Shindô Renmei: Uma breve história...



Shindo Renmei: uma breve história...

Rogério Dezem[1]

O silêncio e a tranquilidade ao receber a sentença de culpados demonstrado pelos japoneses Hiromi Yamashita, Massakiti Taniguti, Massao Honke, Fumio Ueda, Taro Mushino, Tokuiti Hidaka e Kozunori Yoshida surpreenderam os agentes do DEOPS presentes ao julgamento. Corria o mês de outubro de 1953 e estes japoneses que causaram espanto a polícia política ali presente, eram os sete tokkotais julgados por crime de assassinato e condenados cada um a mais de 10 anos de prisão. Yamashita, Taniguti, Honke, Ueda e Mushino foram condenados inicialmente a dezessete anos de reclusão e oito meses de detenção, enquanto que Hidaka e Yoshida foram condenados por unanimidade a quatorze anos de reclusão. É interessante notar que, durante o julgamento, os réus acusados de terrorismo e homicídio, pelas mortes de Chuzaburo Nomura (abril de 1946) e Jinsaku Wakiyama (junho de 1946) mantiveram uma atitude tranquila, assumindo inteiramente a responsabilidade pelos fatos ocorridos, lamentando o trabalho que estavam dando à Justiça brasileira.Estes "perigosos" japoneses faziam parte da Shindo Renmei, sociedade clandestina que causou alvoroço não só em sua comunidade de origem, a de imigrantes japoneses e descendentes, mas também em dimensão nacional.

Considerada no seio da comunidade nikkey um dos maiores tabus da história dos cem anos de imigração japonesa no Brasil, a Shindo Renmei (Liga do Caminho dos Súditos)representa um dos capítulosmais complexos, violentos e singulares na história dos imigrantes que aqui se radicaram.

A partir de 1937, o Estado Novo varguista com sua política nacionalista, baseada em elementos eugênicos (aperfeiçoamento da "raça brasileira") dava o tom das diretrizesxenófobas tomadas naqueles anos. Segundo a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro (Depto. História /USP)a ditadura varguista pretendia "através de decretos-leis e circulares secretas, converter as diferenças em igualdade. Mas não com o sentido democrático e sim racista. O termo eugenia tornou-se constante nos discursos acadêmicos e políticos expressando ideais similares ao fascismo italiano que almejava, dentre seus objetivos, a 'pureza da raça'".

Foi neste clima que uma série de decretos-leis foram baixados entre os anos de 1938-39.Proibiu-se inicialmente o ensino de línguas estrangeiras nas escolas (Constituição de 1937) e logo depois, um novo decreto proibia o ensino de língua estrangeira para menores de14 anos, além disso foi vedado aos estrangeiros o exercício de qualquer atividade política; de organizar, manter ou criar sociedades que sejam mantidas com verbas do exterior; proibia-se a manutenção de jornais em língua estrangeira; desfiles e/ou manifestações públicas de caráter estrangeiro eram vedadas. Essas medidas atingiram em cheio os alemães e os japoneses aqui radicados.

A paulatina aproximação de Vargas junto aos Estados Unidos e apossibilidade de um conflito mundial no qual os "súditos do Eixo", ou seja, alemães, italianos e japoneses pudessem vir a ser considerados "inimigos", vislumbrou um horizonte sombrio principalmente para a maioria dos imigrantes japoneses aqui radicados. Naquele momento eles se encontravam pressionados por "dois nacionalismos": o japonês, de caráter militarista, baseado em atitudes beligerantes e expansionista e o brasileiro, que acabamos de descrever acima.

Em 1941, ocorreu o fechamento das últimas revistas e jornais em língua japonesa, um deles, o Seishu Shimpô, em seu último editorial fazia um apelo aos japoneses aqui residentes: "Asiáticos voltem para Àsia". Dessa forma abriu-se um vácuo com relação a informação no seio da colônia japonesa, onde a maioria esmagadora tinha nestes jornais sua principal fonte de informação. Privados de informação em língua japonesa, proibidos de alfabetizar seus filhos na língua mãe e, consequentemente, educá-los sob a égide do Yamato Damashii (Espírito Japonês), muitos imigrantes japoneses resolvem voltar imediatamente para o Japão para, entre outras coisas, educar seus filhos sob o Hi-no-maru (bandeira do Sol Nascente).

