcionalidade dos aparelhos da cápsula de Pierre não foi o bastante para trazê-lo de volta. Kelly esperou um pouco de tempo e verificou que os sensores instalados sobre o corpo de Pierre não apresentavam sinais algum. Ela, já apresentando certo desespero resolveu tirá-lo da hibernação, mas agora respeitando os protocolos necessários, ao término de todos os procedimentos vários minutos haviam se passado e somando ao tempo que Pierre passara sem cuidados, devia estar com sérios danos ou até mesmo morto, pensava Kelly.

Assim que os sensores de temperatura apresentaram normalidade à doutora Kelly, ajudada por Bárbara, tentou a ressuscitação, mas já não havia tempo. O coração de Pierre voltara a bater por alguns instantes, mas parou depois de quarenta e cinco batidas, uma nova tentativa de ressuscitação, que durou cerca de quinze minutos, foi realizada, mas sem sucesso e Verônica implorou à Kelly.

— Ele não volta mais Kelly, pare.

Ela insiste um pouco mais com a massagem cardíaca e com mais duas descarga do desfibrilador e desiste. Imediatamente começa a chorar.

Bárbara não estava com vontade de consolar a companheira de viagem, mas não havia como se desvencilhar daquela formalidade, uma quase obrigação.

— Esses controles foram desligados manualmente. — Afirma Kelly com a voz saindo em meio a soluços. — E eu sei que fez isso, foi Dimitri, aquele desgraçado.

Bárbara agora se calara, como que se sentisse um pouco de culpa pelo que Dimitri fez, mas ela também estava com muito assustada com tudo aquilo, ela não podia acreditar que seu marido fizera algo tão horrível, que havia cometido tal atrocidade, Dimitri era dono de um coração bondoso, não faria mal a uma mosca, pensava Bárbara.

Kelly resolveu que deveria reanimar o capitão Almir, ele daria conta daquele problema, embora não conseguiria trazer Pierre de volta a vida.

— Bárbara você deve me ajudar, você conhece os procedimentos de reanimação dos casulos de hibernação, não conhece?

Kelly falava com raiva e sua mandíbula estava tensa, parecia não querer abrir para que as palavras saíssem, seus olhos estavam lagrimejados e sua voz apresentava um timbre diferente do habitual. Bárbara tinha certeza, nunca vira a doutora Kelly daquele jeito, ela que, apesar de todas aquelas situações de atrito entre todos, não perdera o equilíbrio em nenhum momento agora estava totalmente à mercê do ódio.

— É claro que conheço, por quê?

— Devemos acordar o capitão para ele decidir o que fazer.

Bárbara refletiu um pouco e concordou, sabia que deveria dar um pouco de privacidade à Kelly, seguiu então até o casulo do capitão Almir para reanimá-lo sozinha. Apesar daqueles sentimentos ruins que constantemente lhe incomodava e impedia de fazer gestos altruístas, naquele momento Bárbara voltou a ser como antes e gostava de ter aqueles sentimentos, embora tivesse com medo da situação. Ela tinha vontade de consolar e fazer algo em beneficio de Kelly.

O capitão Almir foi acordado e Dimitri havia desaparecido, as duas mulheres tiveram medo de procurá-lo, até Bárbara ficou com medo de estar cara a cara com ele, mas o capitão haveria de dar um jeito, ele saberia a quem recorrer naquela situação, talvez mais pessoas devessem ser despertadas e tudo acabaria bem, mas não para Kelly, ela estava desolada.

Meia hora se passara até que o capitão recobrasse a consciência e restabelecesse toda sua energia corporal.

Capitão, tivemos uma morte dentro da nave, Pierre, meu marido, foi assassinado.

Bárbara estava do lado de Kelly.

— Achamos que foi Dimitri, meu marido.

— O que aconteceu exatamente? — Pergunta o capitão.

Bárbara, que aparentava estar mais calma, conta tudo sobre a briga, sobre como os dois agiam antes da briga e conta também que os controles do casulo de Pierre foram desligados.

Ao ouvir o relato o capitão Almir, depois de alguns instantes de reflexão, pergunta.

— Mas Pierre não estava fora do sistema de hibernação?

Kelly explica então que o recolocou em hibernação depois da briga, pois deixar os dois acordados se cruzando a toda hora pelas acomodações da Velox, seria um convite a novas brigas.

— Você agiu corretamente Kelly, vocês olharam as gravações das câmeras da sala de hibernação? Se foi Dimitri o autor deste incidente terrível, deve haver registros que o incrimine.

— O senhor ainda duvida que tenha sido ele quem desligou o suporte de vida, o computador citou o nome dele quando deu o sinal de alerta? Observa Kelly.

— Vocês não me disseram isso antes, mas ainda assim devemos procurar a gravação, pois seria uma prova sem contestação.

As duas estavam muito nervosas para pensar na possibilidade do computador ter feito algum registro de Dimitri cometendo o crime.

— Não examinamos os registros, mas é muito provável que haja imagens dele cometendo esta atrocidade.

— A primeira coisa a fazer então é olharmos estes registros, depois tomaremos as devidas providências. Qual foi o horário que o alarme tocou?

— Fazem aproximadamente duas horas.

— Talvez um pouco menos. — Corrige Bárbara.

— Vamos perguntar ao computador e ver estes registros.

Qualquer perturbação no ambiente era considerado um evento interessante, e o computador tinha a capacidade de verificar a existência de perturbações com seus sensíveis sensores, esta era a parte da inteligência artificial que fora desenvolvida com extrema intensidade naquela máquina magnífica. Assim sendo, se alguém tivera mesmo a coragem de ter desligado o casulo de Pierre, o computador saberia e as gravações teriam sido feitas.

Lá estava, eles não acreditavam, ver aquele homem que parecia tão equilibrado cometendo aquele crime horroroso, e para Bárbara aquela sensação de que estava vendo outra pessoa e não seu marido era grande, parecia ainda mais estranho para ela, pois conhecia o modo bondoso dele agir.

Comprovada a culpa de Dimitri com aquelas provas irrefutáveis, restava decidir o que fazer com ele, tarefa esta sob responsabilidade do capitão Almir. Mas o capitão sabia o que fazer, iria colocá-lo no sistema de hibernação e depois convocaria um julgamento para Dimitri quando chegassem ao destino, se é que encontrariam condições de estabelecer uma colônia segura num daqueles planetas. Dimitri seria o primeiro a ser punido por um crime naquele novo mundo, tomara que fosse o único em muitos anos, pensava o capitão.

Agora restava outra questão, Dimitri deveria estar extremamente irritadiço, ele poderia oferecer resistência à sua custódia, o capitão teria que despertar alguém para ajudá-lo nesta tarefa, as mulheres, além de estarem nervosas, talvez não fossem capazes de segurar Dimitri, caso este agisse de modo violento. Ele acordaria Derick Marcus e Daniel Max Fargyson, cujos resultados dos trabalhos anteriores deixara o capitão Almir bastante satisfeitos. Porem não poderia demorar, pois estando Dimitri fora de si como estava, haveria o perigo dele colocar toda a missão em perigo, ele estava escondido atrás dos motores de íons da Velox, onde tinha acesso aos controles manuais de todo o sistema de propulsão.

O problema maior do capitão não era o que fazer com Dimitri, embora o ocorrido deixasse grandes traumas e uma perda humana, a terceira naquela épica viagem, o capitão estava preocupado com o fato de que todos que assumiam o comando da nave tinham atitudes violentas, sentimentos ruins e enfim não agiam de acordo com seus antecedentes. Quem colocar no comando da nave? Poderia colocar Derick ou ficar ele mesmo, mas esta decisão feriria as normas pré-estabelecidas, pessoas que já tivessem atuado no comando da nave, não poderiam voltar a fazê-lo, pois seria tempo demais para viver isolado, somente na companhia da esposa ou marido, e ainda o controle da missão queria todas as pessoas ainda jovens, quando chegassem ao novo mundo, a hibernação possibilitava essa condição.

Dimitri se levantou sem dizer nada, o capitão Almir informou-lhe que o colocaria em hibernação, quer ele quisesse ou não, e ao final da viagem ele seria julgado pelo crime que cometeu. Dimitri simplesmente balançou a cabeça em afirmativo e seguiu os outros homens até a sala de hibernação.

Agora o capitão teria que decidir o que fazer para substituir aquele casal, será que fora um erro deixar Kelly e Pierre compartilhar o espaço tão pequeno com Dimitri e Bárbara? O capitão estava ficando inseguro pensando nesta possibilidade, não, ele fizera o correto, já que o casal anterior que havia ficado cuidando da nave, tinha também entrado em conflito e cometido suicídio, então, eram outros os motivos que atormentavam os tripulantes da Velox e ele não poderia se culpar.

Esta constatação restaurou a paz de espírito no coração do capitão Almir, e ele focou sua atenção na decisão que deveria tomar, quem chamar para tripular a nave no próximo período de navegação? Bárbara também deveria voltar à hibernação e Kelly será que superaria aquela perda tão importante para sua vida? Definitivamente Kelly não poderia ser uma das tripulantes a comandar a Velox, por hora o melhor a fazer com ela, era colocá-la em hibernação, pois no final da viagem ela teria mais situações inusitadas para observar e sua curiosidade poderia se sobrepor ao sofrimento que estava sentindo, mas o capitão deveria ter uma conversa particular com ela antes disso.

Dimitri foi preparado para a hibernação pelo capitão, Derick e Daniel ficaram observando a certa distância, a despeito da escolta, não houve reação alguma de Dimitri, ele fazia tudo que o capitão pedia. Enquanto esperavam, Derick fez uma observação sobre os fatos que aconteceram naquela espaçonave.

— Daniel meu amigo, parece que à medida que avançamos para esse novo mundo as pessoas assumem atitudes mais agressivas, parece que estamos nos aproximando cada vez mais do mal. Será que o mal existe em intensidade mais forte longe da Terra?

Daniel não deu muita atenção a aquela observação, pois era ingênua demais, mas ainda assim ele registrou a frase na sua cabeça e teceu um comentário.

— Assim como existe cargas elétricas distintas, partículas que são criadas aos pares em condições de alta energia, com suas irmãs também com cargas opostas, existem também as forças do bem e do mal. As forças naturais moldam o Universo a sua maneira, estas forças sobrenaturais, se é que existem, também poderiam moldar o Universo, porem em um nível mais sutil e, portanto de difícil observação, se existiriam mais universos, e eu acredito que existam, estes estados de energia poderiam fluir de um universo à outro, inclusive, porque não, os estados de energias referentes ao bem e mal, poderiam estar saltando de uma dimensão a outra dependendo, para tanto, das condições necessárias para isso ocorrer.

Daniel era um cientista, mas tinha um sentimento de religiosidade, ele não era ateu como a maioria dos cientistas e era aberto a novas experiências, tanto no mundo espiritual como no mundo cientifico. Esta maneira de pensar trazia possibilidades incríveis para Daniel, embora trouxesse também descrédito, principalmente entre os cientistas.

O capitão chegou à sala de refeições onde também ficavam todas as provisões e onde estava Kelly, ela estava sozinha, já que Bárbara ficara ocupada com todas as tarefas que antes eram divididas entre ela e Dimitri, portanto Bárbara, que até momentos antes ficara fazendo companhia à Kelly, agora estava trabalhando sozinha.

— Tudo bem com você Kelly, você já aceita melhor os fatos agora?

— Como posso aceitar o fato de que meu marido tenha sido assassinado por um motivo tão fútil, numa viagem tão inusitada como esta capitão? Eu estou sentindo tristeza, mas também sinto muita raiva e ódio.

— Não faça isso Kelly, use o seu conhecimento para lutar contra estes sentimentos ruins. Quanto ao Dimitri, ele será julgado quando terminarmos a viagem. Agora eu quero que você vá até a sala de hibernação, lá o Derick e o Daniel lhe colocarão no seu casulo e você adormecerá, despertando num novo mundo com muitas outras perspectivas, anime-se minha amiga.

— Eu gostaria de ficar mais um pouco aqui capitão, até colocar a cabeça no lugar.

— Você é quem sabe, mas eu sinto que estamos num ambiente onde não existem meios de colocarmos a cabeça no lugar.

— É o senhor tem razão, vou seguir para a hibernação, não há mais o que pensar, devo encarar os fatos e seguir em frente.

O capitão seguiu Kelly até a sala de hibernação, queria conversar com Daniel, podia chamar Derick para tripular a Velox, pois este já tinha participado da viagem teste e conhecia bem a nave, mas podia convidar Daniel, este era voluntarioso e talvez quisesse aprender um pouco mais sobre a nave, ficando os oito anos acordado, tempo que faltava até outra dupla de tripulantes tomar seus postos. Para Daniel não seria difícil aprender tudo que precisava sobre a Velox. Ele era uma das poucas pessoas solteiras da nave, o que tornava um empecilho, pois uma pessoa sozinha na nave por um período de tempo tão grande, poderia ficar doente. Existiam na nave mais mulheres solteiras do que homens, pois estas poderiam ser fecundar com os óvulos congelados de inúmeros casais da Terra, estes óvulos estavam num canto da sala de hibernação. O capitão pensou em agraciar Daniel com uma destas mulheres, mas teria que haver consentimento dos dois e era difícil fazer apresentações com as mulheres adormecidas, e essa idéia logo desapareceu da cabeça do capitão.

