A Teoria Do Abuso Do Direito No Novo Código Civil



Resumo:

O presente trabalho tem a finalidade de demonstrar uma análise crítica dos limites para o exercício de um direito subjetivo e os efeitos produzidos quando este é exercido irregularmente. Assim, este estudo se concentra na teoria do abuso de direito e sua positivação no Direito pátrio.

Palavras-chaves: abuso de direito, ato ilícito, boa-fé, valores ético-sociais.

A teoria do abuso de direito surge como uma construção da doutrina e da jurisprudência no decorrer do século XX. Mas é no Direito Medieval, com os atos emulativos (aemulatio), que consistiam no exercício de um direito com o objetivo de causar prejuízos a terceiros, que se encontra sua origem. Logo, o titular do direito praticava o ato não para lhe proporcionar um benefício, mas tendo escopo de causar um dano a outrem. A presença destes atos é observada, na era medieval, no âmbito do direito de propriedade. Importa mencionar que o Direito Romano não desconhecia o instituto do abuso de direito, pois o utilizava para solucionar casos concretos a exemplo: a perda da propriedade quando o titular se recusava a prestar caução de dano infecto.

Anterior ao Código Napoleônico, o exercício regular de um direito era consagrado na legislação francesa, na determinação de que era vedado o uso da propriedade em desconformidade com seu fim social. Contudo, com o Código Francês (pós Revolução Francesa), fundado no pensamento individualista, exaure a cláusula que põe parâmetros ao exercício absoluto e anti-social do direito de propriedade.

Não obstante, é no século XX que a teoria do abuso de direito passa a ser estruturada pela doutrina e pela jurisprudência. No intuito de formular um conceito do que seja o abuso de direito, surge, assim, as teorias que negam ou justificam o instituto supra mencionando. As teorias negativistas têm como precursores Duguit, Rotondi e Planiol, que afirmam a inexistência do abuso de direito. As teorias que justificam a existência do instituto têm como precursores Savatier, Ripert, Josserand.

Percorrida esta fase, procurou-se estruturar cientificamente o abuso de direito no âmago do direito subjetivo, buscando identificá-lo como resultado de uma contradição com um dos elementos valorativos do próprio direito. Neste ponto destaca-se a obra de Josserand, que concebe o abuso de direito como uma violação ao espírito do direito ou seu fim social. Desta forma, pode-se definir que o abuso de direito é o exercício irregular de um direito, onde o sujeito de direito pratica um ato aparentemente dentro da conformidade legal, porém, desrespeita a finalidade social ou econômica que presta ao direito subjetivo seu reconhecimento.

Para melhor entendimento do tema se faz necessário, neste trabalho, discutir a distinção entre ato ilícito e abuso de direito. As diferenças residem na natureza da violação a que eles se referem: o ato ilícito desobedece a um comando legal, enquanto no abuso de direito o sujeito age dentro do exercício regular do seu direito, aparentemente, pois afronta a função social ou econômica do direito. Apesar de ambos de situarem no âmbito da antijuricidade, não se confunde, sendo o abuso de direito: uma categoria jurídica autônoma. Cabe salientar que a teoria que nega a autonomia do ato abusivo o torna igual ao ato ilícito, em virtude da identidade de efeitos, pois tanto um como o outro gera a responsabilidade civil do agente. Entretanto, por produzirem o mesmo efeito não enseja equipará-los, pois a distinção entre ambos encontra-se na natureza da violação e conseqüentemente na necessidade de haver expressa previsão de conduta proibida.

No Direito Brasileiro, a teoria do abuso de direito não fora consagrada expressamente no Código Civil de 1916. Este apenas mencionava no art.160, I quando proibia a prática de atos irregulares. O legislador de 1916 não fez distinção entre ato ilícito e ato abusivo, equiparando os dois institutos.

Como sua construção se deu através da jurisprudência, diante de análise de casos concretos, que não encontravam solução satisfatória na doutrina dos atos ilícitos, o que acarretou uma controvérsia no cerne do conceito, no que diz respeito aos critérios de aferição da abusividade. Tem-se usado o princípio da boa-fé objetiva como parâmetro para limitar o exercício de um direito, logo o dever de não abusar reflete na observância dos valores sociais, como a boa-fé, os bons costumes e a destinação social ou econômica do direito.