O ataque japonêsa Pearl Harbor (07/12/1941) e o imediato rompimento por parte do Brasil com os países do Eixo (29/01/1942) reforçou mais ainda o quadro de privações, discriminação e repressão vivenciado pelos japoneses. Os representantes diplomáticos das nações que representavam o Eixo tiveram de deixar o país. A Superintendência de Segurança Pública de São Paulo baixou um edital regulamentando a atividade dos estrangeiros naturais dos países do Eixo. Entre as principais medidas estavam a proibição do uso do idioma das mesmas potênciasem locais públicos; de se deslocarem de uma para outra localidade sem salvo-conduto; de discutir ou trocar idéias em locais públicos, sobre a situação internacional; de se reunirem, ainda que em casa de particulares, a título de comemoração de caráter privado ede exibir em lugar acessível, ou exposto ao público, retratos de membros do governo das potências do Eixo.

Neste contexto de privações e prisões, na qual a "lógica da desconfiança" estava na ordem do dia, havia para a maioria dos japoneses, apenas uma grande certeza: O Japão sairia como grande vencedor do conflito e por isso seus "súditos" aqui radicados deveriam manter " a ferro e fogo" os valores culturais baseados no Yamato Damashii. Foi nesse palco que entre 1942 e 1945, surgiram uma série de associações no seio da colônia japonesa, em sua maioria clandestina. Este seria um dos vários mecanismos, naqueles anos de apreensão, desinformação e incertezas, criados na tentativa de manutenção da cultura japonesa na esperança da volta ao "vitorioso Japão", fato que nunca aconteceu... Ser japonês perante a uma realidade beligerante vivenciada naqueles anos, representava algo mais do que a honra, lealdade, representava a sobrevivência do próprio ethos nipônico .

Existem no mínímo três versões sobre a fundação da Shindo: uma delas coloca que a sociedade surgiu no ano de 1942 em Marília (interior de SP); outra (mais provável) que surgiu entre os anos de 1943 e 1944 com o nome de Kodôsha; e a versão propalada por dirigentes da sociedade de que ela havia surgido logo depois do fim da guerra, ou seja, em agosto de 1945.

O fim da guerra e a veiculação notícia da derrota do Dai Nippon (Grande Japão), nação de 2.600 anos de história e que até aquele momento não havia nunca sido derrotada, caiu como "um raio" na colônia japonesa aqui radicada. Acreditar ou não nas notícias veiculadas pelos "inimigos norte-americanos"? Se até outro dia o Japão estava de forma retumbante esmagando seus inimigos? Confusão e descrença, falta de informações " confiáveis" e boatos, levaram a uma divisão entre os japoneses aqui radicados. De um lado os katigumi("vitoristas"), que devido a falta de fontes de informação em língua japonesa e pela maioriaviver quase que isolada no interior do Estado de São Paulo, acreditavam na vitória do Japão na guerra,este grupo perfazia quase 80% da colônia. Acredita-se também que boa parte daqueles que formavam o grupo katigumi eram imigrantes que não conseguiram se adaptar a realidade brasileira, muitos não obtiveram o sucesso almejado e desse modo alimentavam a esperança na crença " quase cega" da vitória do Japão e do retorno à pátria.

De posição contrária se encontravam os makegumi ("derrotistas" ou "esclarecidos"), grupo formado por aqueles que tinham acesso aos meios de comunicação em língua portuguesa, possibilitando assim a formação de uma consciência da verdade e que, por esses motivos, divulgavam a notícia real de que o Japão havia perdido a Guerra e consequentemente o Imperador Hiroito deixava de ser uma figura "divina". Havia um terceiro grupo, bem menor, chamado pelo memorialista Tomoo Handa de "lero-lero", aqueles que não se definiam nem por um lado nem por outro.

Aproveitando-se dessa confusão entre os patrícios, muitos japoneses criaram artifícios para ludibriar os mais incautos e confusos, propagando não só a vitória do Japão, mas também a história da chegada de um navio no porto de Santos que levaria os imigrantes de volta para a terra do sol nascente, a venda de terras "fertilíssimas" em áreas conquistadas pelo "vitorioso" exército japonês na Àsia ea venda de yen falso e/ou desvalorizado, entre outros boatos.

A Shindo Renmei é em grande parte produto deste universo confuso pelo qual passava a colônia japonesa no pós-guerra. Entre várias sociedades clandestinas (e efêmeras) surgidas ainda na guerra, a sociedade se destacou por sua organização, liderança e capacidade de aglutinar cerca de 120 mil japoneses e descendentes em torno, a princípio de um ideal: a manutenção do Yamato Damashii e convicção de que o Japão não perderia a guerra.

Seus líderes e fundadores foram o ex-Coronel da Cavalaria Junji Kikawa, conhecido como "o velho Kikawa", e outros japoneses, todos isseis, Ryotaro Negoro, Seiti Tomari, Kyo Yamauchi (ex-militar, ).