— Daniel você gostaria de ser tripulante da Velox durante algum tempo?

— Por quanto tempo senhor?

— Bom, faltam oito anos para o término do período de Bárbara e Dimitri, então seriam todos estes anos.

— Capitão por que não diminuir o período para as pessoas ficarem servindo no trabalho de manutenção da nave? Digamos de dez anos para dois anos, eu acredito que todos a bordo da nave devessem participar, ficando dois anos cada pessoa, ou cada casal, este período torna-se bastante suportável, o capitão refletiu um pouco sobre aquela idéia e disse.

— Posso estipular este tempo e os que eventualmente não souberem fazerem as leituras nos controles da nave, poderão ser treinados novamente, acredito que com uma semana de treinamentos intensivos as pessoas possam estar aptas a lidar com todos os controles, e quanto a você Daniel, você aceitaria ficar um tempo nos controles da Velox?

— Claro que aceito, é uma obrigação da qual não devemos fugir, mesmo tendo que ficar todo o período, gostaria de ter algum tempo para refletir sobre tudo isso que está acontecendo.

— Ótimo, vou estipular dois anos o período para as pessoas trabalharem na Velox, e assim que terminarem as próximas duplas que já estão programadas nas escala de trabalho, vou fazer sorteios entre as pessoas que ainda não serviram. Acredito que com isso vamos diminuir os graves atritos que vínhamos tendo. Chegamos a quase metade da viagem, talvez mais quinze anos alcancemos essa marca, com períodos tão curtos vamos ter que repetir duplas na fase final da viagem.

O capitão Almir teria que deixar as novas normas e ordens devidamente publicadas e registradas, e explicar a causa de tais mudanças nos planos, explicar tais mudanças era essencial para evitar qualquer revolta de algum membro da tripulação. Tais procedimentos deviam ser tomados, pois ele não estaria presente quando as outras pessoas despertassem, e este foi o próximo ato dele. Quanto a Daniel, este foi levado por Derick para começar seu treinamento, havia muito no que lhe orientar, e caberia a ele e a Bárbara esta tarefa.

Em dois dias tudo estava terminado, Daniel aprendia rápido, e todas as orientações necessárias para o bom funcionamento da nave já estavam sob seu domínio, o capitão já havia preparado tudo para que não precisasse ser mais despertado e todos iriam, exceto Daniel, voltar à seus casulos de hibernação.

O capitão Almir ainda estava preocupado, pois não sabia como Daniel iria se comportar sozinho dentro daquela pequena nave, com compartimentos livres à locomoção tão reduzidos, em meio aquela imensidão do espaço. Então resolveu que teria que acordar alguém para lhe fazer companhia e ajudá-lo nas tarefas, se tinha que despertar alguém para fazer companhia a ele, que seja uma mulher, pensou o capitão. Anunciou sua decisão a Daniel, esse ficou surpreso, pois já estava acostumado a idéia de que ficaria sozinho, a principio Daniel o desaconselhou a fazê-lo, já que assim teria mais tempo para as suas reflexões, mas o capitão foi tão contundente e enfático que ele teve que aceitar a idéia.

Embora uma mulher fosse um estorvo, no que se refere às distrações que causam, principalmente aos homens solteiros que estão sem companhia a muito tempo como ele, e Daniel queria explicar, de modo lógico, o que estava acontecendo com as pessoas naquela nave e sendo assim distrações era o que menos ele queria, mas ainda assim ele ficou contente com a notícia. O contentamento de Daniel quase ficou aparente quando o capitão anunciou uma pequena concessão a ele, Daniel poderia escolher, dentre todas as mulheres solteiras, aquela que mais lhe agradasse, desde que não comentasse com ninguém.

— Quem sabe você também desperte interesse nela. — Comentou o capitão.

Daniel sentia-se um tanto quanto inconveniente olhando aquelas mulheres naqueles casulos dormindo um sono induzido e tão profundo que não tinham nem a chance de sonhar. Era como se ele invadisse a privacidade delas, embora quem tivesse de serviço na nave tinha amplo acesso a todos os casulos e poderia olhar a vontade, mas ninguém o fazia, pois era um retrato banal, os rostos de todas aquelas pessoas naquela moldura encapsulada e mantida a exposição por um material transparente sobre seus rostos, olhar fixamente para aquelas mulheres causava-lhe constrangimento, ainda mais acompanhado pelo capitão.

Ele olhou com bastante cuidado todos os rostos, mas não escolheu, pediu um tempo para pensar ao capitão, mais tarde retornou sozinho e decidiu, ela possuía um rosto angelical que se tornava mais evidente naquele sono, lembrava uma princesa dos contos de fada de sua infância, seu nome Patrícia Marconi Alaveira, assim que Daniel se interessou por ela, ele abriu seus arquivos no monitor da sala, soube seu nome, seus dados médicos e sua nacionalidade, ela era italiana da cidade de Nápoles, a mesma cidade de sua mãe e onde ele havia crescido antes de ir viver com seu pai nos Estados Unidos.

O cabelo de Patrícia estava longo e seu rosto, embora esmaecido pela baixa temperatura e pela pequena circulação sanguínea, não a deixava menos bonita, pelo contrário, aos olhos de Daniel ela era a mulher mais bonita da nave.

Patrícia foi despertada pelo capitão, que logo lhe informou no seu relatório que ela fora escolhida, num sorteio, para trabalhar na nave por um período de dois anos.

Todos foram, independentemente de suas formações, treinados para trabalharem na Velox, verificando os diversos sensores dos mais variados equipamentos, e eventualmente fazer alguns reparos e ajustes. É claro que a troca de algum equipamento essencial exigiria mão de obra mais especializada, e neste caso somente um pouco mais da metade de todos os tripulantes da Velox estariam aptos a fazê-lo. Até o presente momento não havia sido necessário fazer nenhuma troca de equipamentos, e se houvesse Daniel, com a posse das instruções, seria capaz de realizá-las. Já Patrícia, cuja formação era em biologia com especialização em botânica, não seria capaz de realizar algum procedimento mais complexo naquela magnífica nave, apesar de ter boa formação nas ciências físicas, sua habilidade prática era restrita. Tendo consciência destas condições, ainda assim, o capitão ficava tranqüilo por ter pelo um dos integrantes, a trabalhar no próximo período, capacitado a operar todos os procedimentos que eventualmente fossem necessários serem realizados dentro da Velox.

Os dias vieram, Daniel já tinha treinado Patrícia para lhe ajudar, ela, como uma boa aluna, aprendeu rapidamente, os dois nesta fase estavam se dando muito bem, havia brincadeiras e descontração, não fosse a timidez de ambos já estariam namorando. Porem vagarosamente as coisas iam mudando. Daniel começava a sentir desprezo por tudo a sua volta, ele que amava observar e pensar sobre a natureza nos mais diversos meios, agora via a sua curiosidade desaparecer, num mundo tão diferente e tão propicio a novas reflexões.

Patrícia, não notando que Daniel estava diferente, se insinuou a ele. Ela estava se sentindo triste, sem ninguém para lhe amparar, ficou surpresa com aquele sentimento que lhe tomava o peito, ela que já havia enfrentado tantas situações difíceis nas florestas tropicais da Terra ou em montanhas atrás de novas espécies de plantas, às vezes sozinha, se perguntava: "Será que o fato de não poder voltar é que causa esta angústia?" Patrícia se questionava sobre esta possibilidade, mas sabia que seria difícil aquela tristeza toda ser causada pela impossibilidade de voltar para casa, quando decidiu seguir na maior viagem do ser humano de todos os tempos, havia pensando muito bem no assunto e sua decisão tomada com bastante equilíbrio, portanto não podia estar triste por essa razão.

— Você deixou alguém especial na Terra Daniel? Você tem a intenção de arrumar uma namorada o mais depressa possível?

Ele estava tão entorpecido pelo ódio que nem notou as palavras de Patrícia, já não mais demonstrava qualquer interesse, como antes, por ela, sua pergunta negligenciada, acabou com pouca auto-estima que ainda lhe restava, ela que já estava deprimida, não conseguiria tornar-se equilibrada como era na Terra.

Quanto ao Daniel, num dos raros momentos de equilíbrio, escreveu seu último e mais importante relatório:

"Não posso considerar esta minha tese como definitiva, nem se quer posso prová-la, e assim considerá-la como verdadeira, mas o que é a verdade? Acredito que posso explicar as causas do que vem ocorrendo a bordo da Velox. Todas as civilizações da Terra, que tinham somente um deus para adorar, afirmavam e afirmam que ele está presente em tudo, em todo o lugar e que este deus é onipresente, pois bem, posso afirmar que Deus é o vácuo. O vácuo esta presente na Terra, em Marte e é claro, no espaço interestelar, é lógico que no centro da Terra ele estará menos presente do que na sua atmosfera, que por sua vez estará menos presente do que no vazio existente entre as estrelas. Mesmo em lugares onde a matéria é extremamente compactada, como no interior das estrelas, ainda assim existe o vazio entre as partículas atômicas, entre um elétron e núcleo do átomo ou entre os elétrons há o vácuo, e este espaço é enorme comparado com o tamanho das partículas atômicas. Por outro lado, quando se fala no mal, se associa o centro da Terra como local de sua morada, ou seja, é o lugar na Terra com menor presença de Deus e onde a matéria está mais compactada. Neste contexto, temos aqui uma nave com energia cinética maior a cada dia, sua massa relativa, isto é, sua massa para um observador olhando de fora aumenta juntamente com a energia cinética. Acredito que mesmo não havendo diminuição na quantidade de vazio dentro da nave, deve haver um distúrbio neste vazio com a presença desta massa relativa e o mal se instaura. Pela minha teoria sobre a origem das partículas que ocorre sob altas energias, proponho a existência de outros universos interagindo com o nosso Universo. Um deles seria formado por partículas e outro formado de antipartículas, da mesma forma que há a criação de pares partículas e antipartículas em altas temperaturas, ou seja, com alta energia. Quando existe uma alta energia cinética, forma-se uma ponte que passa por nosso universo permitindo que haja passagem de partículas de um universo ao outro ou de antipartículas no sentido contrário, neste caso a nave com alta energia cinética é a ponte. Mas em altas temperaturas existe a criação espontânea de matéria e antimatéria, nestas condições a ponte não existe, e assim que a partícula tenta atravessar de um universo ao outro ela cai no nosso universo, e imediatamente uma antipartícula tentando fazer o caminho inverso também cai neste universo. Já no processo de alta energia cinética, o fluxo de partículas e ou antipartículas pela ponte (nave) a torna virtualmente com maior massa. A Velox têm crescimento exponencial de sua massa, para um observador externo, em função da velocidade, este fato dá as condições necessárias à existência do mal, pois a matéria, embora de passagem, está cada vez mais presente na nave e em nossos corpos. Eu tenho agido de forma estranha, tratando Patrícia como uma inimiga, nunca senti estas emoções, para escrever este relatório tive que me obrigar a ficar sentado por horas, procurando inspiração, foi um trabalho muito penoso, mas que precisava ter sido feito, pois já vinha adiando a dias, tinha todas as idéias formuladas, mas não conseguia equilíbrio emocional para fazê-lo. Embora não tenha tido vontade de fazer nenhuma das minhas obrigações aqui na nave, elas são mais simples e consigo fazê-las com mais facilidade, mas mesmo estas tarefas mais simples tenho tido muita indisposição para realizá-las, tenho mais um ano e meio de serviço nesta nave, não sei se suportarei todo este tempo nestas condições, não sei se Patrícia aquentará, ela está muito abatida, não tenho agido direito com ela, mas não consigo agir de outra forma. Espero que todos aceitem estas minhas conclusões, ainda não tenho como prová-las, mas há muitas evidências que indicam ser possíveis estas teorias, portanto fica aqui meu registro. Por enquanto é tudo, irei transmitir este relatório para a Terra, embora tenho certeza que irão ridicularizá-lo e minha credibilidade estará, mais uma vez, sendo questionada, minha esperança está nas pessoas daqui de dentro da Velox, somente quem está passando por estas dificuldades, tem reais condições de dimensionar tais problemas e assim dará atenção as minhas idéias."

Estes momentos em que Daniel passou escrevendo seu principal e derradeiro relatório foram os últimos em que ele conseguiu manter o controle sobre seus sentimentos, ele não parava de sentir raiva de tudo e de todos, considerava como certa a causa de tais sentimentos, mas ainda assim não conseguia combatê-las. Quanto a Patrícia ele não sentia nenhuma solidariedade por ela, ainda que a visse sofrendo pelos cantos.

Patrícia tinha muita tristeza e às vezes sentia vontade de esganar Daniel por conta do que fizera com ela ao deixá-la falando sozinha, mas sentia raiva dele, não só por este fato, mas por ele estar presente. Ela não podia externar estes sentimentos e ficava mais abalada ainda.

Noutras condições e em outros tempos o descaso de Daniel seria como uma gota caindo na imensidão do mar, as ondulações se propagariam por alguns instantes e desapareceriam exponencialmente, assim se comportariam os sentimentos ruins que Patrícia sentia por ele, mas nestas condições não havia como a raiva se dissipar, e ela nutria estes sentimentos com todo o seu corpo.

