A crise de 2008, pior que se pensava?



A crise de 2008, pior que se pensava?

 


Fausto Bernardes Morey Filho
Fevereiro de 2009


A crise mundial de 2008

A crise mundial de 2008 talvez seja o mais importante episódio econômico dos últimos 70 anos. Por muito tempo ela será fonte de produção acadêmica, de acalorados debates ideológicos e de atuação política e governamental, mas, principalmente, de sofrimento para muitos.

O sistema econômico é complexo e os resultados que produz dependem das escolhas realizadas pelos agentes econômicos. A econometria fornece o ferramental para, entre outras coisas, monitorar e acompanhar o desempenho do sistema. Portanto, em tese, seria possível adotar decisões racionais, porém, aspectos subjetivos como arrojo ou medo, segurança ou insegurança, euforia ou depressão, entre outros, podem influenciá-las.

Várias questões têm sido formuladas, entre elas, uma parece despertar um interesse especial: será que a crise poderia ter sido prevista e evitada? As crises são gestadas ao longo dos anos e os sinais sobre eventuais problemas são emitidos permanentemente. Estes potenciais sinais precursores da crise são reconhecidos como tal, quando apresentam alterações significativas sobre o padrão esperado ou repetem o comportamento observado em crises antecedentes.

Se nos últimos anos foram captados sinais inequívocos de uma crise, por que razão ninguém adotou as providencias necessárias para evitá-la? É possível imaginar algumas explicações para a inação, tais como:

- Os debates e as interpretações antagônicas sobre o significado dos sinais precursores antecedem, em muito, o reconhecimento mais amplo que há algo errado com a economia e, então, as medidas são adotadas tardiamente. Nouriel Roubini[1] e Paul Krugman[2] alertaram sobre os problemas, mas não foram ouvidos ou considerados.

- Há uma incapacidade de interpretar os dados obtidos, então, cada nova informação sobre os desdobramentos da crise parece surpreender a todos: empresários, economistas, analistas de mercado, e principalmente, agentes públicos no comando da economia e a reação é aguardar para ver como fica.

- Muitas decisões políticas respondem às questões emergenciais e as autoridades acabam por adotar medidas que aliviam os problemas no curto prazo, mesmo que elas acarretem riscos no longo prazo. Parece que ninguém está disposto a adotar medidas duras no presente para eventualmente colher bons frutos no futuro.

Onde há fumaça há fogo – os sinais precursores

O estopim da crise mundial de 2008 ocorreu no início de 2007, quando o mercado se deu conta do aumento da inadimplência de hipotecas no mercado americano, incluindo a modalidade que popularmente deu nome à crise no Brasil: sub-prime[3]. Porém, na última década, foram emitidos vários sinais precursores da crise nos EUA, entre outros:

- A escalada sem precedentes dos preços dos imóveis;

- O declínio da taxa de poupança dos americanos em relação ao PIB. Entre 1950 a 1970 a taxa foi, na média, aproximadamente 8%, entre 1970 e 1990 aproximadamente 9% A partir de 1993, ela declinou constantemente e pode ter atingido zero no final de 2008;

- A seqüência de elevadas taxas de lucro em relação ao PIB: a taxa de lucro após impostos com relação ao PIB, apurados desde 1929, compõe uma curva com vales e picos oscilando por volta de um ponto percentual em relação à média de aproximadamente 5%. Em 1929 o lucro atingiu 8,9%, muito acima da média, e somente superado em 2006 e em seguida em 2007, quando atingiu 10,1%. Quando os picos são muito superiores à média eles são seguidos por taxas de lucro negativas.

Um documento recente oferece[4] uma análise panorâmica sobre as mais de 200 crises econômicas e financeiras que ocorreram desde a moratória inglesa do século 14 até a atual crise nos EUA. Os autores concluíram que, considerando que os maiores episódios de insolvência ocorrem em intervalos espaçados por anos ou até mesmo décadas, acaba sendo criada a ilusão que "desta vez é diferente". Recentemente, esta ilusão espalhou a crença que o déficit público americano e o desequilíbrio de suas contas externas eram parte da nova paisagem financeira.

Em um documento apresentado em 3 de janeiro de 2009[5] na reunião do American Economic Association em San Francisco, Reinhart e Rogoff focaram suas análises nas 18 crises[6] financeiras e bancárias ocorridas após a 2ª Guerra Mundial em países desenvolvidos, tais como as crises da Espanha 1977, da Noruega 1987, da Finlândia 1991, da Suécia 1991 e do Japão 1992. Das crises ocorridas nos mercados emergentes, eles examinaram as crises da Ásia 1997-1998 (Hong Kong, Indonésia, Malásia, Filipinas e Tailândia), da Colômbia 1998 e da Argentina 2001. Uma declaração em particular merece destaque:

" um ano, nós apresentamos uma análise histórica comparando a crise financeira sub-prime com as crises bancárias antecedentes desde a 2ª Guerra Mundial. Mostramos que os padrões dos indicadores econômicos para os EUA - inflação dos ativos, grandes déficits, redução do crescimento econômico exibiam todos os sinais que a nação estava à beira de uma crise financeira, na verdade, uma crise severa".(Reinhart e Rogoff, 2008. The aftermath of financial crises[7]– tradução nossa).

