A Experiência Cultural do Homem no Patrimônio Goiano das 'Águas Quentes'



Tal texto será expoente de pontuações sobre o processo de guarda dos “testemunhos” culturais da humanidade, considerando o complexo sistema de representações que fornecem significado (i)material ao patrimônio cultural da cidade de Caldas Velhas (atualmente Rio Quente) que – por sua monumentalidade calcada na existência das ‘águas quentes’ – é capaz de evocar o passado, (re)significando-o ‘a cada leitura humana’. O patrimônio cultural, assim, associado à memória e por vezes alicerçado na matéria termal, será o elemento norteador desta pauta, construída no seio de um momento histórico de profundas transformações ‘conceptivas’, em particular, na acepção de patrimônio cultural e a sua natureza (i)material - guardiã cultural tangível e intangível da identidade e memória dos povos. Por essa via, então, são utilizados referenciais teóricos de natureza sócio-histórico-cultural, para que seja vislumbrado o patrimônio de Rio Quente – com algumas analogias à cidade de Caldas Novas e ao binômio do ‘antigo-moderno’ -, pautado na existência de uma identidade e memória específicas da região goiana, de maior exploração turística, das águas termais.

1. Da monumentalidade à (i)materialidade do 'patrimônio das águas quentes'

A existência dos seres vivos no nosso planeta, em termos relativos, tem curta duração. E essa afirmação é válida mesmo quando se consideram alguns exemplares de longa vida da fauna ou da flora, cuja aparência nos levaria a crer numa relativa eternidade. Em outras palavras, todos os seres vivos estão sujeitos a um fim. Ao expandir o pensamento e direcionar a percepção ao grande universo é possível realizar um movimento de compreensão de que nada é permanente.

É possível que a efemeridade dos seres que compõem o universo seja evidenciada quando se lê:

Goiás é um estado onde a natureza mostrou-se extremamente generosa, pois, além das riquezas de flora e fauna, possui um notável manancial hídrico. Rios de águas quentes, cristalinas e piscosas; cachoeiras, cascatas, lagos, represas imensas; enfim, um legado que hoje se reflete numa política de preservação ambiental voltada para o turismo e comprometida com o equilíbrio ecológico (Berocan, 2005, p. 242).

Então, também em Goiás, muitos conceitos impregnados na vida humana - alguns baseados no fim de tudo – são fortes razões para que seja explicada a intenção e a compreensão de que atitudes preservacionistas, por exemplo, possam significar a perenidade de que é temporário – quase como dizer: 'já que irei, algo ficará'.

Remete-se, então, a matéria a expressão da grandeza "monumental", assumida pelas atividades humanas e/ou naturais, especialmente quando estas primeiras são manifestações singulares de caráter popular, e, ainda, a missão de serem os bens elementos comprovadores de que a memória da sociedade se imaterializa na (i)materialidade do momumentum.

A palavra latina Monumentum remete para a raiz indo-européia Men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo significa "fazer recordar", "de onde", "avisar", "iluminar", "instruir". O monumentum é o sinal do passado. Atendendo às suas origens filosóficas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar as recordações, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos Monumenta Hujus Ordinis (Philippical, XIV, 41) , designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do Senado [...] O monumentum tem como característica a liga-se ao poder da perpertuação (é o legado à memória coletiva) e o reenviar à testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos (Le Goff, 1990, p. 535).

Assim, o apego material, legado do capital, tanto no nível pessoal como no coletivo, é justificado pela razão de salvaguardar a memória. Desse modo, como coletar e preservar monumentos -patrimônios materiais e imateriais -, são atos notoriamente humanos, essas questões têm ocupado, com destaque, o centro de discussões acerca do patrimônio, por sua ambígua natureza, e por estar associado a experiência preservacionista.

Por isso, as longas pontuações sobre longo da história sócio-cultural do complexo termal de Goiás -, baseado em crenças sobre o 'milagre da cura' pelas águas quentes que brotam do solo goiano, na unidade de pensamento arraigada em premissas 'míticas idênticas' para a origem de todo o complexo termal, e, ainda, na edificação do 'patrimônio das águas quentes' sobre a memória e a identidade que unifica três comunidades distintas, e ao mesmo tempo, pares em modos de agir e conceber o território espacial e imagético local.

2. A água termal enquanto 'laço e desenlaço' da experiência cultural do homem

A preservação dos valores culturais e ambientais caracteriza-se, crescentemente, como uma tendência da atualidade. A valorização das coisas locais, em contraposição à globalização da economia e da comunicação, reveste de importância a manutenção de identidades específicas, que garantam às pessoas a referência do seu lugar.

O governo das cidades defronta-se com os desafios da economia sustentada, com o resgate da identidade local e com a necessidade de promoção do desenvolvimento. Em resposta a este cenário, novas articulações entre governo e sociedade organizada aproximam pólos de poder opostos em ações estratégicas. (Fisher apud Simão, 2006, p.19)

O passado e suas referencias marcadas no território, as manifestações tradicionais, repassadas de geração em geração, as formas de fazer – objetos, alimentos, festas – voltam, na virada do milênio, a ser valorizados. Por isso, no Estado de Goiás, começa-se a sentir, novamente, necessidade de entender o passado como um referencial para a construção do futuro e como um processo contínuo de fruição, em contraste ao pensamento iluminista, base da cultura há dois séculos, que desvincula o passado e vislumbra o futuro sob o ideal da modernidade.

Desse modo, o passado e sua evocação direcionam empresários/turistas/moradores do complexo termal - que unifica Rio Quente, Caldas Novas e Lagoa de Pirapitinga - a percorrerem o caminho da fé, na busca pela recuperação da sanidade tangível e intangível do corpo, por exemplo, como forma de (re)viver no patrimônio 'laços e desenlaços' (in)tangíveis.