O tempo passava lentamente, mesmo quando os dois estavam ocupados, Daniel pensou consigo mesmo, já que quase falava com Patrícia somente o necessário. "O tempo devia passar, para um observador de fora, mais lentamente, mas não para quem está aqui dentro". Ele sabia que aquela medida de tempo a qual se referia era psicológica, não havendo, portanto relação com o tempo real a qual a relatividade geral faz referência, às vezes ele conseguia organizar suas idéias e ter pensamentos como estes, ainda que improdutivos Daniel via neles uma espécie de diversão, embora os pensamentos positivos fossem raros, ele gostava de manter seu cérebro sempre trabalhando, o que o levava para mais sofrimento e sentimentos de raiva.

A Velox estava prestes a ter seus motores desligados, e deste ponto em diante a nave seguiria por inércia, com uma velocidade constante. O incremento da velocidade, por unidade de energia fornecida aos motores, estava se tornando muito pequena e o desperdício de energia fazia-se presente. Este fato foi constatado pelos arquitetos da missão e o planejamento havia determinado o desligamento dos motores quando a velocidade atingisse cento e noventa mil quilômetros por segundo, faltavam poucos dias para essa marca ser atingida, embora ela se aproximasse cada vez mais lentamente, já se sabia a hora exata dela ocorrer, e os técnicos do planejamento da missão haviam errado por poucas horas, na realidade duas horas e trinta e três minutos.

A operação era toda automatizada, o computador faria todo o trabalho, restava a Daniel e Patrícia a supervisão da tarefa, eles foram lembrados da manobra uma semana antes e novamente um dia antes, faltando uma hora para o desligamento dos quatro motores o computador emitiu novamente uma mensagem pelos auto falantes da Velox:

— Senhores os motores de íons da Velox serão desligados em cinqüenta e nove minutos.

Nos próximos anos a nave seguiria sua viagem sem a pseudogravidade que deixava os corpos em seu interior com algum peso. Embora este peso fosse muito menor do que o peso do mesmo corpo na Terra, ele tornava a viagem menos desoladora, a irritabilidade de ambos tripulantes poderia ser agravada com este novo quadro que se avizinhava, nem Daniel, nem Patrícia tiveram discernimento suficiente para prever as dificuldades destas novas condições. Alguém observando de longe acreditaria ser melhor assim, pois antecipar dificuldades naquelas condições de extremo desequilíbrio emocional que os dois tripulantes vinham enfrentando, causadas por algo que, a princípio era desconhecido, mas que Daniel achava ser possível explicar, poderia deixá-los ainda mais desequilibrados, pendendo a balança para a hipótese daquela missão ser completamente mal sucedida e matando a todos dentro da nave.

Se o capitão Almir soubesse de fato como aqueles dois tripulantes vinham se sentindo e o que eles poderiam vir a fazer, sob aquelas condições, ele tomaria algumas providências para que não colocassem a missão em perigo. A melhor atitude que o capitão poderia tomar, a esta altura seria por todas as pessoas em hibernação e assim deixar todos os procedimentos necessários à navegação sob responsabilidade do computador, alguma eventualidade como um defeito de algum equipamento ou algo que necessitasse da intervenção humana, o computador poderia despertar alguém especializado na área para a substituição da peça. Mas agora o capitão estava hibernando e nem Daniel, nem Patrícia seriam capazes de despertá-lo e informar o que de fato estava acontecendo.

— Contagem regressiva para o desligamento dos motores: dez, nove, oito, ..., zero.

Havia algumas coisas caídas no chão, um pedaço de papel, uma caneta, esta situação não era aceitável nos primeiros anos de viagem, elas começaram a flutuar devido ao pequeno baque que ocorreu no instante que cessou a força que impulsionava a nave. Se os dois tripulantes de serviço não tivessem acomodados em suas poltronas na sala de comando, eles também seriam jogados para cima e flutuariam. Todo o procedimento não demorou mais do que dez minutos e Daniel disse apenas a frase:

— Todos os sistemas estão em ordem.

Patrícia confirmou em seu monitor, e de fato os motores que preocupavam a todos os membros da missão estavam perfeitos. Cabia a um dos membros da equipe, mandar o relatório para a Terra, Daniel não se manifestou, muito pelo contrário, depois de pronunciar aquelas poucas palavras retirou-se, com uma dificuldade ainda maior de se locomover, tinha pouca intimidade com a gravidade zero, pois somente o pouco tempo que transcorreu no caminho da Lua até a Velox, sentiu aquela sensação.

Havia muita condensação formando-se sobre as janelas, um dos recicladores de ar deveria estar com defeito, nem Patrícia, nem Daniel notaram tal fenômeno, porem antes que eles vissem as leituras dos sensores ou a condensação sobre aquelas janelas, o computador emitiu um alerta sonoro, não que aquela umidade toda fizesse mal às pessoas que respiravam o ar de dentro da Velox, mas poderia, em algum aspecto danificar seriamente os equipamentos eletrônicos. Daniel estava apto a descobrir o problema, ainda mais que o computador listou os prováveis problemas com a unidade de reciclagem de ar num monitor na sala de controles, mas ele foi realizar a tarefa com extremo pouco caso, reclamando de tudo e de todas as barreiras que encontrava para realização de sua tarefa, em outros tempos Daniel faria aquele serviço com toda a alegria e se satisfaria com os resultados positivos que obtivesse.

Naquela sala cheia de controles, com placas de circuitos integrados amostra, Daniel sabia exatamente aonde ir, embora aquela configuração de equipamentos espalhados aleatoriamente, que a princípio pareciam bagunçados, mas que estavam arrumados de forma bem engenhosa e ocupando o menor espaço possível dentro da nave, causasse nele uma irritação, que se conseguisse avaliar conscientemente este sentimento, entenderia como não apto a realizar a tarefa, mas nem isso Daniel conseguia fazer. Mesmo com todas aquelas dificuldades, ele realizou a tarefa a contendo.

Quando Patrícia interrogou Daniel sobre os procedimentos realizados na máquina que reciclava o ar, se tinha sido bem sucedido na missão, ele foi extremamente rude em sua resposta. Ela, porem não deixou por menos e respondeu a altura.

— Eu cuido do meu trabalho e te intero de tudo, quando é necessário e quando não é, você faz o seu e nunca me diz nada, mesmo quando as coisas são importantes como agora.

A observação sóbria de Patrícia teve um efeito benéfico nela, pois ela queria explodir e xingar Daniel, mas se conteve. Depois teve alguns momentos de paz o que não durou muito tempo.

Daniel não respondeu ao desabafo dela, mas ficou com a consciência pesada, ele vinha se sentindo daquele jeito há muito tempo, tratava Patrícia mal, odiava a tudo em sua volta, depois se auto penitenciava, tinha pensamentos terríveis depois se arrependia. O problema é que ele não podia controlar aquela força maligna, e o mesmo poderia se dizer de Patrícia, ambos agiam de forma agressiva e maldosa, a força que os empurrava para a maldade não estava interessada se sofriam ou não, talvez até quisesse o sofrimento permeando por entre a mente das pessoas.

As palavras ditas por Patrícia, de inicio causaram certa comoção em Daniel, este sofrimento, porem transformou-se em mais ódio e ele não podia mais suportar todo aquele rancor. Patrícia, por sua vez também alimentava seu ódio com tudo que Daniel fazia, pelo bem ou pelo mal, mas este ódio crescia mais lentamente, às vezes ela tinha vontade de esganá-lo, mas dificilmente transformaria aquelas vontades em algo concreto.

A nave jazia nos seus cento e noventa mil quilômetros por segundo, tudo estava indo bem, não fosse o rancor sentido pelo casal que agora comandava a Velox, se estivessem hibernando como os outros, o computador poderia proceder todas as manobras que se fizessem necessário e manter a nave em funcionamento, ela passaria pelo tempo e espaço a qual viajava, chegando ao seu destino ilesa, cada procedimento mais complexo que fosse fazer, o computador poderia despertar alguém para lhe auxiliar, e se fosse necessário a manutenção em algum equipamento, também algum técnico deveria ser despertado para realizar tal manutenção, mas como a única pessoa que poderia e deveria tomar tal decisão era o capitão, que hibernava com noventa e seis por cento da tripulação, então a missão seguiu desta forma, com grande possibilidade de ocorrer um incidente.

No dia seguinte a discussão com Patrícia, Daniel não apareceu na sala de refeições para realizar seu desejum na companhia dela, situação que não era inusitada, pois somente nos primeiros dias é que os dois comiam juntos, o que era estranho porem estava acontecendo na sala de hibernação. Daniel estava abrindo os casulos, que mantinham as temperaturas dos corpos próximas ao zero graus Celsius, se a temperatura do corpo subisse depressa, sem os devidos cuidados, era quase certo que os corpos sofressem uma parada cardíaca e seria difícil ressuscitá-los, ele já havia aberto metade dos casulos quando o computador fez a leitura dos sensores dos primeiros corpos e emitiu um alerta na sala de controle.

— Alguns corpos estão com as temperaturas próximas a nível crítico.

Patrícia levantou-se o mais rápido possível e seguiu para a sala de hibernação, mudando seus paços mais depressa que seus músculos podiam suportar, puxando o pé que estava atrás, grudado no velcro e mudando-o para frente, se conseguisse correr correria, mas nem andar rápido era possível naquelas condições.

Quando ela chegou à sala de hibernação pode ver que quase todos os casulos estavam abertos, somente seis, estimou ela, estavam fechados.

— Pare Daniel, não faça isso.

Ele a encarou, Patrícia pode ver nos olhos dele algo demoníaco, pareciam duas brasas que se dispunham a manter dois círculos negros, como fuligem, sem brilho, bem no centro, não, aquele definitivamente não era mais Daniel, Patrícia teve raiva, depois a indignação com o que viu, foi dando lugar ao medo, ele deixou de fazer o que estava fazendo e começou a mirá-la. Ela pode ver em seus olhos algo maligno, não ficou com medo somente do que ele podia fazer, mas estava com medo também daquela força do mal que tomava seu corpo e sua mente lentamente. "Será que estarei agindo assim daqui a pouco?" Patrícia teve tempo de pensar rapidamente nesta possibilidade, antes que voltasse interceder pelas pessoas indefesas ali presentes.

— Você não pode fazer isso.

Daniel não disse nada e voltou a encará-la, tirando a atenção dos últimos casulos ainda fechados. Patrícia passou de simples inquisitora à potencial vítima daquela situação, de repente ela se viu no meio do nada, indefesa e sozinha, ela se virou e começou a fugir se ele a seguisse até a sala atrás dos motores, onde ficava o centro nervoso da Velox, teria uma chance de despistá-lo entre aqueles corredores estreitos, então poderia retornar à sala de hibernação e tentar colocar os casulos em ordem novamente. Apesar de toda a pressão que sofria, pela perseguição que começara e pelos sentimentos ruins que a cada instante tomava conta dos seus pensamentos, Patrícia mantinha certa esperança, embora não conseguia, naquele momento, vislumbrar todo o grave cenário que se abria diante de seus olhos.

A sala para onde estava indo, possuia dois corredores longos com cerca de cinco metros de comprimento, os corredores perpendiculares era estreitos, permitindo a passagem de uma pessoa de cada vez e alguns deles avançavam alem da parede, havia cinco destes corredores, quando Patrícia chegou nesta sala, ela procurou ficar no primeiro destes corredores perpendiculares, lá ela poderia ver Daniel chegando, e com sorte poderia dar a volta pelo lado oposto e chegar à porta enquanto ele se aprofundasse pela sala. Ela poderia fechar a porta e lacrá-la, quebrando o painel de controle e causando um curto circuito nos comandos que abriam e fechavam a porta. Patrícia, portanto, não estava com sua mente tão dispersa assim, ela conseguiu planejar toda sua estratégia, apesar do medo que vinha sentindo, pensou ela: " Incrível, o medo deve ter dissipado um pouco aqueles pensamentos ruins que vinham à minha cabeça". Seu plano tinha que ser bem sucedido, pois não sabia o que Daniel poderia fazer com ela se a apanhasse.

Patrícia ficou bisbilhotando a porta por entre duas placas de circuitos encaixadas horizontalmente no bloco central entre os dois corredores. Assim que Daniel entrou na sala ela se preparou para andar o mais rápido que pudesse, se ele viesse pelo primeiro corredor, ela daria a volta pelo segundo e se viesse pelo segundo corredor, ela seguiria pelo primeiro. Daniel entrou na sala, deu uma olhada pelo segundo corredor e seguiu pelo primeiro.

A penumbra daquela sala permitia ver somente a sombra dele se aproximando. Para não fazer barulho ela retirou as sapatilhas, de modo a que seus pés não grudassem na superfície com velcro do chão, apesar de ter, deste modo, mais dificuldade de caminhar, ela preferiu assim a ter sua posição denunciada. Com toda a dificuldade que uma pessoa tem de se locomover em ambiente de gravidade zero, Patrícia foi agarrando-se aos painéis com todo o cuidado, com suas sapatilhas colocadas na cintura, seguras pelo elástico da calça. Ao passar a porta apertou um botão do painel e ela se fechou, como uma porta de um elevador. Patrícia arrancou o painel da parede, como muitos equipamentos da nave, aquele era também somente encaixado, evitando o uso de parafusos e partes metálicas, levava a uma menor massa final da Velox. Ela ao invés de causar um curto, resolveu apenas arrancar os dois fios do interruptor da porta. Depois ela se abaixou, agarrando-se a parede para calçar as sapatilhas, quando levantou-se, deu de cara com a janela da porta que acabara de lacrar, uma figura apareceu, tinha o formato do rosto de Daniel, mas não era ele, parecia uma face desprovida de vida, que recebia energia para se locomover de alguma força maligna que estava longe do entendimento e compreensão dos homens. Patrícia, ao ver aquela figura, deu um salto para trás, ela virou-se rapidamente, pois sua missão ainda não havia terminado, seguiu para a sala de hibernação, toda aquela ação e o medo de Daniel, havia tirado aquela angustia do peito dela, tinha que lidar com o medo, mas estava conseguindo manter o equilíbrio e administrar os novos sentimentos que surgiam diante dela, estava vendo as coisas com mais clareza em relação ao que acontecia antes.

