O HIPERTEXTO COMO MÍDIA SEMIÓTICA:



Maria Angela Coelho Mirault*


Se considerarmos o termo signo no sentido peirceano como um sinônimo de meio (medium), o computador é, de fato, um tipo muito especial de meio, uma vez que todos os significados que Peirce deu à palavra signo são aplicáveis ao computador. Ele é uma mediação ou terceiro. É também um signo ou meio na relação triádica do signo, objeto, interpretante. Além disso, o computador pode agir como um interpretante num outro processo de semiose, e finalmente também pode ser o objeto num processo de semiose adicional.

SANTAELLA (1996: 237)


INTRODUÇÃO

 Em termos peirceanos, o pensamento puro não existe. Assim, todo signo manifesto é degenerado e todas as linguagens são híbridas. Onipresentes, as categorias icônicas, indiciais e simbólicas, manifestam-se por meio de predominâncias distintivas nas três matrizes da linguagem. Desse modo, a classificação de estados puros é uma formulação apresentada no sentido de melhor compreendê-las e, embora, essa hibridização de linguagens seja já uma postulação peirciana, o estatuto das mídias digitais, veio evidenciar o espaço do hipertexto como ambiente apropriado ao cruzamento destas manifestações fenomenológicas. Ele, remete-nos para a vastidão ilimitada de linguagens informacionais, lançando-nos a trilhar caminhos não previsíveis e, mesmo, irreconciliáveis com o passado, pela abertura que nos conduz ao campo das probabilidades incontidas nesta mídia, mas absolutamente limitadas pelos suportes de papel, o mundo da escritura e das mídias eletrônicas.
 Se considerarmos a conceituação de que toda linguagem adquire significado no interpretante e de que os discursos adquirem a significação pela esfera de uso, tida por Baktin, poderemos identificar, em toda formulação da produção signica, a presença da reconfiguração de repertórios. Essa argumentação dá-se pela relevância da análise que se pretende fazer neste texto.
 Parece-me que a reconfiguração que se dá no repertório do interpretante da mensagem digitalizada e a desorientação proporcionada pelas perspectivas que o processo de lincagem apresenta, corroboram esses mesmos princípios.
 A possibilidade de se encontrar, no ambiente hipertextual, o passado no presente, embutido na reconfiguração do paideuma, está consubstanciado também em Prigogine. Sua concepção sobre o nascimento do tempo vem auxiliar no entendimento do aparente confronto e domínio entre o mundo da escritura e o mundo da digitalização. Esta perspectiva evidenciada em Joyce e em Borges destaca-se sobremaneira na tela do computador, o qual, embora, se configure como simulacro do livro, adquire a singularidade de ser o suporte apropriado à intertextualidade híbrida e o lugar do rompimento definitivo com a linearidade temporal.
 O presente trabalho pretende linkar o nódulo que contextuaria  a reconfiguração do conceito de espaço-tempo, imposto pelo hipertexto, em analogia com a perspectiva  teórica de Prigogine, ao propor  que determinadas ocorrências na flecha irreversível do tempo são acontecimentos entrópicos, que podem, tanto significar o fim como originar um novo começo e gerar o fenômeno da bifurcação de caminhos, que se abrem para sempre novas,  imprevisíveis e intrincadas possibilidades. A estrutura do hipertexto possibilita o acesso a todo tipo de informação, mas sua transformação em conhecimento e reconfiguração de repertório é opcional e intencional.


