Em que mundo você vive



No mundo do Sr. Paulo R., nome fictício para uma pessoa real, a festa de  formatura na faculdade de engenharia foi um marco em sua vida. Em meados dos anos 50, Paulo R., então contratado por uma grande empreiteira, foi o supervisor geral na modernização de uma das principais rodovias do país, sendo também o autor dos cálculos sobre os coeficientes de resistência dos enormes viadutos. Estudantes do ITA adoravam dizer que engenharia civil não é uma engenharia de excelência, que trabalha-se com margens de erro expressivamente maiores, com percentuais de até 2 dígitos, ao passo que a deles, que concebe aviões, por exemplo, sequer sonha com esse luxo. Em todo caso, o Sr. Paulo R., na época recém formado e cheio de vitalidade, tinha uma enorme responsabilidade e um pequeno cacoete: ele adorava licor de malte. E o sorvia em quantidade, enquanto calculava. Foi quando lhe veio a seguinte concepção: se tal viaduto, com um vão de tantos metros de comprimento, necessita, digamos, de um coeficiente 5, para suportar o peso dos caminhões, vou colocar logo um coeficiente 35, para garantir. Naquele instante, e, supõe-se, graças ao consumo exagerado do licor, selou-se a sorte das gerações vindouras de caminhoneiros, pois a cartilha de então ainda nem sonhava com os veículos modernos, turbinados e super-pesados, que passariam a trafegar pela rodovia, dali há 30 anos. O mundo do Sr. Paulo R., ainda que inconsciente disso, executou uma ação preventiva que pouparia muitas vidas.

No mundo do Sr. Jacó do Bandolim há a composição chamada “Noites Cariocas”. Numa tarde de outono, em meados dos anos 70, o Sr. P.A., sigla real de uma sumidade no cenário musical brasileiro, sendo o Sr. P.A. maestro, instrumentista peso pesado, produtor, arranjador, musicólogo e compositor, cujo nome, quando proferido nos bastidores, os que por lá atuam silenciam em sinal de profundo respeito. Tive a fortuna de conviver com o referido senhor por alguns anos, sendo mesmo testemunha de seu talento e de sua aversão a qualquer tipo de publicidade.  Ocorre que, em meados dos anos 70 o  Sr. P.A. era um alto executivo de uma multinacional, ainda solteiro e com uma carreira promissora pela frente, formado com distinção em administração de empresas, morando sozinho num apartamento na vila Buarque e tendo por companhia um violão, que volta meia ele dedilhava, “era uma espécie de hobby, sei lá...”, dizia ele. Mas, em dada tarde de outono, voltando do escritório mais cedo, em virtude de uma febre repentina, ouviu pelo rádio do carro “Noites Cariocas”, de Jacó do Bandolim. Foi a forquilha do seu destino. Uma terrível angústia juntou-se à febre e a uma madrugada insone, transida pela beleza da melodia.  A palavra outono, aqui, não é artefato literário, trata-se do marco preciso, temporal, pois já no segundo semestre de 1976 o Sr. P.A. estava matriculado num conservatório no bairro do Ipiranga, para transformar àquilo que antes era encarado como um recreio despretensioso, num meio de vida com acentuada expressão.   

O mundo do Sr. Jorge, ou “seu” Jorge, nunca lhe perguntei o nome, ouvi uma única vez uma senhora chamando-o assim, é composto de duas esquinas: Teixeira da Silva com alameda Santos. Outro componente desse mundo entende-se por um carro de madeira, pintada de verde,  com rodas, também de madeira, pintadas de vermelho. A fruta predominante exposta sobre o carro é a banana, sendo que, vez por outra, vicejam papaias e pêssegos. No mundo do Sr. Jorge faz-se obrigatório um dinheirinho extra e uma diplomacia precisa para com o vigia de um imóvel abandonado, na Manoel da Nóbrega, local que abriga seu veículo durante a noite, já que esta ele desfruta em  casa, na vila Matilde, uma distância considerável do seu local de trabalho. Verdade seja dita, no mundo do “seu” Jorge a cadência da adaptação não flui ao som de violinos, ele já se acostumou com a distância, afinal saiu do Rio de Janeiro em 1962 direto para o longínquo bairro paulistano. Quando lhe pergunto se tem saudades do Rio seus olhos marejam, e com um sotaque castiço ele atesta ser o melhor lugar do mundo, e só saiu de lá porque Carlos Lacerda deixou o governo, “porque aquilo que era governo, o Lacerda pegava os mendigo tudo, punha num navio e mandava jogar em alto mar”. Sr. Jorge manifesta seus ideais políticos com um vasto sorriso, pois em qualquer mundo, se não há idéias, há ideais. Ou o inverso.