A positivação da teoria do abuso de direito, no ordenamento brasileiro, ocorre com o advento do Novo Código Civil em 2002, no artigo 187, que traz limites éticos ao exercício dos direitos subjetivos e de outras prerrogativas individuais, impondo ao titular do direito a observância dos princípios da boa-fé e a finalidade social ou econômica do direito. O objetivo deste trabalho reside em fazer especificamente um estudo sobre a autonomia do ato abusivo, já que o Diploma Civil pátrio inseriu a teoria do abuso de direito no capitulo dos atos ilícitos. Sendo assim, tornam-se confusos seus contornos e enseja a responsabilidade subjetiva – fundada na culpa, oposto ao fundamento da aplicação da teoria, que exige que a aferição de abusividade no exercício de um direito seja objetiva, declarada no confronto entre o praticado e os valores tutelados no ordenamento constitucional e civil.

A escolha deste tema teve o escopo de trazer uma melhor clareza à teoria do abusivo de direito e seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro. Pois o exercício regular de um direito é conferido a todo individuo, para que possa assegura-lhe a igualdade e a dignidade. Entretanto, a este exercício impõem-se alguns limites que se norteiam pelos valores éticos da boa-fé objetiva, bons costumes e função social ou econômica, com o objetivo de coibir a prática abusiva do direito.

REFERENCIAL TEÓRICO

1.Origem, fundamento e conceito da teoria do abuso do direito

Tem-se como origem da teoria do abuso do direito, dos atos emulativos, no Direito Medieval; mas se encontram traços da teoria no Direito Romano. Todavia, é no século XX, com uma construção doutrinária e jurisprudencial, que a teoria do abuso de direitos desperta nos estudiosos o interesse em projetar seu conceito e atuação ou a negar a existência do ato abusivo, considerando este, ato ilícito,

"a teoria do abuso do direito possui sua origem atrelada ao Direito Medieval, tendo sido observada nos atos cumulativos (eamulatio) os quais praticados pelo individuo com intimação deliberada de causar prejuízos a terceiros"... É de sumo importância mencionar que o Direito Romano também guardou vestígios do exercício dos atos emulativos, vez, que eram praticados os mais grosseiros abusos sob o firme pretexto de se exercitar um direito reconhecido por lei". (QUINTILIANO BARROS, 2003, p.2 e 3)

Quanto às teorias formuladas, há os que negam a existência do abusivo, pois este é equiparado ao ato ilícito. Os precursores destas teorias foram Duguit, que negava a existência de um conceito de direito subjetivo, existindo situações jurídicas objetivas, pois o homem não era tido como sujeito de direitos, mas tão somente de deveres; fazia a defesa da lógica de que não havendo direito subjetivo, não há que se falar em abuso de direito. Outro precursor foi Rotondi, que afirmara o abuso do direito, como um fenômeno que só existe de fato, mas não no campo do direito constituído, sendo o abuso do direito uma construção metalúrgica. Analisando esta última teoria percebe-se que fica a cargo da doutrina e da jurisprudência a função de chamar a atenção do legislador para a criação de novas disposições que proporcionassem respaldo ao abuso do direito. Rotondi reconhece a existência sociológica do abuso de direito. A terceira teoria que nega a existência do instituto do abuso do direito é a de Planiol, que entende que direito subjetivo não admite limitações que não sejam impostas pelo ordenamento, pois para ele o direito deixa de existir quando começa o abuso.