1. A Era da pós-informação
 Desde os seus primórdios, o homem é um ser que age na natureza objetivando a sua sobrevivência e a manutenção da espécie. Para isso, transforma a realidade em seu benefício, acumula bens e informações. Produtos estes que precisam ser estocados e que se vão constituindo em acervos econômico e cultural. Para solucionar o problema do armazenamento da informação, o homem concebeu a escrita.  Mais tarde, com o volume de informações e para atender a demanda de selecionar, armazenar, classificar, organizar, disponibilizar informações, o homem criou a biblioteca: a Biblioteca de Alexandria já continha um acervo de 700 mil obras. O suporte livro e a mídia escrita eram os recursos disponíveis, então.
 Embora, desde a segunda metade do século XIV, as descobertas marítimas tenham proporcionado a transmissão de mensagens, foram invenções como o cabo submarino (1866), o telefone (1876), o telégrafo sem fio (1894) e as transmissões transatlânticas de ondas de rádio (1901) que vieram mudar radicalmente as formas de comunicação a distância.  Umberto Eco retrata em O Nome da Rosa toda uma trama romanceada sobre o valor da informação, tida, na Idade Média, como segredo guardado a sete chaves nos conventos. Criar sistemas de controle sobre o que podia ser, ou não, divulgado era, antes de tudo, um recurso de poder.
 Nicholas Negroponte (1992), em sua obra Vida Digital, afirma que a era da pós-informação apresenta como característica marcante a promiscuidade das informações.  Diz ele que, com o advento e o aperfeiçoamento das novas tecnologias digitalizadas, transitamos da era do broadcasting, que impunha o modelo da globalização da informação e o conceito de aldeia global, para a era do broadcatching, ou seja, da caça à informação, porque agora já é possível ao homem procurar e selecionar o que lhe interessa, alterando um processo, antes, passivo para um ativo.
 Essa possibilidade, além de facilitar a individualização no processo de aquisição do conhecimento, gera também alterações de concepções relativas ao referencial espaço-temporal tidos como limites impostos ao homem, os quais, a partir de então, passam ao seu domínio. Na medida em que somos nós quem escolhe os bits, abandonamos a era do pull para ingressar na era do push, inauguramos um novo tempo em que o receptor se assenhoreia do processo da comunicação  no seu tempo e no seu espaço  e passa a consumir a informação que melhor se lhe compatibilize, a qual, metabolizada, vai  interagir com seu repertório pessoal e passar a integrar o seu acervo de conhecimentos.

1.1. A revolução da Internet
 A partir da década de sessenta, o uso dos satélites artificiais, a transformação do computador em máquina cada vez menor, mais potente e acessível, os cabos de fibra ótica  foram invenções humanas que vieram formar sistemas globais de telecomunicações, dos quais a Internet é o grande ícone. Como o próprio nome em inglês quer dizer, trata-se de uma rede que possibilita a interconexão, sem as barreiras do espaço e do tempo. Se imaginarmos que essa extensa rede tem permitido que pessoas de qualquer lugar do mundo se conectem e troquem informações, podemos também imaginar a constituição de uma sociedade sem fronteiras geográficas, que, diferentemente do conceito de sociedade globalizada, estaria centrada na negociação de interesses comuns, mantendo ainda toda a particularidade cultural de cada um.  
 Concebida no auge da guerra fria entre e EUA e União Soviética, a Internet tem sido considerada uma peça fundamental para a busca do entendimento entre as pessoas e instituições, dos mais longínquos pontos da Terra. Nascida por iniciativa do norte-americano Paul Baran, da Rand Corporativo, na tentativa de resolver o grave problema de manter o controle do comando de mísseis e bombardeiros em caso de um ataque nuclear, trazia implícita a necessidade de descentralizar o caráter da informação.
A ArpaNet (Rede da Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas), criada oficialmente em 1969 pelo Departamento de Defesa do governo  dos EUA, interligou oficialmente quatro universidades. Em 71, a empresa já possuía 16 pontos de conexão, num total de 23 servidores de rede instalados no MIT (Massachussets Institute of Technology), na NASA, em universidades e laboratórios de pesquisa de empresas.
É bom lembrar que estas redes de comunicação a distância não tinham qualquer conexão entre si. Foi o avanço da tecnologia de Gateway (computador que faz conexão  entre duas ou mais redes)  que levou a ArpaNet a atuar sob o conceito de internetwork (redes interligadas) e que veio dar origem ao que hoje conhecemos por Internet, que passou a se tornar realidade quando, em 1983, o governo americano desmembrou a ArpaNet em uma parte científica e outra militar (MilNet),  para atender o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Essa medida originou a mudança do perfil da rede, do público e da gratuidade dos serviços.
Em 1989, a intervenção do cientista inglês Tim Berners-Lee veio contribuir para a explosão da interface gráfica da Internet, formando a grande teia de alcance mundial conhecida pelas inicias de World Wide Web/ www, e, com isso, multiplicar, por esta mídia, o volume de informações  processadas e transmitidas. A web nasceu da proposta que o cientista fez aos pesquisadores do Conselho Europeu de Pesquisa Nuclear: a utilização de um recurso para distribuição e consultas de documentos pela comunidade científica, via computador, baseada na idéia do hipertexto, já conceituada desde os anos 60, por Theodor Holm Nelson, como interconexão de informações relacionadas. Com isso, a Internet passou a permitir a sua utilização como suporte de veiculação de periódicos ilustrados, gráficos coloridos, fotografias, sons, imagens, transformando-se na mais interativa das mídias.
Em 1990, com mais de 100 mil máquinas conectadas no mundo, a ArpaNet foi extinta e abriu o caminho para a perda da centralização do controle, a configuração de uma teia mundial de informações de acesso público, mas também, como suporte adequado a atender a demanda de segmentação e comercialização de informações.

