Diversidade Religiosa



"Minha devoção à verdade empurrou-me para a política; e posso dizer, sem a mínima hesitação, e também com toda a humildade que não entendem nada de religião aqueles que afirmam que ela nada tem a ver com a política". (Mahatma Gandhi). Em sua reflexão, Gandhi leva-nos a perceber as diversas formas de ver a religião e os diversos significados que sua notória inter-relação com diversos campos produz. Concepções e pontos de vistas à parte, a verdade é que desde o seu surgimento, a religião é concebida como uma forma de se alcançar a verdade, ao ponto que a materialidade humana não conseguiu tocar. Contudo, ao longo da história, a detenção do seu poder a fez um dos maiores fatores de dissociação e conflitos político-sociais; a mesma mão que reza e afaga também fere e mata.

Mas o que nos induz concordar com tal afirmação? São as concretas contradições de algo que nasceu com o objetivo de religar o homem ao divino, uma ponte para duas dimensões praticamente irrelacionáveis. A religião surgiu como uma forma de o homem obter respostas (ou, quem sabe, mais dúvidas) sobre dilemas que permeiam a vida, como a existência e os fenômenos que o envolvem. A crença na existência de uma força maior está presente desde as sociedades antigas (mesopotâmica, céltica, afro-asiática, indígena etc.), as quais se relacionavam com a natureza de forma submissa e temerosa[1]. Do politeísmo greco-romano, aos infindáveis segmentos hindus, passando pelas crenças dos povos pré-colombianos, constata-se na contemporaneidade uma considerável diversidade que as páginas da história, a miscelânea cultural e o bombardeio político proporcionaram à religião, condicionando, assim, a criação e ramificações de inúmeras tendências, muitas vezes distorcidas do seu segmento de origem.

O crescimento e a difusão dessa heterogeneidade e a conseqüente intolerância religiosa (muitas vezes incorporada com objetivos políticos) fizeram da religião o estopim da explosão de inúmeros conflitos, disputas e guerras ao redor do mundo. O conflito entre judeus e palestinos[2] é exemplo disso. Resultado de uma história milenar de diásporas e conquistas, a disputa territorial dos dois povos termina com a instituição de Israel em 1948. Com a reprovação da criação do Estado por parte dos palestinos, a guerra, que antes possuía caráter e motivos ditos religiosos, voltou-se para questões de cunho meramente político.

Em A Crise do Islã: Guerra Santa e Terror Profano, Bernard Lewis examina e discorre sobre as raízes históricas do ressentimento que grande parte de adeptos do islamismo possui em relação ao dito "mundo infiel". Lewis ressalta que "o espelho do fundamentalismo radical não é, necessariamente, a sociedade ocidental, mas todos aqueles que se abrem para o estilo de vida moderna e as tradições democráticas". O Jihad (ou "guerra santa") é retrato da forte ligação entre política e religião (no caso, o islamismo), o que motiva ainda mais os jovens mulçumanos a cumprir com essa obrigação em nome da fidelidade ao passado. Pode-se citar também, como outro exemplo de grande dispersão religiosa na história, a reforma protestante do século XVI, liderada pelo teólogo Martinho Lutero que, inconformado com as heresias e deturpações feitas pela Igreja, promove uma grande revolução religiosa ocidental. Essa divisão marcou a primeira independência de um segmento cristão desligado da Igreja Católica.

Contudo, além de toda essa questão intrigante envolvendo religiosidade, política, questões étnicas e sociais, ao longo da história humana, a religião também se constituiu base social para o convívio em sociedade de inúmeros povos antigos. Nas comunidades indígenas, por exemplo, os rituais religiosos visavam à proteção e, sobretudo, ao bem-estar de todos os tribais, o que proporcionou a formação de sociedades igualitárias, sem sobreposição de umas às outras e sem detenção de poderes. Nessas sociedades, o poder estava sempre entre o povo, no meio dele e nunca sobre ele[3]. O exemplo da religiosidade dos povos indígenas reforça as contradições existentes nas relações construídas nas bases de uma crença.

A religião, portanto, se fez uma via de duplo acesso, na qual, da mesma forma que oferece ao homem uma certa liberdade de vida e uma harmonia em seu convívio, também o propicia ao encarceramento e escravidão de sua própria liberdade de escolha.