O sr. Adolfo P. vive num mundo mecanizado, onde o som das engrenagens lhe permite adjetivar o andamento das mesmas. Adolfo é mecânico por excelência, por vocação  e por ofício. Aos 65 anos e ainda fazendo exercícios com pesos regularmente, seu grande lazer consiste em passeios dominicais com sua Harley Davison. Coisa de, 3 anos passados, trafegando pelas vicinais próximas da grande São Paulo, uma manhã nublada não lhe freou o ímpeto de passear com sua motocicleta. Dada altura, a ausência de  sinalização correta na estrada e um nevoeiro, somado ao transe praticamente hipnótico de deslizar pelo asfalto, Adolfo P. sentiu por breves segundos a sensação de flutuar no espaço. Uma sensação longe de alegorias poéticas, pois a ponte fora partida ao meio, a comunicação do departamento de estradas esqueceu-se de colocar barreiras preventivas, mais o intenso nevoeiro, Adolfo conta que estava mesmo voando, um salto de 30 e tantos metros de altura onde não sofreu nada além de uma luxação no tornozelo.  Também não lamenta a perda total da motocicleta. Desde esse dia, o mundo do Sr. Adolfo ganhou um elemento chamando milagre, e os santos ganharam mais um devoto, que hoje usa capacete, comprou outra moto e continua a clinicar automóveis. No mundo do sr. Adolfo impera uma antiga oficina, repleta de inúmeras ferramentas e aparelhos, sendo o mais valioso deles seu ouvido esquerdo, já que é praticamente surdo do direito. Adolfo só atende amigos e conhecidos, ou clientes remanescentes de seus estabelecimentos mais portentosos, dos idos de 1970. Ninguém chega na sua oficina para verificar o nível  do óleo ou trocar pastilhas de freio. Chegam em busca de um diagnóstico. Adolfo pede para ligar o carro, abrir o capô, e então ele se inclina com o ouvido esquerdo e escuta. Já vi isso várias vezes. Já não acho mais impressionante.

Na mega livraria xis, próxima à minha casa, há um display colossal logo na entrada, dizendo que você deve ler o livro tal, de fulano, que até Obama leu, “caso você tenha o interesse de saber em que mundo você vive”. Pretensiosa e espalhafatosa como quase toda publicidade de varejo, as aspas me pareceram ultrapassar os limites, pois davam conotação de serem palavras do autor. Talvez seja o mundo em que ele vive.

Em moldes de leitura, e não necessariamente literários, o engenheiro lê regularmente a revista do instituto de engenharia da cidade em que vive, além de livros de Alan Kardec. Nas horas vagas, o maestro lê quadrinhos e biografias de expoentes da música brasileira nos anos 30, tais como Paraguaçu, Canhoto, Tinhorão, etc. O mecânico detesta leitura, exceto os manuais de carros importados e as maravilhas automatizadas. “Seu” Jorge não sabe ler.

O engenheiro é católico não praticante, o músico é ateu, o mecânico há pouco se converteu, e de cada 5 palavras do fruteiro, 3 estão ligadas à figuras religiosas, ora do candomblé, ora do catolicismo. Todos são casados. O engenheiro e o mecânico torcem para o Palmeiras. O músico  torce para o XV de Piracicaba, sua terra natal. O fruteiro mal sabe que torcerá para o Flamengo até nas próximas encarnações, tamanho é o seu fervor pelo rubro negro carioca. Democracia aparenta ser uma concepção razoável para cada um deles. E de cada um deles foi extraído o elementar, que se supõe proprietário dos pontos de intersecção entre os seres, pelo menos de sexo masculino e nascidos no mesmo país.

Poderia, apenas por divertimento, continuar a lista acima até perdê-la de vista. Meu ceticismo tem buracos como um queijo suíço. Boa parte desses buracos são preenchidos por coisas que não vejo, mas que acredito. A existência de um laço de união dos incalculáveis mundos é uma delas. A outra é mais visível, sem, portanto, a necessidade do cinismo: só se sai da própria cápsula para adentrar nos escopos mercantil/fisiológico/emotivo, para achar alguma moeda de troca,  de acordo com a necessidade do momento.

Algo, porém, deve ligar todos os mundos, além do oxigênio, por exemplo, ou do planeta em que se vive. Exemplos crassos, ou ralos.

“Estou persuadido que virá um dia em que o fisiologista, o poeta e o filósofo falarão a mesma língua e se entenderão” Claude Bernard.

Me inclino a essas palavras, embora não vislumbre esse dia.

Mas existe o momento em que o um mundo sai de si e encontra outro, sem maiores aspirações ou interesses, escusos ou válidos, mas antes pela necessidade imperativa da união. O Eterno Masculino e o Eterno Feminino sempre estarão com a batuta no mundo em que vivemos. Que necessariamente não necessita de uma bula. Mas imperativamente implora pelas premissas expostas por Marina Lima:

“Você me abre seus braços, e a gente faz um país”.

Seja qual for o mundo em que você vive, amor assim mal não faria.
Muito pelo contrário. Pois aventa-se nesse artigo que o amor que intersecciona é o amor que completa. Porque o nosso mundo deve ser completo, por mais diferenças que possam existir, entre um mundo e outro. Diversos, de muitas origens e tendências, os mundos precisam interagir na vastidão de suas medidas. Vastas, como o amor que a gente sente.


Autor: Bernard Gontier


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