1.2. O hipertexto como o espaço de (toda) informação (nenhuma)

 Para Walter Ong, a oralidade é o ponto de partida para a cultura da mídia, visto que, desde este momento apresenta a hibridização das linguagens, ou cruzamento de matrizes. Por outro lado, a construção do repertório constitutivo do paideuma, restringe-se a um outro contexto visitado pela Semiótica da Cultura ao afirmar que todo processo de semiose ocorre em um ambiente que Lotman (1985) chama de semiosfera, onde se dá a resignificação de linguagens. Conseqüentemente, também, de reconfiguração de repertórios de conhecimentos e pré-juízos.
 É, portanto, no espaço da semiosfera que as linguagens se interagem e se interferem umas nas outras, auto-organizam-se hierarquicamente, para se reconfigurarem em novas sedimentações de conhecimento. Não há ruptura; há continuidade, transformação que se configura no conceito filosófico que Lotman dá ao sentido de explosão, de evolução, de projeção, ou seja, alterações que ocorrem por meio de processos graduais de  relacionamento, convivência e superação em uma relação de antítese e reciprocidade. Nesse contexto, explosão adquire o significado de processo dinâmico que dialoga com mecanismos de estabilização e que indicia uma nova fase, absolutamente imprevisível, na qual, dentro de um complexo de possibilidades, somente uma realizar-se-á.
 Desde quando começou a acumular conhecimentos, a necessidade de discernir a informação relevante da irrelevante constituiu-se um problema humano. A Biblioteca de Babel, descrita por Borges, talvez seja a melhor metáfora para se tentar definir o que seja a Internet. Em sua idealização, ali seria possível encontrar-se todas as informações do mundo, sem excluir, contudo, as verdadeiras das falsas, textos sem sentido e também muito lixo. Prenuncia, Borges, nesse conto, uma coleção tão surpreendente de informações que no fim todo o acervo corresponderia à informação nenhuma, tal como concebe Negroponte quando afirma que o volume de informações que as novas tecnologias proporcionam gera o fenômeno da saturação, trazendo como conseqüência a promiscuidade. Em meio a tanta informação, disponibilizada pela Internet, os problemas seriam os mesmos do usuário da biblioteca de Borges. Como se pode constatar, buscar a informação de que se necessita, conferir sua veracidade e relevância não é uma coisa nova, mas absolutamente humana.
 