Mas o que leva um indivíduo a aderir a uma religião? Para Maria Fioreze[4], a crença e a vivência são necessidades inatas do ser humano, são pavimentos de sua caminhada neste mundo onde a busca do "algo mais", além daquilo que já se conhece e tem, é constante. Neste sentido, o ser humano busca na religião, dentre muitas outras coisas, o porquê dos eventos que o envolvem (já que a ciência o responde apenas o "como"); a razão e o propósito da sua vida e tudo o que é relacionado a ela. Já que as respostas encontradas ao longo de sua busca não suprem o seu questionar a respeito do que transcende ao natural, o homem é sedento por respostas e tem a religião como um caminho que pode levá-lo à verdade. As formas de religiosidade variam de país para país, resultado de culturas, costumes e tradições de cada povo. No Brasil, com a liberdade individual de escolha (assegurada por lei)[5] e a grande pluralidade religiosa, a opção por determinada religião (ou nenhuma delas) e o seguimento das verdades oferecidas por elas estão disponíveis ao indivíduo. Este, por sua vez, utiliza-se de alguns outros critérios de adesão, como o bem-estar, a adaptabilidade, o enquadramento em seu perfil ou simplesmente sua ligação cultural. No país, é predominante a "religião de costume"[6], repassada de gerações como forma de manutenção de tradições e raízes culturais, um dos fatores pelos quais o Brasil possui em sua maioria, adeptos a religiões de orientação cristã.

Sobre o cristianismo, evidencia-se que, de acordo com a ONU, 2,13 bilhões de pessoas ao redor do mundo pertencem à religião cristã, o que dá ao cristianismo o primeiro lugar no ranking de adeptos, seguido do islamismo, com pouco mais um bilhão de seguidores[7]. É válido ressaltar, também, o grande crescimento numérico de adeptos e suas influências na sociedade das diversas religiões e segmentos hindus, tradicionais chineses, cientificistas e ateístas. Como se pode perceber, a adequação dentro de um segmento religioso se dá muitas vezes, também, por questões culturais e geográficas.

Algumas comunidades religiosas se constituem em verdadeiros centros de convívio social entre seus membros e, em muitos segmentos, é estabelecida uma relação fraternal e igualitária, na qual, cada membro tem por obrigação a prestação de auxílio aos demais. Na Maçonaria, por exemplo, seus membros cultivam a filantropia, a democracia, a justiça social, o aclassismo e a humanidade, sendo exposto nos seus próprios rituais a dependência horizontal de cada membro (embora seja excludente em não aceitar mulheres como membros)[8]. A religião, portanto, além de construir uma haste de ligação entre o homem e o seu divino (sobrenatural) também constitui uma fonte de relação social entre os seres humanos dentro de uma comunidade ou na sociedade em geral. Logo, não existe uma "religião minha" pelo simples fato de cada uma possuir uma religião; a religião vive-se em comunidade; a religião é essencialmente comunidade.

A verdade de transcender, bem como de viver em comunidade que a religião propicia são obscuras, pois ao mesmo tempo em que uma religião pode conferir ao homem um sentimento de bem-estar e paz, também se torna motivo de separações, conflitos e mortes. O mesmo artifício usado outrora para aproximar o homem de "Deus" o afasta dele (levando em consideração o "amarás ao teu próximo", embora para alguns isso não possua a menor importância).

Sobre isso, afirma Thomas Hobbes:

O Estado de guerra pertence à natureza humana; a paz só existe enquanto esperança e desejo (...). Já a razão não precisa da moral, pois substitui a moral na política, porque a moral é definida pela religião, e como há muitas religiões, os valores se conflitam. (Thomas Hobbes. Teoria Política, p. 27; 29)

Hobbesdesenvolve, com base em seus ensaios, uma antropologia individualista, acreditando serem problemáticos para o homem os vínculos sociais, políticos e religiosos[9]. Não que esses vínculos sejam, de fato, problemáticos, mas a má vinculação e a associação dos três campos, juntamente com a intolerância e descriminação se tornam extremamente nocivas às relações humanas. Atualmente, inúmeros conflitos envolvendo grupos religiosos são desencadeados em torno do mundo, povos que falam em nome de Deus e trabalham com a noção de absolutismo político e étnico.