Entre as teorias que justificam a existência do instituto, há teóricos que entendem o abuso tão somente como princípio geral de interpretação das normas jurídicas, para permitir uma adaptação do direito positivo à realidade social, esta corrente não trouxe uma solução ao impasse da identificação do ato abusivo, pois tornou imprecisos seus contornos. São nas teorias de Savatier, Ripert e Josserand que o abuso de direito encontra traços mais estruturados e consistentes:

"A René Savatier deve-se a caracterização do abuso segundo o dano causado, sendo o 'dano anormal' a circunstancia que evidenciaria se o exercício do direito excede ou não a medida fixada pelos costumes...Georges Ripert retomou a linha de pensamento traçado por Planiol, sustentando que o abuso de direito não faz parte das qualificações jurídicas, mas é o resultado da subordinação da lei positiva aos princípios morais, à 'regra moral'. O ato abusivo, então é aquele que, não apenas causa dano a outrem, mas torna reprovável por infringir deveres morais de justiça, eqüidade e humanidade...destaca-se a teoria de Josserand, que concebeu o abuso como violação ao espírito ou ao seu fim social". (HELENA CARPENA, 2003, p. 378 e 379)

O fundamento da teoria encontra-se nos preceitos éticos morais que o direito não pode desconhecer, para que haja dentro das relações interpessoais equilíbrio e que o interesse coletivo se sobreponha ao interesse individual. Já que abusar significa exceder, afrontando direitos de terceiros. Assim, Venosa conceitua o abuso de direito:

"juridicamente, abuso de direito pode ser entendido como fato de usar de um poder, de uma faculdade, de um direito ou mesmo de uma coisa , além do razoavelmente o Direito e a Sociedade permitem...O titular de prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nesta situação, o ato é contrario ao direito e ocasiona responsabilidade."(VENOSA, 2003, p.603 e 604)

2.A teoria do abuso de direito no Código Civil de 1916

A legislação civil pátria de 1916 não explicitou a abuso do direito, fez um esboço desta no seu artigo 160, I, que proibia a prática de atos irregulares, fazendo com que surgissem inquietações na doutrina., pois se o dispositivo supra mencionado fala em "exercício regular", aforma de exercitar um direito, logo se pode admitir que este fosse exercido irregularmente,

Passamos ao direito brasileiro. O CC/16 não se referiu de modo explicito à figura de que ora se trata. Dizia, porém, no art. 160,I, que não constituem atos ilícitos "os praticados em legitima defesa ou no exercício irregular de um direito reconhecido". A expressão "exercício regular" serviu de base a especulações doutrinárias: tinha-se sentido quantificar de regular certa maneira de crescer emdireito, é porque se admitia a possibilidade de que o direito fosse exercido de maneira irregular. Daí a confirmação, freqüentemente na literatura civilística, e prestigiada por ninguém menos que o próprio autor do projeto, de que o código,s e bem que por via indireta, consagra, evitamos genéricos, a tese do abuso do direito. (MOREIRA, 2003, p.27)

Essa menção, de forma oblíqua, influenciou outros diplomas do ordenamento brasileiro, tais como o Código Penal (de 1990), que no seu art.19, põe como causa de exclusão de criminalidade quando o agente age em "estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular do direito'. Mas foi no Diploma Processual Civil de 1939, que a expressão "abuso do direito" é mencionada expressamente, no artigo 3º § único que dizia: "o abuso de direito verificar-se-á, por igual, no exercício dos meios de defesa, quando o réu opuser, maliciosamente, resistência injustificada ao andamento do processo". O Código Processual Civil de 73 ratifica a tese de abuso do direito no art. 14 c/c 17, quando do interesse que os princípios de boa-fé da verdade devem nortear o exercício do direito de provas e defesa conferido às partes.

3.O art. 187 do Novo Código Civil /2002 e a tese do abuso do direito.

O art. 187 do NCC teve sua redação inspirada no Direito Civil Português que preceitua no seu art. 334, "é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excedamanifestadamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito". Ao comparar as redações dos dispositivos brasileiro e português, percebe-se apenas uma alteração na ordem das expressões, o dispositivo brasileiro expõe da seguinte maneira: "Também comete o ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

A tese do abuso de direito, no ordenamento brasileiro, é expressa no título dos atos ilícitos, sendo necessário aqui conceituar o que seja este tipo de ato: que é a conduta voluntária, comissiva ou omissiva, negligente ou imprudente, que viola direitos e causa prejuízos a terceiros,