A Shindo tinha sua sede na Rua Paracatu, 96, no bairro do Jabaquara, na capital paulista e outras 64 filiais espalhadas pelo interior do Estado de São Paulo. Entre os documentos apreendidos na sede da sociedade pela a Polícia Política (DOPS) que investigava o caso, havia ummapa e uma lista das principais cidades e de seus sócios-contribuintes. A cidade de Marília encabeçava a lista com cerca de 12.000 associados, logo depois vinham Pompéia (10.000), Tupã (8.500), Mirandópolis (5.700) entre outras. A maior parte dos associados se encontrava nas regiões da Noroeste e da Alta Paulista no Estado de São Paulo.

Até o início de 1946 elementos ligados a Shindo usavam da intimidação escrita e verbal para com os japoneses considerados makegumis, que estivessempropagando a derrota do Japão por meio de cartas, bilhetes ou até mesmo cartazes afixados nas cidades do interior, todos em língua japonesa. Das ameaças escritas, passou-se para atentados com bombas caseiras e logo depois para assassinatos. Em 7 de março de 1946, ocorreu na cidade de Bastos o primeiro assassinatode um makegumi. A vítima foi Ikuta Mizobe, Diretor Superintendente da Cooperativa Agrícola de Bastos. Atacado de surpresa em sua residência e assassinado por volta das 23:30h. O motivo do crime foi a tradução que Mizobe divulgou da rendição japonesa para os japoneses instalados em sua pequena cidade.

O grupo de assassinos vestidos de capa amarela fazia parte da Tokkotai (abreviação deTaiatari Tokubetsu Kogekitai)ou "pelotão dos moços suicídas". O fato dos tokkotai representarem o braço armado da Shindo Renmei, só foi descoberto tempos depois pelo DEOPS quando da prisão de alguns de seus integrantes, geralmente jovens "fanáticos" de vinte e poucos anos, "liderados" por alguém mais velho e "mais fanático" ainda... Havia a orientação para que caso fossem presos, os tokkotais não deveriam mencionar em hipótese alguma sua filiação a Shindo. Como "regalia" por participar dos tokkotai, seus membros eram isentos de qualquer contribuição, como por exemplo a mensalidade paga por cada associado a sociedade.

O japonês Kamegoro Ogasawara era o aliciador e chefe dos "pelotões de moços suicidas", Ogasawara transformou sua tinturaria Oriente, na cidade de São Paulo em quartel general das missões tokkotai. Jovens vindos em sua maioria do interior, geralmente se reuniam ali e partiam em grupos recebendo capas amarelas, bandeiras do Japão, armas e dinheiro para as "missões" de extermínio de makegumis.

Em abril de 1946 o DOPS dava início ao desmantelamento da Shindo. A maioria de seus dirigentes e principais líderes, em pouco mais de dois meses, foi presa e enviada para a Casa de Detenção de São Paulo. Dos japoneses presos, 155foram enviados para o presídio da Ilha Anchieta, litoral norte do Estado de São Paulo, dos quais 81 foram condenados a expulsão do território nacional em decreto presidencial de agosto de 1946. A efetivação da pena era aguardada por alguns dos presos ansiosamente, pois seriam enviados de volta ao "vitorioso" Japão. Isso nunca ocorreu e a maior parte foi colocada em liberdade entre os anos de 1948 e 1949.

Mesmo com a prisão dos principais líderes e da maioria dos tokkotais, os assassinatos e atentados continuaram até cessar oficialmente em janeiro de 1947. O saldo trágico, entre março de 1946 e janeiro de 1947, foi de 23 mortes e 147 feridos, a maior parte das vítimas foi de makegumis. O "Caso Shindo Renmei" como ficou conhecido entre as autoridades policiais e jurídicas é considerado um dos processos com o maior número de indiciados na história do Brasil com mais de 600 japoneses.

Os fatos relatados acima ainda hoje são tabu na comunidade nikkei. Mesmo com a divulgação de livros, teses e artigos relativos ao tema esta é uma história que ainda está sendo contada. Devemos nos ater também que a grande maioria dos japoneses que estavam associados a Shindo, não se tratavam de "fanáticos", "malucos", longe disso! Na realidade eram imigrantes educados a partir de paradigmas totalmente diferentes à cultura brasileira, vivenciando um momento crucial da história de suas vidas, devido as agruras da guerra e do pós-guerra. Nesse universo sombrio poucas eram as referências "seguras", a Shindo Renmei surge em um momento propagandeando ser a portadora das respostas a uma série de dúvidas que pareciam insofismáveis. Fica a pergunta: Que culpa a maioria destes imigrantes japoneses tinha em simplesmente acreditar na "vitória" do Japão?




Autor: Rogério Dezem


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