Na Irlanda do Norte, por exemplo, a guerra entre protestantes e católicos consiste na separação do distrito de maioria católica do de maioria protestante e juntar-se, então, à República da Irlanda. A Índia e o Paquistão disputam a Cashemira, região dividida sob administração da Índia, Paquistão e China. Há poucos anos, durante a divisão da Iugoslávia, ocorreu a "limpeza étnica" com o objetivo de criar territórios etnicamente homogêneos, onde os sérvios que se intitulavam como ortodoxos; os croatas como católicos e os kosovares e a maioria dos bósnios, mulçumanos, travaram confrontos sangrentos. A luta pela autonomia do norte do Sri-Lanka é o motivo dos conflitos entre budistas e hindus. No Timor Leste, Indonésia, as lutas de independência da ex-colônia portuguesa são caracterizadas como o confronto entre mulçumanos e cristãos, assim como no Sudão, na guerra entre o governo de Khartum e as populações do sul do país. Na Nigéria, oito províncias do norte adotaram leis corânicas[10] como base da legislação civil penal, o que gerou conflitos entre mulçumanos e a minoria cristã[11]. Pouco conhecida, porém com um conflito étnico e religioso não tão menos importante e triste que os demais, Darfur, região situada ao oeste do Sudão vem sofrendo uma das mais graves crises humanitárias da atualidade. Desde os anos 70, o Sudão vive uma guerra civil onde o governo financiava a milícia Janjaweed, de origem árabe, visando combater grupos rebeldes no sul do país. Nos últimos 3 anos, o confronto transformou-se em uma limpeza étnica promovida pelas milícias árabes e apoiada pelo poder público do norte contra a população de origem africana ligada a tribos nativas do sul. Os resultados dessa guerra são os 2,5 milhões de refugiados e aproximadamente 300 mil mortes por doenças, má nutrição e violência. Podemos observar que todo esse caos envolvendo a destruição de vilarejos inteiros, assassinato de mulheres e crianças, apesar de se fundamentar em questões étnicas e religiosas, diversos fatores políticos e econômicos sustentam os interesses das classes envolvidas[12].

Em alguns casos, o termo "caráter religioso" se tornou um clichê para representar os transtornos causados por povos e grupos que se utilizam da intitulação da religião como pretexto, ou mesmo como forma de encobrir os verdadeiros motivos impulsionadores. A falta de tolerância nos leva à falta de razão.

De uma forma mais amena e sem estrondos de canhões e riscos de espadas, a descriminação religiosa existente na sociedade entre diferentes denominações (muitas vezes do mesmo credo) também é retrato do individualismo e interesses egoístas de quem deveria prezar pela união e unidade. A dispersão causada pela religião é apenas mais uma representação da sociedade fragmentada formada ao longo de séculos, onde "a minha verdade e convicção é incontestável e incontrariável; onde o meu jardim da frente não é o quintal do vizinho". De modo geral, da mesma forma que a diversidade religiosa contribuiu para a formação e a caracterização de diferentes povos e, conseqüentemente, a difusão de conceitos e formação cultural do homem, também foi usada por este como forma de afugentamento e autodestruição ("autodestruição coletiva", por sinal).

Por todos os desvios que surgem em torno da opção religiosa e o seu uso como política é gritante a atual situação em que a humanidade se encontra. São as contradições trazidas pela religião e o paradoxo causado por seus desvios de foco que nos levam a imparcialidade da certeza de sua eficácia. Para alguns, é um modo mais claro de ver o mundo, mas, segundo Thomas Edson, uma fraude ilusória. Não faltam fatores que agravem ainda mais a calamidade social que os indivíduos próprios se condicionaram. A religião é apenas mais um entre infindáveis fatores nos quais o homem encontra a justificativa para a sua falta de humanidade; uma válvula minuciosamente articulada e aperfeiçoada ao longo do tempo onde, dentre outras coisas, o impulsiona à beira de um precipício; um caminho que o direciona para cada vez mais longe do seu real foco. Embora existam diversas expressões de fanatismo religioso (motivo da grande maioria dos conflitos), a religião não é fanatismo, é coerência de vida, com seus princípios, com suas escolhas. O homem torna-se coerente quando possui uma religião e muito mais tolerante quando usa a razão. Coerência não é fanatismo e a tolerância se torna, então, expressão da racionalidade.




Autor: Hans Myller


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