Quase meia hora havia se passado desde que o computador dera o alarme sobre a abertura dos casulos, as temperaturas dos corpos deviam estar próximas ao limite de segurança. Assim que chegou a sala de hibernação, ela foi fechando casulo por casulo, os controles não foram alterados, de modo que não foi preciso acertá-los, depois que terminou de fechar todos os casulos, Patrícia foi ao monitor e ordenou um comando ao computador.

— Computador, quero as respostas vitais de todos os tripulantes hibernados.

À medida que o computador listava todos os resultados, de todos os sensores, Patrícia sentiu um calafrio descendo pela sua espinha, todas as pessoas que tiveram seus casulos violados não apresentavam sinais vitais aparentes, via-se uma discrepância significante quando comparava-se os sinais vitais das cinco pessoas que não tiveram seus casulos abertos. A partir daquele instante ela não sabia mais como agir, para tentar a ressuscitação os corpos precisariam estar com a temperatura mais alta, e como ressuscitar todas aquelas pessoas? Patrícia nem sabia se aqueles corpos seriam capazes de voltarem à vida, ela ficou sem ação e sabia que quanto mais tempo demorasse para tentar algo, menos possibilidade de êxito teria, assim seguiu sem fazer nada.

Aquela atitude de estagnação traria mais sofrimento à Patrícia, pois o sentimento de culpa se somaria aos sentimentos ruins que vinha tendo, ela estava sentada em frente ao monitor da sala de hibernação, quando de repente sentiu uma mão tocando seu ombro, assustada, ela olha rapidamente e se depara com Daniel. "Como ele conseguiu sair daquela sala"? Pensou ela numa fração de segundo. Uma passagem de um duto de ventilação, que ele ficou conhecendo quando estudou as plantas da nave, ligava a sala que estava preso com a sala de hibernação, este duto dava passagem a um homem de pouco peso. Patrícia ficou petrificada de medo, mas conseguiu ter uma reação, levantando-se rapidamente, como havia a poltrona entre os dois, ela pode se afastar dele alguns paços e seguiu até a porta com ele atrás, agora não daria tempo dela trancá-lo na sala de hibernação e nem podia fazer isso, pois Daniel mataria os outros. Ela seguiu até a sala de comando e pediu que o computador trancasse a porta, é claro que seria uma medida paliativa, visto que qualquer um dentro da nave poderia reverter este comando, mas esta atitude daria algum tempo para ela. Naquele desespero todo, Patrícia pensou em uma alternativa drástica, pediu ao computador que abrisse a escotilha e despressurizasse a nave, mas não a sala de comando. Portanto o computador não poderia abrir aquela porta antes de cumprir a segunda ordem. Porem aquela ordem vinha seguido de parâmetros que o computador entendia como conflitantes, pois se abrisse a escotilha mataria um homem.

— Se abrir a escotilha Daniel Max Fargyson morrerá.

Patrícia lembrou-se onde ficavam os comandos manuais da escotilha, o botão que a abria possuía uma válvula de segurança, ela tinha que desativá-la antes de prosseguir com o plano, pois foi o que fez, em menos de cinco segundos desligou a válvula e para apertar o botão fez uma pausa, pensou se no momento de apertar aquele botão, Daniel abrisse a porta, mas ele estava sem presa, pois sabia que Patrícia não podia fugir mais dele. Estava olhando para a porta prestes a ordenar que o computador abrisse a porta da sala de comandos quando sentiu um tranco fortíssimo sobre seu corpo, o ar que seguia para a escotilha de saída, que ficava na sala de hibernação, arrastava seu corpo e o jogava na direção daquela sala. Daniel bateu o seu ombro no batente da porta e os pés bateram contra o outro batente, ficando a maior parte do seu corpo pressionado contra o vão livre da porta. Ele estava condenado e mais alguns instantes toda a nave, exceto a sala de comando, estaria despressurizada, inclusive a sala que Patrícia havia lacrado, ela teve um momento de preocupação, pois não conhecia direito a arquitetura da nave, e não poderia ter certeza se estava em segurança ali, assim como tinha uma ligação entre a sala de hibernação e a sala localizada atrás dos motores da Velox, poderia haver outra ligação entre a sala de comando e a sala de hibernação. Mas ela correu para verificar os sensores de pressão de todos os compartimentos da nave e ficou aliviada quando, no monitor, verificou queda acentuada de pressão em toda a nave, exceto ali onde estava.

Outra preocupação lhe ocorreu, será que os casulos de hibernação suportariam a pressão? Esta preocupação não levava em conta somente a esperança que ela tinha de ressuscitar aquelas pessoas, mas também considerava os cinco casulos que mantinham as pessoas vivas.

Mudando para a tela que mostrava os sensores dos casulos, Patrícia pode ver que sua preocupação não tinha fundamento, era um zelo exagerado, desta forma ela voltou a raciocinar, de modo a traçar um novo plano, pensou no tempo que deixaria a escotilha aberta, resolveu que cinco minutos bastariam, e o mais importante, o que fazer para tentar salvar aquelas pessoas, também teve uma idéia de como agir, iria tentar, inicialmente, ressuscitar o doutor Julio Dantas Filho, afinal ele possuía mais capacidade técnica para agir sobre aquelas condições.

Assim que selou a escotilha, depois dos cinco minutos que havia estipulado como tempo ideal para que Daniel não fosse mais um perigo, ela pressurizou novamente a nave, usando os cilindros de ar que foram levados como reserva de segurança. Quando abriu a porta da sala de comando, ficou prevenida para alguma surpresa que poderia encontrar, mas lá estava o corpo de Daniel flutuando próximo à porta da sala de hibernação, apesar da cena horrorosa que se apresentava diante dos olhos dela, sentiu-se aliviada, seguiu em direção às cápsulas para dar procedimento aos seus planos, já havia passado mais de quarenta e cinco minutos desde que os casulos foram abertos, mas ainda assim ela mantinha alguma esperança. Diante do casulo do doutor Julio, ela realizou os procedimentos como se fosse despertá-lo da hibernação, aquecendo seu corpo, usou o desfibrilador para tentar fazer o coração dele voltar a bater, depois de varias tentativas desistiu e começou a chorar em desespero, finalmente ela tomou a decisão de acordar os outros para lhe ajudar.

Em meio a todo caos causado por aquele homem, que agora tinha seu corpo flutuando, sem vida a alguns metros dela, Patrícia resolveu olhar a lista novamente e verificar quem eram as pessoas que sobreviveram ao ataque. Com um comando de voz, ela pediu ao computador que listasse os nomes e as respectivas fichas técnicas de cada um dos cinco membros com sinais de vida. Apareceram os nomes de Derick Marcus, Gisele Mautner, Pedro Demétrio Villar, Martha Zappan e Karine Mayer Land. Os dois casais e Karine foram salvos da fúria vazia de Daniel, por estarem no final daquela fila, se tivesse mais tempo, ele também teria violado os seus casulos.

Karine Mayer Land era engenheira de sistema, com especialização em tecnologia da informação. Com todo o conhecimento adquirido pela humanidade, guardado no banco de dados daquele magnífico computador, uma pessoa com esta formação abordo da Velox era imprescindível, embora o computador pudesse varrer os seus dados em questão de segundos, as perguntas à máquina tinham que ser feitas de maneira correta, assim a presença de Karine naquela missão era muito importante. Ela era nascida na Austrália, tinha deixado muitos amigos por lá, mas dentro da Velox não tinha feito muitas amizades, apesar de ter conhecido quase todos os tripulantes antes da viagem, na Lua. Este fato era natural, pois o reduzido tempo de convívio entre todos, não dava oportunidades de fazerem amizades, e isto era uma constante entre quase todos os tripulantes. Não ter amizades com ninguém, tornava a solidão mais dramática, principalmente entre os solteiros, como Patrícia e Karine. As duas não consideravam esta barreira tão importante assim, elas se preocupavam mais com a saudade que sentiriam de casa, pelo menos até antes da viagem, Patrícia já havia sofrido demais, e agora tinha certeza de que a solidão lhe pesava nos ombros, mas esta solidão era somente um pretexto a mais para sofrer com o ambiente que aquela velocidade proporcionava à todas as pessoas conscientes dentro da nave. Se Karine permanecesse fora dos casulos de hibernação durante muito, com certeza ela sofreria do mesmo mal.

Patrícia verificou nos arquivos que Gisele Mautner, mulher de Derick Marcus, era médica, sua esperança se renovou, resolveu que iria sim desperta-los a todos, para pensarem juntos o que fazer, a doutora Gisele, com certeza, teria maior discernimento de como agir em relação a aquelas pessoas que já eram consideradas mortas pelo computador. "Será que as baixas temperaturas permitirão que estas pessoas sobrevivam, com a baixa oxigenação do cérebro?" Pensou Patrícia.

— Já chegamos? — Perguntou Gisele, a primeira a ser despertada.

— Ainda não, temos um grave problema e preciso de ajuda.

— O que de tão grava aconteceu?

— Calma Gisele, não fique inquieta, vou lhe contar tudo, mas mantenha a calma.

Gisele foi ficando cada vez mais ansiosa, mas Patrícia não disse nada a ela, e dentro de poucos minutos os outros também já estariam despertos, assim contaria a todos de uma só vez. A última a acordar foi Karine, quando esta já estava consciente, embora ainda um tanto quanto zonza, Patrícia pôs-se a contar todo o ocorrido, todos ficaram atônitos e desorientados, e não era para menos, acordar de um sono longo como aquele e ficar diante de uma situação desastrosa como aquela.

Gisele já estava mais atenta, levantou-se com toda a dificuldade que a falta de gravidade lhe impunha e caminhou para o casulo mais próximo, nos dez minutos seguintes fez os mesmos procedimentos realizados com o corpo do doutor Julio e, assim como ela, não conseguiu êxito algum. Estavam agora sozinhos caminhando para um mundo novo do qual não faziam idéia de como era e estavam mais distantes de qualquer ponto alcançado pelo homem até então, o sentimento de desamparo era enorme, os primeiros navegadores do século quatorze e quinze, não teriam ficado tão desesperados diante do desconhecido, do abismo marinho que esperavam encontrar, agora a situação era muito mais complexa e necessitava de atitudes mais complexas baseadas nas ciências e na sensatez, embora a bordo daquelas naus estavam os mais importantes avanços tecnológicos da época. Depois das tentativas frustradas de ressuscitação daquele corpo já sem vida, Gisele olhou nos olhos de Derick e então correu os olhos por todos os outros que a rodeavam.

— O que vamos fazer agora? Perguntou ela com a voz um tanto quanto abalada.

— Vamos retornar a Terra. — Sugere Patrícia, a pessoa mais desesperada dentre todos os seis.

— Se começarmos a desacelerar agora, vamos inverter nosso sentido a apenas alguns anos do nosso destino, eu proponho que continuamos e façamos, ao invés de uma viagem de colonização, uma viagem de exploração. — A voz de Pedro estava mais serena.

— Eu concordo. — Foi o voto de Derick. — Proponho que todos nós entremos em hibernação, assim anulamos esse estranho fenômeno, esta anomalia, que acontece com as pessoas deixando-as más. Nos trajetos críticos, como quando serão ligados os motores da nave dois de nós seremos despertados e acompanharemos o processo.

— Podemos programar o computador para nos acordar. — Conclui Pedro.

Gisele e Martha também acabam concordando com a idéia, Patrícia ficou isolada com seus planos, mas acaba aceitando o fato de ser voto vencido. Aquela decisão quase unânime e sensata trouxe certo alivio a sua aflição, todos aqueles rostos novos e ter com quem conversar, também acabaram aliviando um pouco sua dor e a raiva que vinha represando.

Depois da limpeza da nave, colocaram o corpo de Daniel num dos casulos vazios e abaixaram a temperatura, o sistema de refrigeração dos casulos não usava energia, ele era somente menos isolado do meio externo, do que o restante da nave. Dentro do interior dos casulos podia-se chegar a quinze graus negativos com facilidade. Fizeram a manobra de virada da nave em cento e oitenta graus, esse procedimento levou vários dias, pois tinham que verificar se a direção, depois da manobra estava correta.

Karine ajudada por Pedro, programou os computadores, de modo que acordassem as pessoas do casulo noventa e quatro e também do noventa e cinco, quando os motores fossem religados. Esta seria a manobra mais delicada realizada pelo computador desde a operação de inversão de cento e oitenta graus da Velox. Observando no protocolo de programação e funcionamento dos motores da nave, eles obtiveram o tempo que faltava para tal procedimento e cronometraram o despertar das duas pessoas com este relógio, em cerca de doze horas antes. As pessoas que acordariam eram Derick e Pedro, que já tinham se apresentados como voluntários, programaram também para despertar, de dez em dez anos, outras duplas, que iriam verificar todos os equipamentos da nave, numa manutenção de varias horas, os relatórios do computador também seriam lidos, na busca de problemas que por ventura pudessem aparecer nos próximos anos.