1.2.1. O hipertexto como  lugar da reconfiguração do conhecimento
 Para que fosse possível produzir e gerenciar a avalanche de informações e o entrelaçamento de arquivos dentro da rede, foi criada uma linguagem que permitisse a edição de páginas, ou seja, um novo protocolo de comunicação (HTTP), além de um tipo específico de programa para navegação. Em 1990, é criada a HTML - HyperTex Markup Language, que reúne códigos de formatação, cuja função é mostrar o relacionamento lógico entre os elementos de um texto, dentre as inúmeras alternativas do hiperlink.
 A criação do primeiro softwere, que conseguia reproduzir textos e imagens guardadas em um computador nas mais diversas localidades do mundo, foi o browser (folheador), permitindo que se passasse de um lugar ao outro como o folhear de um livro.  O primeiro browser gráfico, desenvolvido em 1993 por pesquisadores da Universidade de Ilinoi, liderados por  Marc Andreessen, foi o Mosaic. Esse programa foi um dos grandes  impulsionadores  da web. Como passo seguinte, o mesmo grupo de pesquisadores lançou o Navigator e, Marc Andressen fundou a Netscape, que hoje pertence ao Grupo America Online. Atualmente, a navegação pelas páginas da web é disputada por dois programas, o Netscape Navigator e o MS Internet Explorer, que, embora tenham recursos comuns, apresentam formas diferenciadas de visualizar algumas de suas páginas.
 A entrada na web, ou seja, o primeiro lugar de acesso, tornou-se bastante disputado. O objetivo dos sites disponíveis, tão logo o internauta se conecta, procura disponibilizar tudo (ou quase tudo) que um navegante precisa. Ali, pode visitar seu correio, ler notícias, fazer compras, entrar nos chats e bater papo. Além disso, disponibilizam toda gama de informações possíveis e contidas na Internet, que podem ser rastreadas por seus mecanismos de busca, os quais, classificam e selecionam todo tipo de assunto. São os portais, verdadeiros manuais de auxílio para que os navegantes encontrem o que precisam. Eles têm objetivos comerciais embora se ofereçam gratuitamente. A idéia é que se torne uma mídia mundial online de publicidade, pela manutenção de um público cativo dos seus serviços, e, muito brevemente, passem a dar lucro. Por isso, competem entre si e procuram oferecer o maior número de informações e conexões possíveis, pelo acesso de um único endereço, mantendo a sua audiência (visita).
 Ao se fazer uma pesquisa em uma biblioteca, necessita-se acessar os mecanismos de organização do acervo. Localizar o assunto, buscá-lo na prateleira correta, e, posteriormente, apropiar-se da obra em si. Como vemos, a pesquisa é precedida de toda uma intencionalidade. No ambiente de rede, a navegação por hiperlinks seria analogicamente precedida por estas mesmas atitudes, já que, por seus nódulos de conexão, pode-se entrar em outras páginas, assuntos correlacionados, tal como, na obra escrita são as referências, as bibliografias, que desenvolvem toda uma cadeia de indicações e de aprofundamento de um tema.
 O risco da desorientação no hipetexto é, pois, o mesmo que todos os pesquisadores em todos os tempos correm, ou seja, a possibilidade da perda de rumo e de tempo, do desperdício, e, de certo modo,  do risco de saturação. Quer seja na biblioteca analógica, quer seja no ambiente digital, o importante é saber de onde se vai dar início ao processo de busca, mantendo-se voltado para o que, em princípio, se quer saber. Tanto numa, como noutra experiência, além do risco da desorientação, há também a possibilidade do prazer da descoberta de coisas que não se tinha intenção de procurar, não se esperava encontrar e  sequer se supunha existir. O que difere nestas mídias é a velocidade e a alteração do espaço com que isso se dá no hipertexto

2. O tempo e as concepções de Prigogine
 “(...) o passado já passou, portanto, não existe,
o futuro não existe todavia, o presente se encontra entre dois nadas,
porém, o presente, o agora é um ponto sem extensão,
enquanto o presente está aí, já não é, portanto o agora é
contraditório e consiste por si mesmo outro nada.”
Minkowiski (1973: 24)