As crises anteriores foram usualmente acompanhadas por inflação de ativos, depreciação cambial, crise bancária e desvalorização monetária e, neste sentido, dificilmente a atual crise financeira é singular. Ela foi debitada a diferentes causas e entre as mais citadas estão: a desregulamentação do mercado financeiro, a falta de acompanhamento e de fiscalização por parte das autoridades e a manutenção dos juros em patamares muito baixos por muito tempo pelo FED - Federal Reserve durante a gestão de Alan Greenspan. Porém, outros fatores devem ser considerados, tais como: a impossibilidade em manter o crescimento do consumo apenas alavancado pela concessão, irresponsável ou não, de crédito, a exploração insustentável dos recursos naturais considerados os atuais métodos ou tecnologias de produção e os graves desajustes da economia americana.

Os graves desajustes da economia americana

A análise dos fundamentos econômicos americanos permitiria afirmar, não fossem os EUA o foco da análise, que nos últimos anos a economia tem estado na eminência de uma grave crise de insolvência, com uma situação semelhante ou pior que a observada, por exemplo, no Brasil ou na Argentina, no momento que foram deflagradas as suas crises de déficit gêmeo[8].

Déficit público - O documento "Long-Term Fiscal Outlook - Action Is Needed to Avoid the Possibility of a Serious Economic Disruption in the Future" foi apresentado em janeiro de 2008 ao senado americano pelo GAO - United States Government Accountability Office e relata que, se não houvesse uma adequada e profunda intervenção, os EUA enfrentariam uma espiral de crescimento dos déficits públicos, principalmente em decorrência dos desajustes do sistema de saúde pública e a despeito das melhorias verificadas nas contas públicas nos últimos anos[9].

Gráfico 1: Unified Surpluses and Deficits as a Share of GDP

under Alternative Fiscal Policy Simulations – GAO (recorte direto do documento)


Em abril de 2008, uma versão revisada deste relatório previa que, em 30 anos, o déficit público americano poderia situar-se entre 6% e 15% do PIB, ou seja, uma situação insustentável. Um observador atento verificará que em abril, o GAO ainda estimava (vide gráfico 1) que o déficit público em 2008 ficaria abaixo dos 4% do PIB. Porém, naquele momento os gastos com o enfrentamento da crise bancária e as perdas de arrecadação decorrente do aprofundamento da recessão não haviam sido considerados. O resultado mostrará que já em 2008, o déficit público está perto de 8% do PIB, ou seja, quase US$ 1 trilhão. A previsão para 2009 é que o déficit será dramaticamente superior.

Déficit Externo – De 1960 a 1992 havia um relativo equilíbrio na balança comercial, de serviços e de rendas dos EUA, porém, a partir de 1997 o comportamento das contas mudou e o déficit externo tornou-se persistente e crescente como é possível observar no lado direito do Gráfico 2. No final de 2008, apesar da recessão, o déficit externo pode ter atingido US$ 800 bilhões, ou seja, alarmantes 5% do PIB. Então, a situação vai piorar muito antes de melhorar. Em publicação recente, Godley[10] declara:

"há nove anos parecia possível que uma desvalorização de 25% do dólar seria um bom truque, porém agora é necessário um ajuste significativamente maior. Se os EUA tentarem restabelecer o pleno emprego apenas através da política fiscal e monetária, o déficit da balança de pagamentos pode subir, digo, nos próximos 3 ou 4 anos, para 6% do PIB ou mais, nível que não seria possível sustentar por um longo período". (tradução nossa).


Gráfico 2 - Balança comercial, de serviços e fluxo de rendas USA (1989 - 2007) (Valor nominal)


Fonte:

Bureau of Economic Analysis – BEA - U.S. International Transactions Accounts Data – Série histórica de 1960 – 2007, tabela criada em 15 de dezembro de 2008 e publicada em 17 de dezembro de 2008. Dados tratados pelo autor.

Estoque de dívida pública - Além do desequilíbrio das contas públicas e das contas externas, o estoque de dívida pública dos EUA tem crescido de forma continua desde 1999, porém, após 2001 ela quase dobrou de tamanho, atingindo no início de 2009 mais de US$ 10,6 trilhões. A dívida cresceu 87,9%, porém, a parcela de dívida intergovernamental[11] cresceu 113,24% contra os 73,81% de crescimento da dívida em mãos do público (Tabela 1).

Tabela 1 – Dívida pública nominal dos EUA - Em trilhões de dólares[12]


Autor: Fausto Morey


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