Uma reflexão sobre o niilismo como 'estado psicológico' no pensamento nietzschiano



Ao se pensar filosofia contemporânea, alguns autores ficam evidenciados por causa da grandeza de seus pensamentos. Dentre estes, destaca-se Friedrich Wilhelm Nietzsche, um dos mais importantes e conhecidos expoentes da reflexão filosófica contemporânea. Este pensador, geralmente, é conhecido pelo senso comum por tratar em suas obras de temas intrigantes e polêmicos que geram grandes discussões nos grupos que debatem filosofia.

A polemicidade do pensamento de Nietzsche ocorre principalmente porque este autor vai na contramão dos pilares do pensamento ocidental ao expor suas idéias. Ele acentua a dimensão "irracional" do ser humano (na abordagem do apolíneo e dionisíaco, dando destaque ao segundo), constata a morte de Deus e depara-se com o niilismo. E é justamente este último que se buscará aprofundar neste artigo acadêmico.

Ao longo da História da Filosofia alguns autores já abordaram o tema do niilismo em seus escritos. No entanto, a abordagem desta temática nem sempre é tão simples quanto a princípio pode parecer. Na reflexão sobre o niilismo uma das dificuldades que se encontra são os mais diversos significados que são dados a este termo e que às vezes afastam-se do que ele significa realmente.

Em Nietzsche, o niilismo tem sua gênese com a constatação da morte de Deus. Esta se comprova no seguinte fragmento da obra Gaia Ciência:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: "Procuro Deus! Procuro Deus!"? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – Gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. "Para onde foi Deus?", gritou ele, "já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! (...) Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodressem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob nossos punhais – quem nos limpará este sangue?"[1]

A partir do momento que se "tira Deus de cena", os valores que eram prezados pela civilização ocidental perdem o seu sentido, tornando-se ultrapassados. Como conseqüência disto o homem contemporâneo vê-se diante do mais sinistro de todos os hóspedes: o niilismo, que gera a ausência de sentido para a vida.

O mal dos próximos dois séculos. É assim que Nietzsche vê o niilismo em sua obra Frammenti postumi, como se relata na seguinte passagem:

Descrevo aquilo que virá: o advento do niilismo. Posso descrevê-lo agora porque agora se produz algo necessário – e os sinais desse estão em toda a parte, para vê-los faltam apenas os olhos. Aqui não comemoro nem lamento que isso aconteça: acredito que, mesmo na maior crise, deve haver um momento em que o homem se volta para si mesmo de uma forma mais profunda; que o homem consiga restabelecer-se depois, que consiga sair dessas crises, é uma questão de força: é possível... (...) O que estou relatando é a história dos dois próximos séculos.[2]

Afirmando o niilismo Nietzsche está apenas constatando uma realidade que se fazia presente na Europa na época em que ele vivia. Esse "hóspede sinistro" é resultado de um processo histórico-cultural do Ocidente iniciado com Platão, fruto da dicotomia entre mundo sensível (transitório e aparente) e mundo supra-sensível (verdadeiro e almejado). O primeiro é venerado e o segundo, onde ocorre a existência humana, é deixado de lado.[3] A respeito disto, diz Roberto Machado: "Se a religião judaico-cristã e a metafísica socrático-platônica são por natureza niilistas é porque julgam e desvalorizam a vida temporal a partir do mundo supra-sensível e eterno considerado bom e verdadeiro".[4]

Para o filósofo alemão, inventar um outro mundo como fez o platonismo – mundo do bem e da verdade – é caluniar a vida. Por isso o seu intuito é superar o niilismo iniciado com o platonismo. Do contrário, caso não consiga desvencilhar-se da dicotomia mundo supra-sensível e mundo sensível preconizado por Platão, que influenciou a cultura ocidental, o mundo será sem valor e sentido.

O niilismo acarretaria, na visão nietzschiana, sérias consequências para a sociedade. A mais grave delas seria a extrema forma do niilismo: o nada (o "sem sentido") eterno![5] Com a presença deste mal haveria uma carência de ideais, a perda de valores outrora considerados supremos e por fim uma ausência de Deus como lugar dos valores mais elevados. Diz Nietzsche:

A conseqüência niilista (a crença na ausência de valor) como decorrência da estimativa moral de valor: perdemos o gosto pelo egoístico (mesmo depois da compreensão da impossibilidade de um liberum arbitrium e de uma "liberdade inteligível"). Vemos que não alcançamos a esfera em que pusemos nossos valores – com isso a outra esfera – em que vivemos, de nenhum modo ainda ganhou em valor: ao contrário, estamos cansados porque perdemos o estímulo principal. "Foi em vão até agora!"[6]

Tudo isso levaria o homem a deparar-se com a sensação de vazio, sem que ele encontre uma finalidade para sua existência.