 O tempo ainda é hoje um dos mais intrigantes mistérios na natureza. Ninguém pode ainda defini-lo com exatidão. Para a Física, o tempo é uma coordenada que, juntamente com as coordenadas espaciais, é necessária para localizar univocamente uma ocorrência física. No mundo real, de experienciação, os acontecimentos marcam a passagem do tempo em antes e depois. Quando o homem começou a contar eventos repetidos, começou a medir o tempo. Alguns deles parecem acontecer uma única vez, é o que se conhece como  singularidade. Outros, porém, ocorrem repetidamente, como o nascer e o pôr do Sol, o movimento das marés, as fases da Lua.
 Até o século 19 tinha-se a imagem de um universo eterno, estático, oposto à idéia de um universo termodinâmico, por sua vez também eterno, mas em evolução rumo a uma morte térmica e condenado a pôr fim a toda a história.  A esses tipos de universos  imutável e condenado  sucederam-se novas teorias. Para Newton, o espaço era absoluto, não dependendo da localização do observador, o tempo tinha seu fluxo igual e uniformemente em todos os lugares e para todos os observadores. Einstein, em 1920, vem propor que nem o espaço nem o tempo são absolutos, mas estabelecem uma relação dependente com o observador e concebe um universo como uma entidade estática fechada em si mesma, uma esfera de volume finito e intemporal.
 Foi a partir das constatações de Hublle, em 1929, que a Física passou a dispor de elementos para entender que o universo teve sua origem no fenômeno conhecido como Big Bang. Graças aos seus estudos e observações, constatou-se que as galáxias emitem luzes com tendência a cor vermelha proporcionalmente à sua distância em relação à Terra. Isso levou a Física a concluir que o nosso é um Universo em expansão.
Hoje, para a maioria dos físicos o universo está em expansão, tem uma idade e uma origem. Eles acreditam que o evento do Big Bang confirma a teoria da singularidade tanto da origem do universo como do nascimento do tempo.
2.1. Ilya Prigogine e a reconfiguração do espaço-tempo

  Por volta de 1985, ao ser solicitado pelo físico Ivanenko, da Universidade Lomonosoff, em Moscou, a escrever uma curta frase na parede, Ilya Prigogine profetizou: O tempo precede a existência. Esse pequeno acontecimento, aparentemente insignificante, não só exprimia um pensamento singular na Física como propunha uma nova concepção de existência, de universo e de tempo. Prêmio Nobel de Química, Prigogine, em suas obras O fim das Certezas e Entre o Tempo e a Eternidade expõe suas teorias a respeito do assunto. Nelas, Prigogine (1988:171) compara a coordenada do tempo apresentada por teorias anteriores sobre a origem do Universo e afirma: O universo seria criação contínua, sucessão infinita de Universos a nascer por toda a parte e a caminhar rumo ao infinito. E ainda, ao referir-se ao nascimento do tempo:
Não podemos pensar a origem do tempo, mas apenas nas explosões entrópicas que a pressupõem e são criadoras de novas temporalidades, produtoras de existências  novas caracterizadas por tempos qualitativamente novos. Ou, ainda: O universo é um sistema termodinâmico gigante. Em todos os níveis, encontramos instabilidades e bifurcações (PRIGOGINE,1996:194).

 No capítulo intitulado O Nascimento do Tempo, da obra Entre o Tempo e a Eternidade, Prigogine questiona: quem poderia imaginar que se pudesse ser levado à concepção de que a morte térmica do universo poderia estar situada não no fim da história, mas no seu começo? Para ele, as leis da Física, em sua formulação tradicional, descrevem um mundo idealizado, um mundo estável e não um mundo instável, evolutivo, em que vivemos. Os desenvolvimentos da Física e da Química de não-equilíbrio mostram que a flecha do tempo  pode ser uma fonte de ordem e não de desordem como aparentemente o modelo entrópico propõe, pois, a irreversibilidade leva ao mesmo tempo à desordem e à ordem, afirma, ele.

 O modelo de universo, proposto por Prigogine, vai de encontro à cosmologia contemporânea, que propõe vivermos em um universo em expansão irreversível e se pudéssemos voltar no tempo, seríamos capazes de encontrar a singularidade do evento que deu origem ao tempo e ao próprio universo. Nesse caso, o Big Bang constituir-se-ia numa singularidade absoluta, que, na verdade, contentaria físicos e teólogos. É a isso que Prigogine (1988: 152) contesta ao afirmar sua instigante teoria:
a passagem à existência, tornada fisicamente inteligível, por isso mesmo não seria um acontecimento único, mas um processo que obedece a condições determinadas. Poderia tornar-se concebível que outros universos tenham precedido o nosso e possam suceder a ele.

