Iracema



Além, muito além daquele romantismo, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema, pelas mãos de um dos maiores romancistas brasileiros, José de Alencar. Em forma de “proesia” (uma prosa poética), a história trágica da doce índia (ou da ingênua nação) é contada de maneira suave, acompanhada sempre de musicalidade e imagens fortemente poéticas que não se encontram em qualquer história de amor.

O Indianismo foi adotado na literatura do Brasil, inicialmente no estilo árcade, principalmente, porque se via o índio como “homem natural”, ou ainda “comedor de carne humana, que só o Cristianismo salvaria”. Já no Romantismo, era preciso dar umas cores tropicais, brasileiras, para uma poesia tão americanizada, cultivada pelo culto ao passado e o nacionalismo que mais havia na literatura, e se valia da natureza, da História, de cenas e de costumes nacionais, fórmula à qual o Indianismo Romântico se dobrava ferozmente.

Mas por que, diferentemente de Mário de Andrade, Alencar não criou uma heroína negra? Como ficariam seus leitores escravocratas diante de uma negra vestida de perfeição? Alencar, (tal qual faria Machado de Assis, anos mais tarde) se calou diante dos leitores burgueses ávidos por entreterimento; dobrou-se, foi conivente com a situação de “importação cultural”, afinal, era um deputado.

Iracema (palavra que “coincidentemente” é o anagrama da palavra “América”), é, além de uma trágica história de amor entre uma índia e um branco, a lenda da criação do Ceará, ou ainda, em uma visão mais macroscópica, uma metáfora clara da colonização do Brasil e da América do Sul em geral, pelos europeus e principalmente portugueses, que tiveram a sorte (ou não) de chegar em dia de chuva.

A heroína idealizada, tão própria do Romantismo, “guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã”. Tem um sorriso “mais doce que o favo da jati” e o hálito “mais perfumado que a baunilha”. Iracema sempre está sendo comparada à natureza brasileira, sendo que a virgem é, não se sabe como, ainda mais vivaz e perfeita que o exuberante cenário local. O narrador  descreve com paixão e emoção a síntese de todas as maravilhas naturais do Brasil, e que de tão perfeita é agraciada (ainda mais) pela mãe natureza, como homenagem dos animais.

O narrador é, por mais estranho que pareça, “parcialmente onisciente”, já que sabe dos sentimentos e pensamentos da índia, mas não adivinha os do guerreiro branco, como na cena em que os protagonistas se viram pela primeira vez: “O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara”. Neste momento, ele chega a pronunciar-se em primeira pessoa, atitude justificada no início da obra: "uma história que me contaram nas lindas vargem onde nasci", portanto nota-se ainda que o narrador é nativo, até mesmo por tratar com intimidade as palavras indígenas e próprias da selva.

A obra é narrada, por tanto, em “flash back”. No primeiro capítulo, nossa heroína já está morta, e o guerreiro já partiu na jangada com o fruto do amor e do sofrimento acalentado em seus braços e em sua cultura: “Onde vai a afoita jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?”. O narrador, nada neutro, faz referência à saudade que acompanhará o jovem guerreiro, “cuja tez branca não cora o sangue”, mas que não se partirá da terra onde revoa.

A chegada de Martim, também protagonista e guerreiro, (seu nome, aliás,  remete à Marte, o deus grego da destruição e da guerra), é avassaladora. É como se no ambiente, que era todo harmônico com a suave presença da índia, algo de repente se quebrasse, a paz. A quebra desta harmonia, o narrador deixa clara, não sem ressaltar mais uma vez as perfeições da jovem índia: "Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se". O moço pálido não somente perturbou a vista da jovem, como também seu coração e a paz do coração da tribo. Assim, começa o encanto e a estranheza que causaram um ao outro, os jovens de etnia tão distintas, que não suspeitavam das dramáticas conseqüências que teria esse “caso de amor” (para os povos indígenas).

 Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do Sol, em suas faces incendiadas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor”. É importante lembrar, que Martim, ao tornar Iracema sua esposa, não estava embriagado somente pelo desejo intenso que sentia pela virgem, mas principalmente pelo vinho de Tupã, bebida alucinógena preparada pela “guardiã dos sonhos de jurema”. Nota-se então a metáfora valorosa guardada no seio deste capítulo: no momento do amor, Martim não está consciente, possui a virgem como se fosse somente um sonho, uma alucinação. A doce moça passa então a ser responsável pelo gesto que há de provocar a sua destruição, (da mesma forma que a invasão portuguesa provocará a destruição da floresta virgem e de seu povo nativo).

