Do vendaval à brisa



Quando despertei, estava com uma fome tremenda, embora sabia não ser capaz de ingerir alimento algum. Sentia um frio interior e uma sede perturbadora, caminhei até a janela e fechei as cortinas de linho verde musgo novinhas em folha. Meus lábios estavam secos, as palmas das minhas mãos transpiravam incansavelmente, minha visão estava embaçada e a minha pele estava incrivelmente suja.

Já era tarde demais para tomar qualquer atitude, aquele cheiro já estava dentro do pedaço mais meu que poderia existir. É, eu dizia para eu mesma, sentada à beira daquela cama luxuosa com seus lençóis feitos do mais fino algodão egípcio, a morte causa isso na gente: rouba, das cores, sua vibração natural. Arrasta consigo o gosto dos alimentos. Como um monstro fosse, devora as emoções presentes nos sentimentos, o sentir e o ser passam a ser atos ridiculamente ínfimos. Podemos ter o mundo aos nossos pés, mas quando perdemos alguém que amamos, todas as coisas passam a ser coisa alguma.
Em toda parte havia resquícios daquele corpo que sucumbiu ao meu lado na cama. Por toda parte olhos, olhos de uma criança triste e quase cega. Ele era o único ideal que me irraízava à vida, eu estremecia de medo ao pensar que poderia perdê-lo. E o que resta à uma mulher que viu morrer seu único ideal?

Eu me perco em águas mistas de lembranças, tristeza e agonia, cada vez em que relembro daquele dia. Queria lhe pedir calma, mas seu permanente estado de pânico já atingia-me àquela altura da noite.
Era ridiculamente irônica a forma com que o sol, o novo dia e as promessas de renovações de esperança chegavam, pois nada-nada-nada de inovador havia ali. Ao contrário, a luz daquele dia que chegava parecia diminuí-lo ainda ais; ao invés de nascer novamente, ele morria um pouco mais a cada nascer do sol. Quem olhasse no fundo de seus olhos, poderiam enxergar.
Não queria prosseguir com aquilo, sentia um estranho medo. Se um dia, ao acordar, ele não estiver mais ali? E se ele diminuísse ao ponto de sumir até de mesmo de dentro de mim? Teria valido a pena tanto esforço?

"As pessoas bonitas carregam uma maldição dentro delas - meu velho pai sempre dizia-, permaneça sempre distante delas, está me ouvindo, filha? São pessoas tristes pois sua beleza é tão maravilhosa quanto inútil. São seres amargurados e sempre arrastam quem as venera para o fundo do poço junto delas..."

Anos após minha bela mãe abandonar a mim e ao meu pai para fugir com um grande empresário norte-americano bem sucedido, cujo amor doentio fez com que ele a matasse ao jogá-la para fora do seu carro luxuoso em pleno movimento, lá estava eu, a observar mais uma beleza gélida e inútil, deitado em uma cama fria, ele definhava lindamente. Seus belos e grandes olhos verdes, tão marcantes, era impressionante como fechados eles não possuíam o mesmo brilho.
De fato, não sabia como ajudá-lo, a situação já era uma batalha travada em meu íntimo. Mas como poderia fazê-lo parar de desejar desistir a todo instante? Como? Se meu dia amanhecera cético?
O meu dinheiro, assim como seu rosto lindo, não salvaria nossas almas e o tal Deus, bem, não posso afirmar que exista para todos. À minha frente, não havia chances naquela manhã.
Não sabia mais de qual maneira agir. Minha respiração ia com voracidade. Estava ao lado de um semi-cadáver , em uma cama estranha, que não era a minha. E cada canto, cada ar que eu respirava e cada centímetro da coberta que, agora, cobria a parte inferior do meu corpo, cada minuciosidade era a presença dele, era sua lembrança. Havia um santinho em cima da mesa de cabeceira: um homem pregado à uma cruz, com uma expressão de sofrimento, vigiava todo passo que eu dava.
Quanto ao meu lindo garoto a dormir inocentemente, aquela imagem em cima da mesa parecia dar-lhe de ombros, o ignorava.
Hesitei, refleti... É incrivelmente melancólico como os mortos não estão, necessariamente, mortos. Assim como nós podemos não estar, verdadeiramente, vivos.
Um longo suspiro.

Enfim, meu pesadelo chegava ao término, estava na minha hora de sair para o trabalho. Já poderia arrancar de mim aquelas roupas, aquele corpo, aquele rosto fantasmagórico. Já poderia me colocar de molho em alvejantes como fazem as donas de casa infelizes, eliminando qualquer vestígio daquela sujeira toda.
Entre o vai-e-vem das pessoas no metrô, entre uma parada e outra, entre uma rua e outra, entre um olhar e outro, entre tudo que minha semi-esquizofrenia matinal não possibilitou-me enxergar naquela manhã, entre cada ação do viver compreendi que - realmente- havia ficado tarde demais para mim, para nós. Em outros tempos, seria inaceitável para mim não estar a morrer de amor por quem estava ao meu lado. Veja só o que me tornei, me responda, espelho, vejo só...

Havia entrado naquela vida e tão cedo não conseguiria sair. A atitude mais nobre que há, insiste em jamais abandonar o barco, ignorando as tempestades por, simplesmente, confiar no sol que irá regressar, foi o que sempre me disseram.
Aquele parecia ser apenas o primeiro capítulo de um novo livro. E temo o seu fim, antes mesmo do início.
É que tem esse gosto em minha boca, esse cheiro em meu corpo... e parecem ter chegado para ficar.

Constatação: À noite, indo para casa, com as pernas exaustas e a mente ainda mais, com os pés cheios de bolhas e com a boca muda, pude entender o que ele tentava gritar a todo instante: deveras, de nada adianta uma vida sem motivos.


Autor: Chana de Moura


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