Nietzsche também aponta em suas obras o niilismo como "estado psicológico"[7] sob três formas. Um primeiro tipo ocorre quando se procura em algo um sentido que não existe neste algo. Desta feita, o que ocorre é um desperdício de força, um sentimento de sentir-se enganado, pois de certa forma houve um desperdício de tempo. Há uma busca de algo que deve ser alcançado, mas não o é.

Uma outra forma de niilismo apresentada por ele como estado psicológico pode ser constatada quando "se tiver colocado uma totalidade, uma sistematização, ou mesmo uma organização em todo acontecer e debaixo de todo acontecer".[8] O autor alemão completa:

"O bem do universal exige o abandono do indivíduo" ...mas, vede, não há um tal universal! No fundo, o homem perdeu a crença em seu valor, quando através dele não atua um todo infinitamente valioso: isto é, ele concebeu um tal todo, para poder acreditar em seu valor.[9]

A terceira e última forma de niilismo como estado psicológico apresentada por Nietzsche é a seguinte:

Tão logo, porém, o homem descobre como somente por necessidades psicológicas esse mundo foi montado e como não tem absolutamente nenhum direito a ele, surge a última forma de niilismo, que encerra em si a descrença em um mundo metafísico, que se proíbe a crença em um mundo verdadeiro. Desse ponto de vista admite-se a realidade do vir-a-ser como única realidade, proíbe-se a si toda espécie de via dissimulada que leve a ultramundos e falsas divindades – mas não se suporta esse mundo, que já não se pode negar...[10]

Na tentativa de escapar destes tipos de niilismo, o alemão propõe que se condene o mundo do vir-a-ser como ilusão e que se invente um mundo que esteja para além dele como verdadeiro mundo. No intuito de superar o niilismo, o que Nietzsche propõe é a transvaloração de todos os valores completada pela vontade de potência, seguindo o caminho árduo e solitário da grandeza que leva ao "Além-Homem". Isto se confirma na passagem da obra Assim Falava Zaratustra:

Eu vos ensino o Além-Homem. O homem é algo que deve ser superado. (...) Tal deve ser o homem para o Além-Homem: uma irrisão ou uma vergonha. (...) Eis, eu vos ensino o Além-Homem. O Além-Homem é o sentido da terra. Assim fale a vossa vontade: possa o Além-Homem tornar-se o sentido da terra! Exorto-vos ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperança supraterrestre. (...) Blasfemar contra Deus era outrora a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele mortos são os blasfemadores. Agora o crime mais espantoso é blasfemar da terra, e dar mais valor às entranhas do insondável do que ao sentir da terra.[11]

O Além-Homem, como vê Roberto Machado, é todo aquele que supera as oposições terrestre-além, sensível-espiritual, corpo-alma; é todo aquele que supera a ilusão do mundo do além e se volta para a terra. O Além-Homem é, assim, superação, ultrapassagem do homem do passado e sua crença em Deus. Ele é a superação do homem, um novo modo de sentir, pensar, avaliar, uma nova forma de vida. Em resumo é aquele que tem uma vontade viva.[12]

Percebeu-se, portanto, que o tema do niilismo no pensamento nietzschiano veio constatar que com a ausência de Deus, o pensamento é instigado a buscar novos rumos para si mesmo, uma vez que o sentido e o fundamento das coisas, dos objetos do pensar são colocados em descrédito. Consequentemente há um profundo vazio. Contudo, Nietzsche mais a frente irá desenvolver uma temática tendo em vista a superação do niilismo, o qual já foi citado neste trabalho como início do mesmo com a transvaloração de todos os valores e a valorização do Além-Homem. Entretanto, este trabalho se limitou a refletir um dos possíveis caminhos de superação do niilismo, uma vez que os seguintes são conteúdos para outros possíveis artigos.

Referências bibliográficas

GOMES, Eliseu Donizete de Paiva. Uma leitura do niilismo nietzschiano como história do ocidente. Mariana, Instituto de Filosofia São José, 2004. (Trabalho de conclusão de curso de Filosofia).

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2001.

___________________. Assim Falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis: Vozes, 2007.

___________________. Sobre o Niilismo e o Eterno Retorno. In: Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

MACHADO, Roberto Cabral de Melo. "Deus, Homem, Super homem". Revista Kriterion 89 – volume 35, Belo Horizonte, 1994, p.21-32.




Autor: Philipe Fernandes Nogueira


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