O computador possuía um protocolo de atuação para despertar as pessoas em hibernação, quando não detectasse ninguém na nave. Este protocolo foi desativado e um outro foi inserido no lugar. Ele deveria acordar a todos se algum problema grave ocorresse na Velox. Um relatório do ocorrido foi feito e mandado para a Terra, embora os terrestres fossem receber a mensagem muitos anos depois, quando eles chegassem ao novo mundo, talvez já estivessem de posse da resposta.

Deste ponto em diante nenhum problema grave ocorreu, a temperatura do interior da nave foi abaixada para perto de zero graus Celsius, de modo a diminuir o consumo de energia, a temperatura baixa também diminuía a chance de problemas os circuitos integrados do computador que não parava de trabalhar, registrando imagens com os telescópios, enviando-as para a Terra, fazendo cálculos astronômicos, analisando estruturas estelares não observadas da Terra e outras atividades corriqueiras, como a manutenção dos equipamentos da Velox.

O tempo passou rápido, todos os protocolos inseridos no computador foram obedecidos, a máquina, por não possuir sentimentos humanos, como amor, ódio, tristeza, alegria, não sofria da síndrome da alta velocidade, batizada por Daniel, em um de seus relatórios. As duplas Derick e Pedro mais Gisele e Martha foram acordados da hibernação, por duas vezes, durante o período final da viagem, mas Patrícia e Karine foram tiradas da hibernação somente uma vez. A atuação como observadores nos procedimentos mais delicados da missão, era algo visto como necessário e ninguém recusou à ficar alguns dias acordado olhando os instrumentos para ver se corria tudo como planejado, em todos estes procedimentos não tiveram que fazer nenhuma interferência e o computador já era tido como o melhor já construído pelo homem. Aquele incidente ocorrido, quando o computador retirou todo mundo da hibernação, embora devesse acordar somente algumas pessoas, era considerado apenas uma centelha da inteligência, cada vez mais próxima do homem, que aquela máquina estava apresentando.

A chegada

Faltando alguns dias para chegarem ao destino, que seria o terceiro planeta daquele sistema, todos os seis tripulantes foram tirados da hibernação, o computador estava prestes a desligar os motores. Era incrível, quando acordaram, depois daquela tragédia horrorosa, estavam com a velocidade de cento e noventa e três mil quilômetros por segundo, agora estavam com a velocidade necessária para entrar em órbita daquele planeta cheio de vida, cujo aspecto estavam ansiosos para ver.

Cinco dias os separavam de uma órbita estável ao redor daquele astro, mas não podiam esperar maior aproximação, todos, assim que puderam, pois ainda estavam meio entorpecidos pelos anos de hibernação, seguiram para a sala de controle e apontaram o telescópio para a superfície do planeta, ficaram boquiabertos com o que viram, os vegetais, se é que eram vegetais, pois podiam bem ser um novo reino de seres vivos, a bióloga Martha, explicou que aqueles seres podiam muito bem serem parecidos com as plantas terrestres, a superfície do planeta apresentava aspectos parecidos com a Terra primitiva, antes do domínio dos répteis, havia extensas áreas cobertas por o que parecia vegetais, mas estes supostos vegetais tinham cores variadas, alguns eram verdes, outros completamente avermelhados e outros amarelos, surgiu um comentário com a especulação de que o que imprimia aquelas cores, naqueles seres, eram flores, mas este idéia foi descartada por Martha.

O computador já havia analisado a atmosfera do novo mundo, e os dados reforçaram a tese de aqueles seres coloridos eram sim plantas, pois havia grande quantidade de oxigênio na atmosfera. Outros gases foram encontrados, quase todos presentes também na atmosfera da Terra, porem as proporções eram diferentes, um destes gases presente neste mundo em abundância, mas que na Terra era raro, era a amônio e o outro era o óxido de enxofre.

O planeta foi batizado com um código, que é o nome dado a todos os astros descobertos, mas agora este novo mundo precisava de um nome mais adequado as circunstâncias, numa primeira reunião, depois de observações, deram-lhe o nome de Kandi, homenagem ao pintor Kandinsky, pois olhando de cima ficavam com a sensação de estarem diante de uma obra de arte do expressionismo. Começaram a discutir idéias para batizar o outro planeta, mas resolveram deixar para quando estivessem mais próximo dele, dentro de aproximadamente um ano pretendiam estar em sua órbita.

Kandi tinha uma massa dez por cento menor que a Terra, este dado tinha sido estimado pelos astrofísicos antes da viagem, mas tinham errado, estipularam uma massa cinco por cento maior que a Terra, com erro de dez por cento, usaram o movimento ao redor da estrela para realizarem os cálculos, o computador fez medidas mais precisas usando o campo gravitacional do planeta, estes cálculos eram necessários para se corrigir eventuais erros de navegação da Velox em busca de uma órbita mais estável. E as correções estavam sendo feitas antes mesmo das pessoas serem despertadas, jatos de ar pressurizados eram jogados contra a fuselagem da nave, em vários pontos diferentes, fazendo-a convergir para o caminho correto, impedindo que ela escapasse da órbita ou entrasse diretamente através da atmosfera, incinerando-se e matando a todos.

Também o novo capitão deveria ser escolhido e aproveitaram a reunião para escolhê-lo, Derick, por estar mais tempo no espaço e por ser um pouco mais velho que todos os outros, foi o escolhido por unanimidade, eles já haviam tomado, no dia anterior, uma decisão, deveriam ficar uma dupla acompanhando o processo de navegação da nave, foram incumbidos da missão Derick e Pedro, por terem formação acadêmica na área de exatas. Os outros continuavam observando aquele mundo, embora houvesse outro planeta, o quarto do sistema planetário, que também abrigava vida, eles ainda nem haviam tido tempo de fazerem observações mais precisas, estavam focados naquele terceiro planeta. Os dois não mantinham distâncias tão grandes um do outro, como a Terra e Marte, o que possibilitava melhores observações, ainda assim deixaram aquele outro para depois. Observações feitas pelo computador durante o sono das pessoas e de antes de saírem do processo de hibernação, estava possibilitando o cálculo de sua massa e somente mais algumas informações possibilitaria este cálculo.

Não conseguiam definir o que era mais interessante de se observar ou explorar, estavam por demais entusiasmados, a essa altura nem sem preocupavam com o retorna à Terra, observações astrofísicas sobre a dinâmica orbital, sobre a estrela que ainda não possuía um nome adequado e observações biológicas que parecia ser o alvo mais estimulante entre todos. A bióloga Martha fez um comentário sobre as cores das folhas dos supostos vegetais:

— As leituras do espectrômetro indicam altos níveis de óxidos de enxofre e de nitratos na atmosfera, talvez seja este o motivo desses vegetais serem de cores tão variáveis, outro provável de tal fenômeno é a radiação emitida por esta estrela, ela é um pouco maior que o nosso Sol e deve emitir radiação em níveis diferentes, precisamos fazer algumas pesquisas neste sentido. Eu nem acredito que estamos num lugar tão distante da Terra.

— O planeta não tem a camada de ozônio, talvez ela ainda se forme com o passar do tempo. Gisele acompanhava Martha nas suas observações.

— Apesar destas condições adversas parece haver grande variedade de espécies vegetais, mas até agora não observamos espécies animais.

— Talvez elas não existam.

— Pode ser, mas pelo menos espécies microscopias que transformam matéria orgânica devem existir.

Não havia grandes oceanos como na Terra, mas um grande número de mares distribuídos de forma uniforme propiciava o desenvolvimento da vida. De lá do alto não saberiam nunca se aqueles mares podiam abrigar vida. Os maiores destes mares possuíam dimensões parecidas com o Mar Mediterrâneo, alguns estavam interligados por canais, outros eram isolados. Os tripulantes da Velox ficavam especulando sobre as possibilidades de vida naqueles mares.

Definitivamente naquele mundo uma pessoa não sobreviveria fora de abrigos e sem máscaras para respiração, se a missão de colonização não tivesse fracassado os colonos viveriam sob grandes restrições, talvez decidissem voltar da mesma forma que os sobreviventes o farão. Mas ainda que não fossem colonizar aquele mundo, queriam explorá-lo, prepararam então as quatro sondas existentes, uma delas aptas à exploração submarina. Escolheram, durante dias, os lugares onde as sondas iriam descer, excluíram os pólos congelados, cujos sinais de vida eram inexistentes, também excluíram os dois desertos, cujas dimensões somadas rivalizavam com o deserto do Saara e os mares menores que pontilhavam a superfície daquele planeta, agora chamado de Kandi, pois não queriam gastar tempo nem energia com algo tão numeroso. Se achassem vida nos mares maiores, procurariam depois num daqueles mares pequenos.

Com a Velox em órbita estável, Pedro e Derick voltaram suas atenções para a exploração, o computador, por sua vez, ficou com seus processadores menos sobrecarregados e assim possibilitado de mandar relatórios diários sobre o que descobriam, para a Terra. Porem algo preocupava a todos na Velox, nenhum relatório havia chegado da Terra nos últimos anos e a resposta ao comunicado de que a maioria das pessoas estavam mortas, também não havia chegado. Este quadro de preocupação mudou quando na segunda semana um comunicado chega da Terra.

"Já estamos cientes do ocorrido, nossos cientistas estão estudando esta suposta síndrome da alta velocidade, talvez Daniel M. Fargyson tenha razão sobre as causas da síndrome, vocês tem autorização para voltarem quando quiserem, mas gostaríamos que levantassem o máximo de informações sobre este sistema que agora circundam, quando voltarem, venham todos hibernando, nossas estimativas lhes dão mais chances se agirem desta forma. Boa sorte a todos".

Mais uma evidencia a favor da teoria de Daniel era o fato de Patrícia estar acordada há dias e não apresentar nenhum problema relacionado à depressão ou ao arrependimento de vir à viagem, ela estava se sentindo, assim como os outros, extremamente animada com aquele novo mundo. Este fato reforçava a teoria de que a alta velocidade é que trazia o mal para o interior das pessoas, parece que depois de morto Daniel conseguiu o tão sonhado reconhecimento que queria.

Todos sabiam que a Terra agora era diferente, muitas das pessoas que lá habitavam não mais existiam, as cidades deveriam ser quase irreconhecíveis aos olhos destas seis pessoas, ainda assim tinham saudades e queriam retornar o mais rápido possível, mas antes queriam saciar suas curiosidades sobre o real potencial da variedade de vida que lá existisse, e deveria ser imenso, embora não conseguissem ver animais daquela distância, Martha acreditava que não eram raros, embora devessem ser pequenos.

A primeira sonda era essencialmente terrestre, ela desceu em meio a aqueles supostos vegetais, numa clareira, depois de alguns minutos de leitura funcional ela apontou suas câmeras para os vegetais e viu-se um número enorme de animais alados movendo-se a altas velocidades, talvez tivessem características de insetos, fora impossível vê-los de cima por estarem sempre em movimento. A câmera da sonda mostrava um mundo impressionante, as imagens daquelas criaturas revelavam características de animais com tamanhos e formas variados. Todos os seis tripulantes assistiam as primeiras imagens transmitidas pela sonda e ficavam maravilhados com o que viam, afinal de contas estavam respondendo a uma das perguntas mais inquietantes feitas pela humanidade, desde que descobriram os outros planetas ao redor do Sol, existia vida fora da Terra? Não havia vida inteligente, mas aquela visão daqueles seres, era o suficiente para deixá-los em silêncio por alguns instantes.

Alguns animais eram verdes, com a tonalidade da cor muito parecida com a dos vegetais, havia outros vermelhos e outros amarelos, todos com as cores próximas as dos vegetais, existiam também alguns animais marrons e pretos, mas estes eram mais discretos, ficavam sob a cobertura dos vegetais e caminhavam ao invés de voar. Embora estes últimos parecessem estar em menor número, descobriu-se depois que eles tinham hábitos noturnos. Derick quebra o longo silêncio.

— Estamos vivendo um segundo momento histórico nesta viagem, o primeiro é a viagem propriamente dita e o segundo é a descoberta de vida fora da Terra, isto é maravilhoso.

— Vamos fazer um levantamento do espectro de radiação da região, computador ative os sensores de radiação da sonda número um, teremos os dados do dia todo nas próximas horas, já que estamos nos primeiros momentos do dia. — Pedro sempre preocupado com os aspectos físicos ao seu redor.

Como esperado os níveis de radiação da faixa ultravioleta estavam bem acima dos níveis terrestres, mas abaixo do valor esperado, concluíram então que a atmosfera, embora não tivesse uma camada espessa do gás ozônio, refletia uma quantidade significativa de radiação ultravioleta de volta para o espaço.

Dias se passaram, as pessoas varriam a superfície do planeta Kandi com seus telescópios e com as duas sondas, uma delas estava submersa num mar. A terceira sonda seria usada numa próxima oportunidade, a quarta sonda guardaram-na para a exploração do outro planeta.