Segundo os estudos da empresa Furnas Centrais Elétricas, o termalismo de Caldas Novas decorre de características geológicas e topográficas peculiares. [...] O subsolo da região de Caldas Novas permite que a água quente, sob pressão, aflore naturalmente, como ocorre na Pousada do Rio Quente e na Lagoa de Pirapitinga. [...] Os índios que habitavam essa região (guayazes, guaianazes, caiapós e xavantes) já conheciam os efeitos benéficos das águas quentes para a saúde. O homem branco usa, há mais de duzentos anos, essas águas para fins terapêuticos e relaxamento. Antigamente era usada principalmente para a cura de doenças de pele, como o mal de Hansen (lepra) e também do reumatismo, pois aliviava muito as dores. Hoje em dia existem remédios mais potentes contra aqueles males e as águas são mais usadas para o lazer e contra o estresse (Albuquerque, 1996, pp. 57-60).

O patrimônio cultural do complexo das águas termais goianas, pela via dessa 'fé (re)significada', fornece atualmente até mesmo subsídios para a (re)leitura de experiências humanas associadas à influência de 'mitos de cura' – sejam da na história regional análoga à literatura bíblica – para a constituição dos signos histórico-culturais que abarcam a natureza (i)material das águas quentes do Complexo das Caldas Novas que abarca a Lagoa de Pirapitinga, Caldas Novas e 'Caldas Velhas' – onde se concentra a cidade de Rio Quente.

Segundo o Dr. Pimentel (1974) os resultados terapêuticos das águas de Caldas se devem à presença dos gases raros, talvez o hélio e o argônio, que acompanham o azoto livre das águas termais. 'É notável a eficácia das águas termais de Goiás na cura das mais variadas moléstias', diz ele. [...] Principalmente em relação ao banho – que produz em Caldas Novas um pronunciado efeito geral no organismo, tornando o corpo leve, o sono calmo e profundo, a digestão perfeita, a respiração ampla e o movimento desembaraçado. (Corrêa Neto, 1918). Podem ser usadas internamente. [...] Ajudam a eliminar as toxinas e estimulam a secreção biliar e intestinal e ainda a circulação geral. São úteis pois nas constipações e intoxicações; e estimulam as funções do fígado (Teixeira Neto et al., 1986, pp. 69-70).

Assim, o papel da preservação do patrimônio cultural de Rio Quente, Caldas Novas e Pirapitinga extrapolam, nesse momento, os limites da história e da memória, uma vez que esta começa a cumprir um papel mais que político e econômico, para ser ainda histórico-cultural e social.

[...]

Como vulcões arrependidos

a encosta dos morros

com detalhes verdes,

parecia sorrir como lactante,

chamando o homem

para a ingenuidade de seu destino

A água morna

amaciava a sombra

sob cujo teto,

o tapete cristalino de pedras despretenciosas

refletia no solo

a epiderme do céu.

(Carneiro apud Oriente et al., 1982, p. 7)

A existência de processos - (re)significados – de 'cura pelas águas', de 'fé nos banhos curativos' e de 'milagre da vida' por meio da apropriação das águas quentes do complexo goiano das termas somente vem confirmar a amplitude das atividades sócio-culturais imersas nesse contexto humano. Assim, vale considerar que, a 'religiosidade' implícita em tais expressões e/ou manifestações da 'cultura das águas quentes' evidencia o emaranhado complexo que símbolos e seres que constituem a vida do lugar de 'curas, ritos e fé' e, ainda, 'lendas, mitos e rituais', todos 'religiosamente' (re)significados.

Em 1942, eu cheguei aqui para esta região, com apenas doze anos de idade. Minha mãe, viúva, e mais seis irmãos menores. A nossa primeira morada foi um rancho de pau-a-pique, nas proximidades das fontes. [...] As fontes estavam ali, com suas águas quentinhas para o banho de cada dia. No local, era uma verdadeira romaria. Gente chegando de todos os lados, alguns doentes, outros quase morrendo, na esperança de se curarem naquelas águas. Abrigavam-se como podiam. Os mais doentes, fracos, estes morriam e por ali mesmo eram sepultados. Havia um cemitério cercado com lascas de madeira e muitas cruzes. Meu Deus! Era a assombração da minha vida e dos meus irmãos menores. [...] (Nogueira, 2002, p. 91).

Assim, pesquisar sobre preservação patrimonial e compreendê-la implica, de modo fundamental, em desvendar não somente as características culturais mas, sobretudo, em avaliar possibilidades se ampliar o leque entendimento dos processos que regem as atividades humanas naqueles núcleos urbanos, possuidores de acervos culturais (i)materializados, sejam ou tenham sido eles produzidos 'consciente, inconsciente ou naturalmente'.

4. Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Carlos. Caldas Novas – além das águas quentes. Goiânia: Kelps, 1996.

BEROCAN, Aracy. Águas goianas, Caldas Novas, Rio Quente, Três Ranchos. In: CHAUL, Nasr Fayad. (Orgs). Goiás: 1722-2002. Goiânia: Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira/AGEPEL, 2005.

CARNEIRO, Omar. Encontro Primeiro. In: ORIENTE, Taylor. As fabulosas águas quentes de Caldas Novas. Goiânia: Oriente, 1982.

LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

NOGUEIRA, Arnaldo. Pousada do Rio Quente Resorts. Uberlândia: Tipografia Brasil Editora, 2002.

SAHLINS, Marshal. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SIMÃO, M. C. R. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

TEIXEIRA NETO, Antônio et al. Complexo Termal de Caldas Novas. Goiânia: UFG, 1986.


Autor: Margarida do Amaral Silva


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