  Para a maioria dos físicos, o Universo está em expansão, tem uma idade e uma origem no Big Bang.  O modelo proposto por Prigogine, no entanto, concebe o Universo com uma idade e uma flecha do tempo que não tem seu início por ocasião desse evento entrópico. Essa ocorrência seria um processo irreversível (...) e a irreversibilidade resultaria numa instabilidade do pré-universo.  O tempo precede a existência, conclui. A existência é um acontecimento na flecha do tempo: Não somos nós que geramos a flecha do tempo. Muito pelo contrário, somos seus filhos (1996: 12). Tal afirmação de Prigogine (1996: 13) leva-nos a crença de que podemos conceber o Big Bang como um evento associado a uma instabilidade; concebido como um ponto de partida do nosso universo, mas não o do tempo: Temos uma idade, nossa civilização tem uma idade, nosso universo tem uma idade, mas o tempo, por seu lado, não tem começo nem fim  (PRIGOGINE,1996, p.173).
 Prigogine afirma pretender construir um caminho estreito entre a idéia do acaso e do determinismo, pois, segundo afirma, ambas levam igualmente à alienação, a de um mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem descrito em termos gerais (1996, p.198).
Prigogine propõe então o fim das certezas e do determinismo fatídico do fim da história impostos pelo modelo termodinâmico e nos apresenta o futuro como uma opção dentre inúmeras possibilidades de escolha - o universo é um sistema termodinâmico gigante. Em todos os níveis, encontramos instabilidade e bifurcações (1996: p.194). Subverte, assim, a interpretação da Física para o fenômeno do Big Bang, interpretando-o  como um dos inúmeros  eventos probabilísticos ocorridos na flecha absoluta do tempo.
 Para Prigogine o nascimento de nosso universo traduz-se por uma explosão de entropia (1996, p. 189). Ele é mais explícito ainda quando diz:
agora vemos a  irreversibilidade associada não mais  à morte térmica do Universo, mas a seu nascimento; não mais a uma evolução que conduz sem retorno a um estado inerte, mas talvez a uma eterna sucessão de Universos. (Na flecha preexistente do tempo), nosso Universo seguiu um caminho de bifurcações sucessivas, poderia ter seguido outros. Talvez possamos dizer o mesmo sobre a vida de cada um de nós, afirma (PRIGOGINE,1996, p. 75).