Já tinham armazenado milhares e milhares de imagens daquele mundo. No fundo do primeiro mar a ser explorado, encontraram espécies das mais variadas, em número muito maior do que as espécies encontradas na superfície, onde variava o tamanho, a forma e as cores dos animais, de resto eram muito parecidos. Porem no mar as espécies pareciam ser tão diferentes uma da outra que deveriam ser classificadas em reinos diferentes, havia animais que guardavam aparência com os peixes da Terra, um deles possuía uma nadadeira com formato reto e sua pele brilhava fornecendo a evidência de uma cobertura escamosa, talvez fosse um animal vertebrado, mas só saberiam ao certo se fizessem exames, um outro animal dispunha-se como um guarda chuva semi-aberto, possuía tentáculos onde deveria ser o cabo do guarda chuva. A câmera da sonda registrou ao fundo um animal enorme com nadadeira reta, porem muito maior, possuía uma boca enorme, cujos dentes foram deferidos contra outro menor, este possuía um formato de um jacaré, mas sem patas e com a boca menor. As imagens foram enviadas à nave e depois para a Terra, os seis tripulantes da Velox não acreditavam no que viam, estavam atônitos diante daquelas imagens, era como se tivessem voltado no tempo e visitado a Terra antes da era dos dinossauros, pelo menos dentro da água.

— Quantos seres microscópios existiriam naqueles mares? — Perguntou Gisele. — Já que existem tantas espécies macroscópicas.

Ninguém respondeu à pergunta dela, mas aquela questão permeava a mente de todos. Provavelmente existissem poucas espécies de seres microscópios na superfície, devido ao alto nível de radiação ultravioleta, mas na água os seres encontravam um ambiente propício à vida.

Todos eles estavam juntos analisando mais imagens da superfície quando Derick observou que via poucos daqueles seres que se movimentavam através do ar ou pelo chão, alimentando-se dos vegetais, ou mesmo de outros animais, flagraram por algumas vezes os animais de cores mais escuras, os marrons e os pretos, alimentando-se dos vegetais, mas como estes eram mais discretos e em menor número, não repararam mais este fato. Gisele completou.

— É estranho mesmo não vermos estes animais comendo, eles bebem água às margens dos lagos e mares, mas a alimentação é uma incógnita. Pedro, que até o momento, só escutava, interfere.

— Talvez eles se alimentam a noite.

— Já monitoramos muitos animais a noite e não encontramos nenhum deles se alimentando. — Diz Martha.

Derick, que havia começado a conversa, conclui.

— Creio que estamos diante de um novo grupo de animais, vocês notaram que estes animais têm cores e tonalidades de cores muito parecidas com as plantas? Eles devem, assim como as plantas, usarem a energia luminosa para se alimentar, e se essa minha hipótese se confirmar, será esplêndido.

Um silêncio excitante se fez por alguns instantes, todos estavam entusiasmados com aquela possibilidade, especialmente a bióloga Martha.

— Você está querendo dizer que estes animais fazem fotossíntese?

— Só consigo pensar nesta possibilidade, ainda não descobrimos as moléculas responsáveis pela fotossíntese nestes seres, eu apostaria que nos seres de cor verde a molécula responsável é a clorofila. Nos seres de cor amarela e vermelha, com toda certeza, as moléculas que absorvem energia luminosa são uma variação da clorofila. Mas tenho certeza de que se pesquisássemos, descobriríamos as mesmas moléculas tanto nos vegetais quanto nestes animais.

— Esta sua tese é excelente, mas precisamos confirmá-la. — Acrescenta Martha.

— Como poderíamos fazer isso? — Pergunta Patrícia.

— Teríamos que trazer amostras para dentro da nave, já que as sondas não têm capacidade para realizar testes bioquímicos de campo. — Observa Pedro.

A terceira sonda a ser lançada, possuía combustível para retornar em órbita, seus propulsores eram potentes e não havia grande quantidade de carga útil para ser transportada, decidiram então usá-la para buscar amostras daqueles vegetais. Esta missão deveria também contemplar as pesquisas geológicas e físicas, a sonda teria que trazer à nave amostras de solo e de água. Escolheram então um lugar apropriado para a descida, teriam que levar em conta também as janela de descida e de subida. Com o uso daquela sonda para recolher amostras em solo, os tripulantes da Velox, esgotaram a única possibilidade que tinham de visitar o planeta Kandi, embora a sonda tivesse condições de abrigar apenas três tripulantes, havia a chance do homem visitar a superfície daquele surpreendente planeta. Mas ainda que alguém levantasse essa questão, ninguém teria tido coragem de ser o voluntário, pois as chances de ficarem presos lá em baixo era grande.

A missão fora um sucesso, embora tenha tomado uma semana terrestre de planejamentos, os testes biológicos foram realizados primeiro, a tese de Derick estava correta, o que não foi uma surpresa, pois esperavam aquele resultado, ainda assim foi recebido com grande entusiasmo por todos. Identificaram duas moléculas desconhecidas pela ciência, nos seres de cor verde, porem inacreditavelmente encontraram a molécula de clorofila. A molécula que dava cor amarela aos seres vivos tinha o elemento enxofre como base, por isso chamaram-na de enxofrila, por sua vez, os seres vivos que tinham a cor avermelhada possuíam uma molécula parecida com a clorofila, mas ao invés do cloro, era o ferro que coloria estes seres, chamaram-na de ferrofila.

As análises de solo submetidas a um espectrômetro de massa, revelaram condições propícias à formação da vida, havia naquela região pesquisada quase todos os minerais encontrados em qualquer solo da Terra, a matéria orgânica presente também mantinha aparência com a encontrada na Terra, a única diferença é que o processo de decomposição parecia mais lento. Pesquisas das amostras de água trazidas pela sonda, também revelaram concentrações elevadas de minerais dissolvidos, esta constatação explicava de onde os animais obtinham os minerais necessários para completar seus metabolismos.

A sonda de superfície, que ainda estava lá embaixo pesquisando, foi pega de surpresa por uma chuva torrencial, Pedro, que a estava monitorando, teve que agir rápido, através de alguns comandos conduziu a sonda para um local alto que, tinha certeza, não seria varrido pela enxurrada. A temperatura próxima ao equador girava em torno de trinta e cinco graus Ceusius durante o dia e baixava para cerca de trinta graus durante a noite, estas condições e o número elevado de mares propiciavam chuvas deste tipo em abundancia. Mais uma experiência espetacular para aquele grupo de pessoas, apesar da sonda estar investigando aquela região a cerca de quinze dias terrestres, não observaram chuvas, e as nuvens tinham coberto a região por duas oportunidades, mas não resultaram em chuvas, agora, no entanto, a água estava caindo em gotas enormes.

— Será que coloquei a sonda em lugar seguro? Agora varias pessoas acompanhavam aquele fenômeno, somente Karine não estava presente na sala de comando.

Direcionaram a câmera para baixo e uma lagoa havia se formado, se a água subisse mais vinte centímetros a sonda estaria em perigo, mas a chuva foi esvaecendo e desapareceu por completo e alguns minutos.

Travel

Durante onze meses ficaram investigando o planeta Kandi, em algumas oportunidades apontavam o telescópio para o outro planeta que, tinham certeza, era habitado por seres vivos também, agora chegara à hora de partirem e deveriam seguir na direção do quarto planeta, eles estavam num dos pontos da órbita celeste local que permitia a viagem em menor tempo possível.

— Antes de partirmos vamos batizar o outro planeta para não termos que chamá-lo pelo código. — Determinou o capitão Derick.

—Vamos chamá-lo por um nome na língua inglesa, que tal Travel. — Sugeriu Gisele.

— Para mim é um nome apropriado, pois enfrentamos a maior viagem para chegarmos até aqui, vamos nos dispor a enfrentar outra viagem para irmos até ele e ao que me parece, as características daquele planeta nos leva a uma viagem no sentido poético. — Disse Pedro.

Derick, mantendo sua conduta de líder, pergunta a todos.

— Alguém mais tem alguma outra proposta?

Karine parecia não gostar do nome, mas não conseguia pensar noutro, porem todos os outros quatro membros da tripulação estavam dispostos a concordar com o nome. E depois de alguns instantes de reflexão votaram a favor da idéia, somente Karine foi contraria ao nome, se houvesse empate ou mais pessoas contra, Derick daria um prazo para todos refletirem e pensarem num novo nome, mas a ampla maioria garantia o nome de Travel ao novo planeta a ser explorado.

Demorariam dois meses e vinte cinco dias para chegarem ao seu novo destino, os cálculos feitos pelo computador apontavam este período, ele vinha procurando os melhores pontos de partida, desde que haviam chegado a aquele sistema estelar e começado a orbitar Kandi, duas rotas menores foram encontradas num período de dez anos, esta que agora estavam usando e uma outra menor ainda que aconteceria oito anos a frente, mas este tempo não poderiam esperar, apesar de terem ainda milhões de questões para serem pesquisadas e respondidas em Kandi, queriam seguir adiante, explorar o planeta Travel e depois partir.

Nesta viagem não hibernariam, pois o tempo era relativamente curto e, alem do mais, havia muito a se fazer, principalmente no que tangia ao material recolhido de Kandi. A grande maioria das imagens ainda não haviam sido analisadas nem ao menos vistas, embora todas tivessem sido enviadas à Terra. Derick estava atrás de evidências que indicassem a formação de uma camada mais significativa na barreira atmosférica de gás ozônio, num futuro próximo, em Kandi, já existia uma fina camada que ele acreditava sofrer incremento através das eras geológicas, Karine o ajudava alimentando o computador com dados inseridos nos programas de simulação. Aquela estrela, que era irmã do Sol, também era alvo constante de estudo, levantamentos precisos sobre sua massa, sobre ciclos de explosões e radiações mais abundantes emitidas em todo o espectro, teriam que ser pesquisadas, Pedro estava responsável por esta tarefa, às vezes pedia ajuda de alguém, quando necessário. As outras três mulheres Patrícia, Martha e Gisele cuidavam das pesquisas relacionadas às maiores descobertas, o estudo dos seres vivos. A navegação da nave ficava por conta do computador, ainda que se não exigisse nenhum procedimento de reorientação, o computador analisava todo dia se a rota estava correta.

Com todos ocupados durante a maior parte do tempo, a viagem tornava-se curta, alem de terem todos aqueles afazeres, tinham que dedicar-se, durante uma hora do dia pelo menos, em fazer exercícios físicos. Para dormir no único aposento que existia na nave, destinado a esse fim, faziam escalas, havia quatro camas, mas para que os dois casais tivessem privacidade, eles estipularam que cada casal, mais a dupla, Patrícia e Karine teriam direito a oito horas do dia ao uso do dormitório, esta escala não funcionou, pois as pessoas iam dormir quando o sono chegasse, às vezes ficavam acordados mais de vinte e quatro horas, então encontravam-se usando o quarto mais de duas pessoas ao mesmo tempo e as vezes não havia nenhuma, algumas vezes um dos casais desaparecia da nave e o quarto encontrava-se trancado, os outros já sabiam, estavam fazendo amor.

O planeta que se aproximava parecia ter um potencial ainda maior que o outro, para abrigar vida e todos estavam ansiosos para vê-la de mais de perto, mas não tinha jeito, a Velox precisava estar em órbita para ter-se os melhores pontos de observação, e assim melhores possibilidades de acertos nas previsões feitas sobre as evidências, cada vez mais irrefutáveis, sobre a existência de inúmeras formas de vida naquela exuberante planeta.

Tinham a impressão de estarem chegando à Terra, tal era o grau de semelhança entre Travel e o planeta da qual partiram a tanto tempo. Havia muita água e esta água era traduzida em nuvens, quando as nuvens se retiravam, deixavam à amostra desenhos de continentes rodeados por oceanos, estes contornos eram um diferencial, mas a semelhança a favor era tanta que sentiam algo como uma incrível familiaridade. Não havia mais dúvida, naquele mundo existia vida e a imaginação das pessoas dentro daquela nave estava levando-as a pensar na possibilidade da existência de vida inteligente, mas se houvesse vida inteligente, provavelmente não tinham detectado nenhuma tecnologia aparente, que tais seres teriam criado, não viram luz artificial na superfície escura do planeta, não viram nenhuma cidade. Somente o tempo responderia aquela pergunta, mas no fundo achavam esta possibilidade extremamente remota.

Os cálculos indicavam que Travel possuía uma massa levemente menor do que a Terra, cerca de vinte por cento, o que deixava Kandi com o campo gravitacional levemente maior do que Travel. Estavam diante de dois planetas com estruturas astronômicas semelhantes à Terra e com igual potencialao desenvolvimento da vida. Por estar mais próximo da estrela, o planeta Kandi era mais quente do que Travel, mas a rotação em torno do seu eixo com velocidade maior, o que tornava o dia com quinze horas e alguns minutos, amenizava um pouco este calor. Travel, por sua vez, estava numa órbita que o deixava com uma distância com a estrela um pouco maior do que a distância Terra-Sol, assim este planeta deveria, em tese, ser mais frio e a vida não deveria florir com tanta intensidade como se via, é verdade que os pólos de Travel eram congelados e avançavam até as regiões de baixas latitudes, mas sobravam extensas áreas nas regiões tropicais e subtropicais onde a vida encontrava condições propicias para o desenvolvimento, e os tripulantes da Velox faziam especulações sobre a potencialidade da existência, assim como nas regiões polares da Terra, de vida adaptada às baixas temperaturas. Leituras astronômicas indicavam que em Travel havia estações climáticas, como na Terra, o que reforçava a possibilidade da existência de vida naquelas regiões frias.