No entanto, “assim como Martim não tinha qualquer intenção de provocar a morte de sua amada – o faz por paixão – os destruidores da natureza brasileira o fizeram de forma inconsciente e inconseqüente.” Nessa passagem, o romance “toma as dores” européias, e neste “capítulo metafórico”, que poderia conter uma consciência ecológica sobre o processo de destruição das matas, aparece uma outra imagem, uma defesa européia. A outra face da metáfora, mostra-se para leitores brancos e escravocratas, saindo em defesa dos estrangeiros, encantados com as belezas naturais da nova terra, mostrando indiretamente, que os nativos são os culpados por sua desgraça, pois em lugar de se resguardarem, entregaram facilmente seus maiores tesouros.

Neste momento de sedução há ainda uma “inversão de papéis” ou mais uma conivência do romance: “a virgem morena de ardentes amores” seduz o bom guerreiro, que como única intenção tinha a de sonhar com a virgem e depois, um dia, voltar para sua “virgem loura, de castos afetos”. Mas não é exatamente isso que nos conta a história do processo de colonização. Os estrangeiros seduziram os nativos com presentes baratos e “conseguiram convencê-los de que era prova de amizade se alguém levasse embora até o que eles não tinham”.

No momento do conflito, quando Iracema se junta aos Pitiguaras, inimigos de sua tribo Tabajara, a jovem esposa de Martim não traiu somente “o segredo de jurema”, mas tudo que ela antes acreditava; traiu seus irmãos e, essencialmente, a si mesma. Surge então uma metáfora que complementa a idéia anterior: os povos nativos traíram a si mesmos quando não lutaram por sua liberdade, se traíram ao se dobrarem aos encantos europeus e aos seus movimentos colonizadores.

Os últimos capítulos, que narram o casamento, a gravidez e o nascimento de Moacir (“filho da dor”), mostram a infelicidade da pobre esposa, larga de amor e largada por seu guerreiro, que achava no mar e nas lutas um maior complemento para sua alma, que naquela que antes tanto desejara, sua suave esposa Iracema. À índia, o amor pelo pálido guerreiro apagou quase por completo o amor por sua pátria e sua cultura, e a falta que sentia dele a entristecia mais que a falta que por ventura viesse a sentir de sua terra, em momentos de profunda solidão.

Dá-se então o desfecho desse amor de perdição, com a morte de Iracema, e a ida de seu filho de encontro com a cultura européia. A alegoria vem à tona mais uma vez, mostrando a dor e o sofrimento que os nativos viveram após a invasão européia, exilados de si mesmos, de sua cultura e sem reconhecer a terra que era sua, e que os estrangeiros transformaram em tristeza. A vida de Moacir, o primeiro “brasileiro”, custou a vida de sua mãe; nasceu de costas para suas origens, pois é provável que logo tenha aprendido a ser um europeu “quase legítimo”, como o pai, que mais tarde voltou para plantar nas férteis terras de que ele amargou, um outro deus, que não Tupã.

As jandaias continuaram sempre a cantar, mas não mais o doce nome de Iracema. Os nativos, com seus costumes e com Tupã desapareceram, deram lugar à outra etnia, que durante tanto tempo foi submissa, subordinada às ordens e à cultura imposta pelos brancos. E até os dias de hoje, “os Americanos ainda representam grande parte da alegria existente neste mundo”, como “adivinhou” Caetano.

Chico Buarque, por sua vez, modernizou o mito com a canção Iracema voou:

Iracema voou

Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá

Tem saído ao luar
Com um mímico


Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar:
-- É Iracema da América

Na canção, um mito se transforma e completa o outro : imigrante brasileira na América. Ironicamente, ao contrário do emigrante Martin, que foi recebido com o que de melhor havia na sua terra hospedeira, Iracema é clandestina na América. Precisa se esconder, não domina o idioma e lava chão. Iracema, assim como muitos brasileiros, se encontra “sem pátria”, sem identidade num mundo globalizado. E busca em seu anagrama, América, um rosto, uma etnia, um pedaço que lhe falta.

Apesar disso, tem-se ainda uma remota lembrança da origem do povo brasileiro, de nossa grande mãe, Iracema, e de que tudo, tudo passa sobre a terra.

Bibliografia:

ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela e FADEL, Tatiana

Português – Língua e Literatura, ed. Moderna, 2000.

Apostilas Positivo, 2º grau.

CD “Circuladô ao vivo”, 1992 - Caetano Veloso, Disco 1 - Black or White/ Americanos.

CD “As cidades”, 1998 - Chico Buarque, Iracema voou.

Site: http://vbookstore.uol.com.br/resumos/iracema.shtml


Autor: Fernanda Rocha e Castro


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