3. No ambiente do hipertexto: o hiperlink como acontecimento entrópico e abertura para novas reconfigurações
 
 A trajetória humana é construída por acontecimentos no tempo, que, por sua magnitude, acabam significando marcos de redirecionamentos da História. Fatos ocorrem que, tal como o Big Bang, desviam rotas previstas e significam, realmente, a abertura para novas e imprevisíveis possibilidades e destinos. Difícil é para quem vive estes instantes, precisar a verdadeira dimensão do presente como alteração de cursos do futuro.
 É fato, que vivemos uma autêntica revolução cultural, cuja repercussão sequer pode ser dimensionada.  A conexão de um computador e uma linha telefônica mudou a face do mundo, ao permitir o acesso à informação, sobre os mais variados assuntos,  onde quer que esta se encontre. A informação - matéria prima do conhecimento humano - não se circunscreve mais à dominância dos emissores; a mídia Internet - semiótica por excelência - inverteu o processo de acesso, armazenamento e consumo da mensagem. É o receptor quem determina sua trilha, de maneira absolutamente pessoal, num território de infindáveis e distintos caminhos.
 O hipertexto traz em si a mesma idéia de deslocamento e remetente, que o livro já trazia, só que de uma forma mais dinâmica: um clique com o mause em cima da palavra-chave destacada do texto, substitui o esforço de se direcionar a pesquisa para outras páginas, outros livros. Mas, nem sempre o link encontra-se facilmente visualizado; algumas vezes, é necessário surfar com o mause sobre a tela até encontrar, inesperadamente, o ícone adequado.
 O hipertexto como mídia de linguagem híbrida adquire, com a estruturação que lhe dá Rosemberg (1996), um espaço de possibilidade de criação do leitor, de um documento virtual, resultante das escolhas de leitura proporcionadas pela navegação. Leão (1997, p. 29) detalha em seu artigo os três conceitos  desenvolvidos por Rosemberg. O ato de seguir um link é por ele categorizado como actema, quando o leitor de um hipertexto clica sobre uma hotword ele é levado para uma outra parte do documento, ou mesmo para  para um outro ponto da rede.  Esse simples ato rompe com a linearidade da leitura e abre novos caminhos. Diversos actemas, que vão criando uma referencialidade, uma certa coerência com o repertório do leitor, Rosemberg conceitua como episódio. Já há, nesta sucessão de atos, uma conectividade estabelecida entre leitor e mensagens disponibilizadas pelo hipertexto. Por último, ao tempo dedicado a exploração de um sistema hipertextual, o pesquisador, denomina de sessão. O importante neste estágio é que este tempo pode extrapolar o tempo real de navegação, ou seja, de acordo com Leão (1997, p. 30), o leitor pode empreender diversas sessões, com o objetivo de extrair algo “lógico” conseqüente (ou seja, de formar um episódio).  Nesse caso, tanto  o episódio (referencialidade) pode se formar a partir de diversas sessões que vão se superpondo, como uma única sessão pode significar diversas interconexões de episódios, que vão se abrindo para outras possibilidades de reconfiguração do paideuma.
 O aparecimento dessa metodologia ocasionou uma revolução na maneira de se acessar a informação. Não se trata de afirmar que o hiperlink impeça a possibilidade de uma leitura linear, contudo, a limita, ou a conduz pela captação do olhar e o direcionamento da atenção para a marcação, que passa a sugerir uma leitura não-linear, já que, um documento-hipertexto, sob o suporte do computador, pode ser apropriado de diversas maneiras, dependentes, inclusive, do apelo estético, despertado por palavras e imagens que sugerem o processo de linkagem. Surge daí, a idéia de navegar, ou surfar, como liberdade de se alterar o curso da leitura a qualquer momento, sem qualquer obrigação de direcionamento, mas, mantendo também, a possibilidade da ordem e da lógica.