Este planeta também possuía um satélite parecido com a Lua porem um pouco menor, dando condições parecidas com a Terra, para o desenvolvimento da vida. Muitas questões intrigavam os tripulantes da Velox e eles queriam responder a todas, mas talvez não pudessem responder nem mesmo uma das que mais aguçava suas curiosidades, não havia mais nenhuma sonda equipada para funcionar submersa, e em Travel havia, assim como na Terra, mais superfícies cobertas com água do que terra firme. Não poderiam, portanto, saber se havia vida naqueles mares, mas considerando a exuberância apresentada pela flora e fauna terrestres, os mares tinham grande potencialidade ao desenvolvimento da vida.

O espectrômetro indicava a presença de uma camada bem espessa de ozônio na atmosfera superior de Travel, não saberiam dizer ainda se esta camada era de proporções parecidas à da Terra, mas indicava uma segurança contra as alta taxas de radiação ultravioleta emitidas pela estrela que brilhava ali relativamente tão próximo e consequentemente a vida poderia se desenvolver com maior facilidade.

Enquanto um grupo preparava as duas sondas para descer em Travel, outro grupo menor observava a superfície do planeta, este grupo era formado pelas três pessoas melhores capacitadas em fazer leituras biológicas sobre os seres que descobriam naquele bioma que, apesar da familiaridade, apresentava-se como uma novidade extremamente excitante, pois era a descoberta de um planeta irmão da Terra, com todas as suas diferenças e similaridade, Martha, Patrícia e Gisele estavam no telescópio, observavam e se deleitavam com as descobertas. As plantas tinham a aparência, pelo que se podia ver, com as plantas terrestres, não se podia notar vegetais de outras cores se não verdes. Portanto aqui a evolução havia seguido um caminho diferente do que em Kandi, apesar da distância, existia mais semelhança entre a Terra e Travel do que entre estes dois vizinhos. Uma área enorme cobria a superfície firme daquele planeta com a cor verde que se interrompia de repente num deserto que terminava no mar. Aquele deserto tomava cerca de uma oitava parte da superfície firme do planeta, era o único, mas como a floresta delimitava o deserto, acreditavam que chovia com freqüência sobre suas areias, pelo menos nas fronteiras com o mar e com a floresta. O restante era coberto pelo verde exuberante, que eventualmente era seccionado por alguma cadeia de montanha.

Uma aproximação do telescópio mostrou, na tela, as folhas das plantas, uma grande variedade de formatos e tamanhos se apresentou, era como se olhassem para as florestas tropicais da Terra, as folhas pareciam ter estruturas semelhantes às plantas terrestres.

As sondas foram lançadas, uma após a outra, a segunda teve que ser reabastecida com combustível, pois já havia visitado o planeta Kandi. A primeira sonda desceu no deserto, lugar arenoso onde encontrou menor força de impacto, mas era uma região de fronteira com a mata fechada, portanto não demoraria a encontrar o principal material de estudo, que era aquela floresta exótica e toda complexidade que se espera de um ambiente cheio de vida. Assim que a primeira sonda encontrava-se segura sobre a areia do deserto, os três tripulantes que cuidavam da missão, mais o computador centraram o foco na segunda sonda que acabava de partir. Esta tinha como destino uma outra região próxima à primeira, uma praia localizada do outro lado da floresta, esta talvez fosse a única de Travel, mas não deixava de ser bela, sua areia branca contrastava com o verde dos vegetais e do outro lado, com o azul do mar.

No final da descida desta última sonda, o retorno do rádio demorou à ser efetivado, o que provocou certa angustia em todos e deixou-os apreensivos, a sonda começou a transmitir somente depois de já estar segura no chão, as primeiras imagens foram recebidas com festa por todos, abraços entre os casais e até entre os que não compunham lanços familiares. As primeiras imagens chegaram com muita estática, assim como na primeira sonda, mas logo ficou nítida como se estivessem eles mesmos observando uma das maiores descobertas da humanidade de todos os tempos.

Já que estavam sintonizados na câmera desta sonda, resolveram explorar primeiro aquela praia, olharam para o chão e tiveram a impressão de estarem numa praia da Terra, a areia branca com a água ao fundo formava uma cena linda, com o controle remoto fizeram a câmera erguer-se em direção à floresta e o que se viu foram árvores com galhos retorcidos, mas com tanta semelhanças com as árvores terrestres que ficaram boquiabertos, não havia cipós, os caules destes vegetais possuíam uma cobertura branca esverdeada e esta configuração se estendia por toda a floresta, alguns musgos fixavam-se sobre os galhos de algumas árvores, mas não de todas. Parecia haver somente uma espécie de árvore, pois os troncos e galhos eram todos iguais, esta impressão se desfazia quando olhava-se para suas copas, notava-se inúmeros formatos e tamanhos de folhas. Alguns arbustos se erguiam sob a penumbra da floresta, eram como folhagens e samambaias, suas folhas tinham formato triangular e eram enormes, não variavam muito nas suas estruturas corpóreas. De repente um vulto passou diante da câmera, imediatamente a sonda passou a acompanhá-lo com sua câmera, esta técnica de inteligência artificial era empregada há muito tempo, o computador da nave e os computadores auxiliares das sondas faziam uso corriqueiro dessa tecnologia, não conseguiram determinar se aquilo era uma ave, aquele bicho tinha um pescoço curto e apenas um olho no meio da cabeça, abaixo do olho um canudo se projetava alguns centímetros à frente. Pedro quebrou o silêncio.

— Acredito que este canudo sirva para ele sugar seiva das plantas.

Martha, que agora havia se juntado ao grupo ao lado de Gisele e Patrícia, concordou com a proposta com ressalvas.

— Por enquanto é uma boa explicação para esse animal ter um formato de boca ou bico tão exótico, mas temos que confirmar.

Aquela suposta ave possuía asas com envergadura de quase um metro, especulavam, pois não havia parâmetros seguros como referência. Não saberiam dizer se possuía uma cobertura de pena ou de pêlos, aproximações das imagens indicavam algo parecido com pequenas penugens cobrindo sua pele. O animal não era grande em relação à suas asas, por isso não seria difícil levantar vôos, mesmo somente com penugens cobrindo suas asas e seu corpo.

Outros animais foram aparecendo e alguns não saiam debaixo das copas das árvores, a maioria, suspeitavam, eram considerados invertebrados, estavam mais para insetos do que para mamíferos ou répteis, suas formas e tamanhos eram variados, talvez pertencessem à classes completamente novas de animais.

Mudaram o monitor para receber imagens da outra sonda para ver como ela estava se saindo, e ficaram igualmente maravilhados, a câmera desta sonda mostrava a riqueza biológica existente em Travel. Ali sim o ser humano conseguiria se estabelecer numa colônia capaz de florescer, embora não saberiam dizer se havia microorganismos desconhecidos ao sistema imunológico do homem e que eventualmente pudessem ser altamente infecciosos.

A sonda que explorava a região do deserto registrou um movimento na areia, aproximaram a imagem e conseguiram ver um animal rastejante que não possuía patas, mas possuía uma espécie de ferrão como um escorpião, talvez fosse um inseto ou alguma nova espécie de réptil, sua aparência lembrava uma taturana de cor marrom, era difícil de caracterizar aqueles animais sem poder manipulá-los. O clima da grande região onde estavam as duas sondas era estável, o céu não possuía uma nuvem se quer, e a Velox estava orbitando bem acima dela, os tripulantes correram para observar através da janela da sala de controle, puderam ver o desenho das fronteiras do deserto e do mar com a floresta, o sol estava a pino e por isso as imagens estavam nítidas como num studio fotográfico.

O computador não parava de trabalhar, as imagens captadas pelas sondas tinham que ser transmitidas antes da Velox ficar atrás do planeta Travel, por isso ele usava toda sua capacidade de enviar e receber sinais para captar aquelas informações, depois as encaminhava à Terra, quando tivesse oportunidade.

Quantos animais de espécies exóticas, que nem imaginavam que existissem e quantos segredos guardavam aqueles vegetais? Estas questões entusiasmavam a todos e sentiam-se frustrados por não poderem estar em contato físico com aquele mundo, a possibilidade de descer em Travel passou pela cabeça de alguns dos tripulantes, mas logo foi refutada, nem cogitaram a idéia com os outros, sabiam que se descessem com uma das duas cápsulas de fuga, cuja capacidade era de cinqüenta pessoas, não teriam como retornar e ficariam presos à gravidade de Travel, assim constituiriam uma colônia sem a organização prévia como se fez antes da saída da Terra. Seria muito difícil esta colônia ser próspera com número de membros tão reduzidos. A tragédia ocorrida a muitos anos-luz atrás deixara todos com grande desmotivação e com enorme vontade de retornar à Terra. O único que vez por outra cogitava intenções de ficar mais tempo era Pedro, embora raramente externasse suas intenções, ele estava cada vez mais encantado com aquele mundo.

As leituras atmosféricas das sondas indicavam alto grau de gás nitrogênio, outros gases também apareciam em menor evidência, como oxigênio, gás carbônico e outros menos expressivos. As semelhanças com a Terra não limitava-se à configuração de gases na atmosfera, embora Travel tivesse uma massa um pouco menor, sua distância em relação a estrela se apresentava como sendo quase a mesma da distância Terra-Sol, cerca de cinco por cento maior.

Estas semelhanças traziam a tona uma questão antiga, sendo que parte dela já havia sido respondida, existia sim vida em outros planetas, mas a estatística de quantos poderiam abrigar vida ainda estava em aberto. Se conseguiram encontrá-la tão próxima de casa, relativamente falando, quantos destes planetas não existiriam na galáxia? E nas outras galáxias, quantos planetas parecidos com a Terra, com Travel ou ainda com Kandi poderiam existir? E com certeza em alguns deles haveria vida inteligente capaz de estudar e explorar o meio ao seu redor.

Estavam todos animados em entusiasmados com o que viam e às vezes ficavam mais de vinte horas direto observando e estudando aqueles seres, principalmente a bióloga Martha e o físico Pedro. Derick, quando todos estavam juntos fazendo a refeição, perguntou:

— Quando a Terra irá receber estas imagens?

Ele sabia que fazia menos de dois anos que haviam enviado as imagens à Terra e portanto levaria mais de sessenta anos para as mensagens, contendo aquelas imagens, começarem a chegar. Foi uma pergunta retórica, mas ainda assim, Pedro quis respondê-la.

— Considerando que o computador começou a fazer imagens do planeta Kandi, antes mesmo de nos tirar da hibernação, e que as enviava quase que imediatamente para a Terra, estas informações devem agora estar a dois anos e sete meses viajando, elas têm ainda um longo tempo ou distância pela frente.

Depois das refeições voltaram às observações, um animal grande com um corpo de sapo e com calda de lagarto estava bem à frente da sonda que se encontrava na fronteira do deserto, ele abocanhou um enorme, ao que parecia, inseto alado, a boca do tal sapo escondia as características do inseto, que se estivessem certos, teria mais de trinta centímetros. Não saberiam dizer quais eram as características daquela presa, se possuía semelhanças com uma libélula, com uma mosca, poderia ser até um mamífero ou um réptil voador, isto talvez nunca soubessem. Mas o caçador era mais fácil de descrever, possuía a parte frontal igual à de um sapo e assim que ele avançou com sua presa na boca, puderam vê-lo lateralmente, as semelhanças com um lagarto se destacaram. Como era difícil caracterizar aqueles animais apenas com as imagens, Martha e Pedro eram os que mais sofriam com esta limitação, mas ao mesmo tempo em que viam-se diante de um mundo estranho, tinham uma sensação de familiaridade enorme, sentiam-se numa expedição científica pelo mundo na época de Charles Darwin, quando muitos novos seres vivos eram descobertos naquelas ilhas isoladas ou na América, com características completamente diferentes das espécies conhecidas.

Uma planta com uma cor diferente se destacou, eram flores vermelhas, aquela árvore fora a primeira identificada com reprodução através de flores. Ela não era muito diferente das outras, tinha o tronco e os galhos de coloração igual às outras, as folhas eram um tanto quanto diferenciadas, mas os formatos das folhas de todas aquelas árvores eram tão variados que não se podia determinar quais mais produziriam flores somente olhando de longe, todos ficaram curiosos para saber como se dava a polinização daquelas flores, esta era uma questão que pretendiam responder, aproximaram a imagem de um punhado de flores e começaram a acompanhar a gravar em alta definição, estas imagens, apesar de serem comprimidas, eram muito mais densas e por isso levava-se mais tempo para estarem disponíveis aos observadores da nave. Eles se surpreenderam mais uma vez, quando verificaram que as flores eram polinizadas por pequenos insetos alados, as asas cobriam o abdômen em tom amarelado, e a cabeça mantinha dois olhos sem nenhum sinal de presas ou qualquer mecanismo de defesa, também não havia, na parte inferior do abdômen, um ferrão como nas abelhas mais agressivas, não detectaram nenhum outro ser ajudando aqueles insetos polinizadores na tarefa de auxiliar a árvore na sua reprodução. A simbiose, tão necessária à vida na Terra, também existia no longínquo mundo de Travel.

