Antes da Chuva



Cinco do onze. Fala sério. Até ontem era maio, lembro bem. Quando piscar o olho de novo, será quinze do onze. Minha amiga do coração me mandou um e-mail. Eu leio de pavio a pavio, porque a palavra dela é incandescente. Depois, quis  responder, mas era tanto a dizer, que desisti. Palavras movem moinhos. Leio-a, e, ao lê-la, me reciclo. Um dia eu explico.

Daqui até o hospital dá quase uma hora. Passo por lugares que já passei, e que já não me dizem nada. Acho que é assim mesmo. Os significados não são geográficos.

Meu pai estava com enjôo. A enfermeira disse não ser um bom negócio ele vomitar, por conta de outras explicações. Pela graça do Universo estávamos à sós. Demos as mãos. Acho que ambos olhamos para o passado e concluímos termos feito o melhor que pudemos. O calor entre as mãos concluiu o resto, ou antes, o essencial.  Falei que ele ia sair dessa. Seu gesto de cabeça indicou o vigor do ser que habita aquele corpo e quer vencer essa situação. Aquilo me deu força, confesso.

Saí do hospital para a segunda etapa da romaria semanal, que consiste em estar algumas horas com meus progenitores. A vida não lhes foi madrasta. Simplesmente estão na colheita. Eu idem.

O ônibus sempre pára a léguas da casa onde minha mãe se encontra. Subida no fim do trajeto, que me deixa com o coração apertado, não pela subida, mas pela configuração do presente e suas frações.  Ela está sozinha, ainda que o quarto seja amplo, rodeado de eucaliptos e passarinhos. Me pergunta das crianças. Disse-lhe que não as vejo há tempos, que se escafederam nos seus ciclos evolutivos e que a falta que eu sinto, um dia, se tornará mais amena.

Me serviram chafé.

Ela quis saber que sacola era aquela que eu carregava. Mostrei-lhe o conteúdo: garrafas de água vazias, que dentro em pouco iriam ser enchidas na fonte. Trocamos beijos e abraços e dissemos "eu te amo".

Toca a descer a ladeira, e o transporte público longe de constituir-se numa ciência exata. Mas os encontros são exatos. Sentada perto do cobrador, vasculhando a bolsa, estava a Vera. Não nos vemos desde junho. Dei-lhe um susto.

Há 5 anos atrás, o filho dela caiu do décimo oitavo andar, por conta de um erro de cálculo. Durante esse período, chegavam contas dele pelo correio, que não deveriam mais ser cobradas, mas Vera pagava, talvez para manter qualquer coisa acesa. Esse ano, contudo, ela se formou em Direito e devolveu a correspondência para o remetente com uma carta assinada "De cujos". Que em linguagem jurídica significa, o falecido.

- Você sabe – disse ela – foi o primeiro dias das mães que eu não chorei.

Deitei a cabeça dela no meu ombro, e na quietude os pesares flutuaram um tanto.

Minha avó perdeu dois filhos. Dois tios que significaram muito para mim. Minha infância e adolescência teriam sido cinzentas sem a alegria deles. De repente foi um, no ano seguinte foi o outro. Sem aviso prévio. Dizem que a vida é lógica.

Vera desceu no próximo ponto, mais animada, estava indo para uma concessionária comprar um carro.

Quem coloca as pessoas no caminho da gente?

Antes da fonte, duas escalas. A primeira na casa do Luiz. Estou levando para ele um CD, com a diagramação do livro do pai dele. É presente de aniversário.  Título do livro: "Por que não somos felizes, se esse é o objetivo de tudo o que fazemos?"

Não, obrigado, não quero subir, preciso chegar na fonte antes que feche.

Perguntou-me como eu estava, respondi-lhe que estava "à distância".
Ele sorriu e comentou que é assim mesmo, que chega um momento em que a nossa postura não é mais com os outros, mas com a gente mesmo.

Última escala. O ritual é aos brados, pois a campainha quebrou. Numa das mãos o Lu traz uma sacola, na outra uma coleira para conduzir o Joe. Joe age como um cachorro. Lembra muito um cachorro. Ele tem um problema qualquer no palato, que o obriga a parar e respirar como um asmático. Depois ele volta a latir e a abanar o rabo.

No céu nuvens e mais nuvens. Penso nos meus pais, nas suas desencontradas trajetórias e no desfecho de pouca alegria.

Falamos da Vera e do Luiz. Quem sabe uma noite dessas marcamos uma pizza e besteirol.

Ano passado, nesse mesma época, morei na casa do Lu durante 65 dias. No que me diz respeito, foi uma estada reflexia na "lanterna dos afogados".

O Lu habita e rege uma honrada clínica veterinária. Toda vez que eu pergunto dos bichos ele responde: os bichos estão em recuperação.
Circunstâncias do destino forjaram uma amizade que, se for regada à contento, vai cumprir o rito da amizade. O caminho até a fonte é ameno, com muitas árvores, além de folhas e flores espalhadas pelo chão. Cada qual com sua sacola de garrafas vazias vai desfiando conversa mole, juntamente com o Joe, que tem 4 patas, um focinho na frente e um rabo atrás.

- Que bicho é esse? – perguntou o guarda, na entrada lateral.

Findos os trâmites do torneiral, visto que a água da fonte sai em torneiras, demos de cara com a Vera e o Luiz. Vera vinha estrear o carro com umas compras, pois na fonte tem um super. Luiz disse que tão logo eu saí, a esposa lhe lembrou de comprar qualquer coisa. Que caminho vocês fizeram?, quis saber ele, e dissemos, o mais tranqüilo, por causa do Joe. Bastou falar e o cão arranjou uma encrenca com outro, 8 vezes maior do que ele. Rebuliço na fonte. Depois passou, pois como cantava o Gil, tudo tem de passar, inclusive um rebuliço.

Hora do café numa mesa muito pequena para os 4. Comentei com eles sobre um certo questionário desenvolvido por Marcel Proust, e que dentre as perguntas havia esta: qual a sua maior realização na vida?

Luiz completa hoje 59 anos (parabéns, amigo). Vera está com 63. Lu, 52. Este escriba, 4.8. Nos olhamos perante a questão e, unânimes, embora sem alarde, concordamos que nossa maior realização foi ter sobrevivido. Pelo menos até aqui. Todos sabem a quem pertence o amanhã. 

A impaciência do Joe, o céu ameaçador, os compromissos de cada um levou-nos à despedida e à breve promessa de meia calabresa, meia portuguesa.

Cheguei em casa e fui colocar mais uma ripa de madeira na arca. A cada dia acrescento uma. Urge finalizar a arca.  Noé construiu a arca antes da chuva. Depois da chuva seria um despropósito.

Ciao.


Autor: Bernard Gontier


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