Extrai-se de imediato uma ilação: a que entre nós o abuso de direito está, de lege data, equiparado ao ato ilícito. Semelhante equiparação, já se registrou, não é pacifica na doutrina. E, na verdade, parece razoável, do ponto de vista teórico, o entendimento que distingue as duas figuras. Uma é a situação de quem, sem poder de invocar a titularidade de direito algum, simplesmente viola direito alheio. Outra situação é a daquele que, sendo titular de um direito, irregularmente o exerce. (MOREIRA, 2003, p.130)

Apesar de se encontrar consagrado no capítulo dos atos ilícitos, a estes não se equipara, pelos seguintes fundamentos: o abuso de direito é caracterizado por um exercício que aparentemente é regular, mas desrespeita a finalidade do direito, enquanto no ato ilícito há um vício na estrutura formal de um direito. Os dois institutos se assemelham, porém não se confundem por terem efeitos idênticos,

O ilícito, sendo resultante da violação de limites formais, pressupõe a existência de concretas proibições normativas, ou seja, é a própria lei que ira fixar limites para o exercício do direito. No abuso não há limites definidos e fixados aprioristicamente, pois estes serão dados pelos princípios que regem o ordenamento os quais contêm seus valores fundamentais. (HELENA CARPENA, 2003, p.382)

A caracterização do ato ilícito é direta e mais evidente, logo que há uma norma jurídica tipificando uma conduta, enquanto no abuso se constatará a partir do momento que houver uma desconformidade entre a conduta e o fim que a lei impõe.

Com esta teoria, pretende-se assegurar o interesse coletivo nas relações interpessoais, pautando o interesse individual nos pressupostos ético-sociais tais como a boa-fé, os bons costumes e a função social-econômica que cada direito resguarda,

O estudo do abuso de direito é a pesquisa dos encontros, dos ferimentos, que os direitos se fazem. Se pudessem ser exercidos sem outros limites que os da lei escrita, com indiferenças, se não desprezo, da missão social das relações jurídicas, os absolutistas teriam razão. Mas a despeito da intransigência deles, fruto da crença a que se aludiu, a vida sempre obrigou a que os direitos se adaptassem entre si, no plano do exercício. Conceptualmente, os seus limites, os seus contornos, são os que a lei dá... Na realidade, quer dizer – quando se lançam na vida, quando se exercitam – têm de coexistir, têm de conformar-se uns com os outros. (MOREIRA, 2003, , p.134 )

O instituto do abuso de direito traz a premissa da relativização dos direitos, visando evitar o exercício abusivo dos mesmos pelos seus titulares, com escopo de garantir o bem-estar das relações jurídicas na sociedade. Logo, todo aquele que excede os parâmetros da boa-fé objetiva, dos bons costumes e a finalidade social ou econômica dos direito ou prerrogativa deve ter sua conduta repelida pelo Direito, já que o exercício absoluto de um direito causa um desequilíbrio nos valores ético-sociais, que fundamentam a vida em sociedade.

REFERÊNCIAS

BARROS, João Álvaro Quintiliano. Abuso de direito à luz do Novo Código Civil, 2005, site www.jusnavegandi.com.br

CARPENA, HELENA. Abuso de direito à luz do novo Código Civil. TEPEDINO, Gustavo. Coord. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional,2º, RJ 2003. Renovar

FARIAS, Cristiano Chaves. Direito civil – teoria geral. 2º edição, RJ 2005. Editora Lumen Juris.

GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil vol.1, 5º edição. Editora Saraiva.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novo Código Civil – Doutrinas (VII): Abuso do Direito. Revista Síntese De Direito Civil e Processual Civil, nº 26 nov-dez 2003. Editora Síntese

RODRIGUES, Silvio. Direito civil- parte geral, vol.1. 34º edição, SP 2003. Editora Saraiva

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito civilvol.1, 20º edição 2004. Editora Forense

VENOSA, Sílvio Salvo. Direito civil, vol.1, 3º. SP 2003. Editora Atlas


Autor: Ilana Oliveira Fernandes


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