Algumas leis da Biologia pareciam ser mais universais do que se imaginava, a semelhança dos seres de Travel com os seres da Terra, indicava um paralelismo na evolução da vida nestes dois mundos, talvez Travel estivesse no meio de um período de equilíbrio ambiental, enquanto a Terra estava no final de um destes períodos, com o ser humano como fator de perturbação, mas excetuando estas diferenças, as semelhanças observadas tornavam-se incríveis.

Como explicar que muitos destes seres desenvolveram asas, assim como os seres da Terra? E o sistema de visão? A maioria dos seres de Travel tinha dois olhos. O uso de múltiplos estímulos externos de orientação e órgãos de locomoção pressupunha uma grande disputa evolutiva em períodos diversos da história do planeta Travel.

Pedro estava cada vez mais inconformado com sua dificuldade em estudar mais de perto aquele mundo, Martha também estava triste, porem aceitava melhor a situação, os outros apenas curtiam as descobertas e ajudavam, na medida do possível, a elucidá-las. Para Pedro estar na superfície de Travel significava ter contato com eras geológicas desconhecidas e que poderiam revelar muito mais sobre o planeta, o clima dava para investigar, com certo limite, pois as sondas ficavam restritas as regiões tropicais de Travel, mas a consistência das águas, a composição das rochas e os aspectos mais diversos e interessantes daqueles seres extraterrestres, não conseguiam descobrir com a profundidade desejada.

Depois de nove meses orbitando o planeta Travel e de tantas descobertas extraordinárias, como um quadrúpede que pastava nos raros arbustos do deserto, talvez fosse um mamífero ruminante como os da Terra, pois mais de uma vez viram, não com a sonda, mas com o telescópio, portanto viram de cima, um daqueles animais de pequeno porte perto de outro maior, como se estivesse mamando. Um outro animal fora descoberto pela sonda, era, ao que se imaginava, formigas cortadeiras, mas com tamanho impressionante, calculavam que mediam cerca de vinte centímetros de comprimento e não possuíam divisões entre a cabeça e o abdômen. Agora estavam se preparando para retornar à Terra, a ansiedade vinha aumentando em quase todos, porem Pedro não estava gostando da idéia de voltar, mesmo sua mulher que no inicio estava tão entusiasmada com aquele novo mundo, via-se agora desfrutando dos confortos existentes na Terra, embora a viagem de retorno demoraria mais de cem anos.

Quando estavam os dois sozinhos, Pedro vez um apelo à Martha.

— Vamos permanecer mais um pouco aqui, se você ficar ao meu lado, talvez consigamos mudar a opinião dos outros.

— Não temos mais estrutura material, nem moral para continuarmos esta investigação, a quantidade de informações que recolhemos renderá muitos e muitos anos de pesquisas e descobertas incríveis, assim talvez consigamos organizar melhor uma segunda expedição colonizadora.

— Nós estamos querendo retornar, mas nem sabemos como a Terra está agora, quando a deixamos havia os graves problemas ecológicos, eles não nos informaram nada a respeito, talvez estejamos querendo voltar para um mundo totalmente devastado.

— Se tivesse completamente devastado como você diz, não estaríamos recebendo retorno do rádio.

— Você se esquece que as últimas informações que recebemos foram enviadas a mais de sessenta anos.

Pedro não ficara conformado com a posição assumida por sua mulher, quando ele se fixava numa idéia não havia meios de fazê-lo voltar atrás. Os mistérios escondidos lá embaixo o deixava cada vez mais obstinado e assim ele não se via novamente andando pelas ruas das grandes cidades, nem pelos belos campos da Terra.

Como sobraram apenas seis pessoas, havia muita comida e como a água era quase toda reciclável, a quantidade existente quando partiram em viagem, era quase a mesma. Estes argumentos pesavam a favor de Pedro, mas o capitão Derick dizia que se houvesse algum imprevisto no retorno à Terra e tivessem que ficar fora do sistema de hibernação por um longo tempo, eles precisariam daqueles alimentos. Mas Pedro não queria apenas orbitar Travel, ele queria ir mais longe.

Existiam armas a bordo da Velox, pois o medo que a expedição tinha de se deparar com seres ameaçadores e desconhecidos, caso a missão tivesse sido completada com êxito, fez os planejadores da nave acrescentarem um armário com muitas armas e munição, porem apenas o capitão possuía a senha da fechadura. Pedro já estava decidido, iria forçar a todos para que descessem em Travel, mas como fazê-lo? Precisava estar armado para conseguir realizar seus planos, então ele tentou abrir o cadeado, mas sem sucesso, usou os dados pessoais de Derick, como sua data de aniversário e a data da partida da Velox, depois tentou os dados do falecido capitão Almir, ele estava acessando os dados quando Karine se aproximou do monitor e ele teve que mudar de tela rapidamente. Apesar do trabalho que teve, todas as tentativas foram infrutíferas, o novo capitão Derick talvez tivesse mudado a senha, mas havia somente um jeito de descobrir, teria que invadir o correio eletrônico de Derick, pois o computador havia encaminhado todas as senhas de acesso exclusivo a ele, quando o capitão Almir foi dado como morto. Mas este plano também tinha suas dificuldades, pois havia outra senha para descobrir.

Na refeição seguinte quando todos estavam reunidos, ele teve uma idéia.

— Gisele, qual é a data de aniversário do casamento de vocês?

Para disfarçar a curiosidade repentina, emendou comentando sobre seu casamento com Martha, falou sobre datas e de onde se casaram.

Gisele contou a ele tudo, inclusive as datas em que se conheceram e a do casamento, o capitão Derick estava conversando com as outras mulheres sobre os seres quadrúpedes que pareciam estar mamando, o assunto estava interessante e ele nem prestou atenção na conversa de Pedro com sua mulher.

— Estes animais apresentam características de quadrúpedes quando andam e ao que me parece, são mamíferos, eles com certeza são herbívoros, pois ficam muito tempo parados como se estivessem pastando, as imagens indicam uma vegetação rasteira homogênea com gramíneas, cujas folhas são arredondadas. — Observa Martha.

— Travel é mesmo surpreendente. — Diz Patrícia.

— Agora só falta acharmos mamíferos bípedes. — Completa o capitão Derick.

— Calma Derick, não temos certeza ainda se são mamíferos, apenas evidências bem fortes neste sentido. — Conclui Martha.

Ao término da refeição, Pedro correu para a sala localizada atrás dos motores da nave, onde ficava o armário com as armas, o primeira número que colocou não conseguiu abrir, "será que não são seis dígitos?" Pensou ele. Na segunda tentativa, com a data de aniversário de casamento, o cadeado se abriu. Pedro calculou cinqüenta armas, entre fuzis e pistolas, sendo a maioria armas de pequeno porte. Todas muito leves, feitas de polímeros ou fibra de carbono. Ele pegou uma pistola nove milímetros e verificou o pente para confirmar se estava carregada, depois seguiu com seu plano.

Ele sabia que todos estavam na sala de comando e isso era uma conveniência, pois não haveria perigo de alguém tentar algum gesto heróico, numa tocaia. Todos estavam diante dos monitores observando e analisando as belas imagens que surgiam de Travel. Pedro quebra o silêncio.

— Atenção todos, eu estou tomando o comando da nave pela força das armas.

Todos imediatamente miram o olhar na direção dele.

— Ele está armado. — Observa Karine.

— O que você está fazendo? — Pergunta Martha.

— Estou resgatando a verdadeira prioridade da missão, temos que descer em Travel.

— Como você conseguiu esta arma? — Pergunta o capitão Derick. — Você abriu o armário cuja senha somente eu conhecia.

— Por isso você perguntou a data de casamento, seu desgraçado, você nunca se apresentou como uma pessoa simpática, até ai tudo bem, mas me usar para conseguir uma informação..., isto já é canalhice.

— Não quero rebeldia, nós vamos organizar uma descida.

— Você não pode nos obrigar a participar deste seu plano, com a morte da maioria dos tripulantes não temos mais estrutura técnica para continuar com esta expedição. — Comenta Derick.

— Muitas normas estabelecidas no planejamento da missão são supérfluas, assim podemos seguir apenas as normas mais importantes.

— Se descermos não teremos como retornar e nosso destino ficará confinado neste mundo. — Insiste o capitão Derick.

— Você esta ficando louco Pedro, será que não vê que não queremos ficar aqui? — Martha implora.

— Vocês estão querendo retornar à Terra, nosso planeta não é mais o mesmo, não vamos encontrar mais nenhum rosto familiar.

— Mas é isso mesmo que queremos. — Continuou Martha.

— Pois agora sou eu que faço as regras e vamos descer.

— Por que não desce só você Pedro? — Perguntou Karine.

— Esta missão não é apenas minha, é de todos nós e não adianta vocês argumentarem mais. Vamos verificar no banco de dados do computador os procedimentos necessários para continuar. Temos que levar provisões, sementes de plantas, antibióticos, as armas e tudo que pudermos carregar que sejam importantes às pesquisas e às nossas sobrevivências, enfim neste caso seguiremos o planejamento inicial da missão.

Alguém mais começou a falar e foi ameaçado por Pedro com a arma.

Tudo ficou pronto em menos de dez horas, agora eles precisavam de uma região ideal para a aterrizagem e a encontraram, fizeram os cálculos e a próxima janela de descida para aquela região específica aconteceria em cinco horas, esconderam de Pedro, de modo que perdessem aquela janela, na esperança de que adormecesse e pudesse ser desarmado, mas quando ficou sabendo que a janela havia passado, ficou furioso e ordenou que calculassem outro lugar para a descida, o computador indicou quatro possíveis lugares, com as respectivas janelas para as próximas horas, o local mais adequado iria demorar mais de trinta horas para ocorrer e esse tempo Pedro não poderia esperar. Ordenou então a primeira possibilidade, que aconteceria em três horas meia.

— Mas este é um local perigoso, cheio de lagos e rochas salientes, vamos ter grandes possibilidades de fracasso e estaremos correndo perigo de vida. — Argumentou Derick.

— Não há o que temer, vamos programar o computador para descermos neste pequeno descampado.

Eles colocaram tudo abordo inclusive o armário com as armas, Derick tentou abri-lo, mas Pedro tinha trocado a senha.

Todos já haviam se acomodado na cápsula de descida, alguns estavam com medo, principalmente Patrícia e Karine, os outros apenas indignados. Quando a porta da cápsula foi lacrada por Derick, ele lançou um olhar sobre o corredor da Velox com extremo saudosismo. Aquela nave ficaria orbitando Travel por centenas ou talvez milhares de anos após a morte deles, talvez ela ainda estivesse ali quando chegasse outra expedição, com o computador funcionando perfeitamente e o combustível sobrando, pequenas perturbações na órbita estável da Velox poderiam ser consertadas.

Depois que deixaram a nave Pedro pode ficar mais tranqüilo, não havia como voltar, as expressões dos rostos das pessoas apresentavam-se como preocupadas e às vezes tristes, mas Pedro estava cada vez mais confiante, olharam através da janela traseira da cápsula e puderam ver a Velox ficando cada vez menor, os pequenos propulsores da cápsula os empurravam na direção de Travel. "Se não fossem destruídos na descida poderiam ser modificados e ajudá-los a vencer a gravidade de Travel e voltar a Velox". Pensou Derick. Mas as modificações teriam que ser profundas e não tinham estruturas técnicas, como ferramentas e materiais para realizarem tais procedimentos, se encontrassem o módulo explorador número dois, teriam mais chances, somente faltaria o combustível, mas as novas coordenadas os levariam para bem longe dos dois módulos e a sorte estava lançada, uma missão que desde o inicio havia sido exaustivamente planejada, agora dependia do fator sorte, era uma ironia do destino.

Antes de entrarem na zona atmosfera da qual não podiam transmitir sinais de radio, mandaram uma última mensagem à Terra.

"Aqui é o capitão Derick Marcus, nós, por forças alem das nossas vontades, decidimos descer em Travel, não sei se conseguiremos voltar à Velox para podermos retornar à Terra. Tentaremos construir alguma infra-estrutura, de modo a termos condições de sobrevivência. Ao aterrizarmos e levantarmos acampamento, voltaremos às mensagens".

Aquele foi o último contato estabelecido, a cápsula desaparecera e não havia como saber se tinham conseguido aterrizar em segurança. O computador ficou a espera de algum sinal de rádio, mas não ocorreu e depois de alguns dias começou a rastrear o solo com o telescópio, sua inteligência artificial permitia iniciativas como estas e permitiria que a nave mantivesse a comunicação com a Terra e é claro a navegação estável.

Os dias vieram e nenhum sinal de sobrevivência foram encontrados, a missão fora um fracasso total? O computador não podia fazer tais conjecturas sobre assuntos tão complexos, mas o fato é que a nave estava carregando dezenas de corpos, era o mais caro cemitério já construído, dois corpos estavam viajando a altíssimas velocidades na direção daquele sistema solar e seis pessoas estavam desaparecidas lá naquele mundo, que apesar de belo, era completamente desconhecido. Conjecturas assim seriam feitas somente depois de sessenta e três anos, ou ainda mais distante no tempo, quando outra missão chegasse à Travel.


Autor: Dimas Deleo


Artigos Relacionados


A Viagem

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

Ideologia Da Miséria

Apocalipse E Genoma Do Universo

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras

Bruninha - Situações Engraçadas Do Dia-a-dia

O Chão