Considerações finais

 O repertório individual constitutivo do paideuma é uma construção que resulta de incontáveis situações em que as informações, metabolizadas, se transformam em acervo de conhecimento.  Esse processo de semiose dá-se em um ambiente cultural, que Lotman denomina por semiosfera, sob a concepção de cultura como memória coletiva não-hereditária, onde é possível se dar a resignificação de linguagens. Conseqüentemente, também, pode localizar-se nesse ambiente o lugar da reconfiguração de repertórios de conhecimentos e pré-juízos individuais e coletivos.
 Landow (1992) discute o hipertexto e chama atenção para a reconfiguração do texto que, ao ser trilhado pelo leitor, possibilita também uma  nova prática de escritura, transformando o leitor em co-autor.  A informação acessada instiga à atividade da descoberta, dando-lhe oportunidade de autonomia para tirar da idéia o rumo para trilhar um caminho pessoal, conseqüentemente, reescrevendo  o que já fora escrito e, que, na verdade, se apresenta, neste contexto, como momento de entropia e mudança de caminho, sob a perspectiva de Prigogine, como vimos. O leitor do hipertexto, ao fazer o percurso do documento movido por suas escolhas, acaba por criar um documento virtual, inédito e irrepetível. Parece-me que a reconfiguração que se dá no repertório do receptor que acessa a mensagem digitalizada e a desorientação proporcionada pelas perspectivas que o processo de lincagem apresenta, corroboram esses mesmos princípios. 
A possibilidade de se encontrar o passado no presente, embutido na reconfiguração do paideuma, está consubstanciado em Prigogine, embutido no conceito de explosão de Lotman e na construção dos episódios, declinados por Rosemberg. Esta perspectiva evidenciada, primeiramente na literatura de Joyce e de Borges, destaca-se sobremaneira na tela do computador, o qual, embora, aparentemente se configure como simulacro do livro, adquire a singularidade de ser o suporte apropriado à intertextualidade de linguagens híbridas e o lugar de ocorrência do rompimento definitivo com a linearidade.
No entanto, é bom assegurar-se que, no âmbito do hipertexto, concomitante ao sentido do jogo, da diversão, da perda e também do ganho, está embutido também o sentido agonístico proporcionado pelo estranhamento, o confronto e a reorganização de referenciais de conhecimentos, hierarquicamente formulados por um pensamento ainda cartesianamente dominante.
Sites visitados incita-nos a uma reorganização de paideuma já em sua abordagem primeira: pela predominância da língua inglesa, o que obriga a transformar um sistema de codificação lingüística em outro repertório que não, propriamente, o do leitor. Essa primeira abordagem será sempre um elemento de estranhamento, mesmo que, pouco a pouco, tal obstáculo venha a ser domesticado, referenciado ao background poliglota do agente da navegação.
As iniciativas e opções que se vão abrindo no percurso de novas e até irrepetíveis possibilidades de pesquisa (ou visita) conduzem, antes da constatação do ganho, a um sentido de perda, de descontrole e domínio que o livro, de certo modo, parece assegurar. Para Rosemberg, a abordagem hipertextual implica em uma atitude de se perseguir um episódio, ou seja, de se estabelecer combinatórias que vão fazendo sentido no âmbito do leitor; reconstruíndo saberes anteriores. Para ele, o sentido de desorientação advém da perda desse fio do episódio. 
 O hipertexto remete-nos para a vastidão ilimitada da informação, mobiliza-nos a trilhar caminhos não previsíveis e, mesmo irreconciliáveis com o passado, pela abertura que nos oferece para o campo das probabilidades, incontidas nesta mídia, mas absolutamente limitadas pelos suportes de papel, o mundo da escritura do livro e, também, das mídias eletrônicas de massa.  Mas, uma visita a web dá-nos também a oportunidade da reconfiguração de repertório, pela instigação, oferecendo-nos a perspectiva da autonomia, da descoberta de variados caminhos, absolutamente singulares, às vezes criando uma trilha original, pela qual, nenhum outro navegador ainda passou, nem trilhará.
 Existe uma natural perda do limite entre o que é pesquisar e entreter-se, no hipertexto, pois a ausência de seqüência linear faz com que entre em jogo o background do leitor, oferecendo-lhe a oportunidade de tornar-se também um escritor que, com sua ação, modifica a estrutura anterior do texto. Essa interatividade só é possível pela troca que se estabelece, resultando em outra coisa, diferente, muita vez, do que originalmente, se pensava comunicar, ou pesquisar. Há uma tendência absoluta de se mesclar a pesquisa com o prazer de criar. Para Prigogine,  é o acontecimento  que distingue o passado do futuro e constitui-se no agora, isto é, no possível. É ele quem afirma:
Em cada caso, o acontecimento cria uma diferença entre o passado e o futuro, (...). Ele é o produto inteligível de um passado de que, porém, não  poderia ser deduzido.  Ele abre caminho para um futuro histórico em que se decidirá a insignificância ou o sentido de suas conseqüências (PRIGOGINE, 1988: p. 177).

 A atividade da pesquisa, ou da navegação, no hipertexto, em si, é um fenômeno de caráter temporal. Cada decisão tomada, cada ação de acnase, desencadeia sempre um futuro imediato e sucessivo de episódios, desconhecidos enquanto não se realizam, já que possibilitam a abertura para outras escolhas e realizações. Estamos sempre na iminência de optar por trilhas e coisas que por sua vez desencadearão outras como sucessão ou conseqüências de múltiplas escolhas e decisões que tomamos ou poderíamos ter tomado, pelo uso do livre-arbítrio, na construção do conhecimento singular, em conformidade com a peculiaridade, o repertório e a potencialidade de cada um.

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

Referência Bibliográfica


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*Doutora em Comunicação e Semiótica, pela PUC de São Paulo.

 


Autor: maria angela mirault


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