O Falso



O Falso

 

“Maldito seja!”, disseram. “Maldito seja o dia em que nasceu!”. Só disseram isso por que se sentiram lesados. Caso contrário, estariam todos ainda se alimentando de mim. Gloriando-se do que eu era e do que tinha me tornado por causa deles mesmo. Antes eu servi de alimento para eles. Agora, faço banquetes com cada um deles e vejo-os implorar por algum tipo de misericórdia. Infelizmente, misericórdia não cabe a mim. Assim eu aprendi e assim eu vivi. Depois de passar anos como um escravo, sem perceber quem eram na verdade meus senhores, o jogo finalmente virou. Fazia tudo o que eles mandavam e não pensava nas conseqüências que as minhas atitudes poderiam ter. Sei que por causa disso feri muita gente. Enganei muitas pessoas e trapaceei em muitos casos. Promessas não cumpridas, amores não correspondidos, abraços falsificados, interesses, interesses e mais interesses. Nunca amor. Interesses. A vida baseada em interesses é fácil. Não há como se ferir nem se decepcionar com ninguém. Não se conta com ninguém além de si mesmo e dos benefícios que se pode extrair de cada contato. A comunicação não existe. Os problemas dos outros não importam. Para viver de interesses é preciso ser falso. Ser falso requer esforço, mas nada se compara ao esforço que ser verdadeiro demanda. Aprendi todos os truques e artimanhas da falsidade. Eu era a própria falsidade. Tudo o que precisava era encontrar o mais fraco e explora-lo em suas fraquezas, encontrar o mais forte e bajular até ter sua confiança. A exploração do mais fraco é simples, basta ser frio. Fingir a compaixão. Fingir se importar. Os fracos caem nisso rapidamente. Os fracos ainda acreditam no outro como igual. Pensam eles que como seres humanos ainda nos importamos com os outros. Coitados, se soubessem o que se passa em algumas cabeças. Os fracos queriam se tornar amigos, eu, a falsidade, me prestava a esse papel. Essa amizade era voraz. Sugava o fraco até ele não agüentar mais. Colocava-me na posição de forte. Chegava até a prometer alguma segurança, uma salvação. Falso. O forte já era um pouco mais difícil de se dobrar. Os fortes geralmente são mais precavidos e amizades não lhes interessam. Querem mesmo é ganhar. O que? Qualquer coisa. O que importa para os fortes é sair por cima. Pisar em cima mesmo. Então, lá estava eu novamente. Era o capacho, o degrau de sua escada. Isso é, pelo menos por um tempo. Em sua infinita soberba, os fortes não olhavam para trás e não me viam pegar seus calcanhares e arremessa-los longe. Era assim, com o fraco ou com o forte, eu, a falsidade, os superava. Eu ganhava. Mas o que ganhava? Nada. Não via que também era sugado por outro lado. Eu me prestava a esses papéis e não via que havia pessoas que se beneficiavam disso tudo. Esses se colocavam mais distantes. Estavam mais nas sombras. Pelo menos uma parte deles estava na sombra. A outra, estava sob a luz dos holofotes. Fosse na política, na religião, nas empresas. Eles estavam lá. E eu também. Mas eles se alimentavam de mim e sem mim não conseguiam nada. Eu era a sua arma e não percebia. Até que um dia, percebi. Não sei o que me fez ver. Talvez a chuva, uma flor, o Sol, a lua. Talvez Deus. A simplicidade e honestidade de alguém que não conheço. Uma oração. Um pedido a uma estrela cadente. Jesus. Não sei. Eu vi. E quando vi, agi. Não poderia ficar parado diante de tudo o que estava acontecendo. Percebi a fortaleza que são aqueles a quem eu chamava fraco. Vi como eram mesquinhos e precisavam ser alertados os que eu dizia forte. E vi como mereciam morrer os outros. E se mereciam morrer, não tive outra opção. Conheci e me treinei no uso de uma nova arma: a honestidade. A luz. E onde há luz, o que estava escuro se torna visível. Então, os holofotes mudaram de posição e todos puderam ver o que estava escondido atrás dos ternos e paletós. Das promessas messiânicas. Dos costumes moralistas e infundados. Todos puderam ver. Foi lindo. Assentei-me a mesa e comi, pedaço por pedaço, cada um deles. O político tentou se esconder, o chefe de empresa tentou subornar, o religioso apelou para seu deus (pobre dele que esqueceu que não tinha outro deus, senão ele mesmo). Depois, o chefe da empresa tentou se esconder, o religioso tentou me subornar e o político apelou para deus (pobre dele que esqueceu que não tinha outro deus, senão ele mesmo). E mais para frente, o religioso tentou se esconder, o político tentou me subornar e o chefe da empresa apelou para deus (pobre dele que esqueceu que não tinha outro deus, senão ele mesmo). No fim das contas, foram todos devorados. Hoje, descanso em paz. Não preciso mais trabalhar no antigo ofício. Passei a cultivar jardins. As flores valem mais a pena.


Autor: Renato Malkov


Artigos Relacionados


SugestÃo Imprudente

O Pacto

A Espera (ii)

Experiência Com Deus!

Na PresenÇa De Quem AtÉ A Tristeza Salta De Alegria?

Cuidado Com As IlusÕes! (ii)

Os Pais Da Pátria