Todos os Degraus de uma Escada



Mal toquei o interfone e já me arrependi de ter saído de casa.

- Oi, bom dia, o salão de festas?

Quinze anos? Vinte? É normal perder as contas?

- Bom dia, você segue reto e sobe as escadas até o fim. Daí você vira a esquerda e é logo o primeiro corredor. Qual teu nome?

Dez anos. Fiz as contas correndo. Parece muito mais, credo. O tempo relativo entre o dia da formatura e hoje parece que me envelheceu umas noventa vidas. Ou já era eu velha e parei no
tempo só por diversão?

- Emengarda. Emengarda Celestina.

É. A Emengarda Celestina de sempre, agora com 27 anos, 65kg, 3 graus de miopia e 4 reais na carteira.

- Pode subir lá.
 
Pé direito, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo, dezessete vezes, degrau. Alto, muito alto pros meus 145 cm. As crianças todas corriam, todas. Eu estava suada, como sempre. Minha camiseta nova, branquíssima, atolada dentro da bermuda azul-marinho com o desenho do colégio na barra. Minha primeira vez numa escola particular, tudo parecia diferente e limpo. A maior surpresa foi o banheiro. "Parece de shopping", pensei, e aproveitei o cheiro de limpeza. Lá na outra escola não tinha isso. Tinha cheiro de merda e mijo, das maquiagens das meninas mais velhas do colegial, de ralo, de pobre. Tinha a loira do banheiro. Eu fui uma vez lá e uma pequena gritava que nem louca que era pra eu não entrar que a loira tava lá dentro. Aquela loira eu tinha pavor. Mas acho que ela ainda era melhor que as meninas mais velhas do colegial. Eu tive uma dor de barriga uma vez, e não aguentei segurar não. Fui correndo pro banheiro, no primeiro que vi aberto, abaixei a bermuda e me apoiei nas pernas e na parede pra não encostar no vaso. A porta não tinha trinco, e as meninas me viram correndo e foram lá empurrar a porta. Comecei a gritar, dizer que tinha gente, e elas nem ligaram. Depois subiram no vaso da cabine ao lado e ficaram me olhando cagar lá de cima, naquela posição de galinha que bota ovo.

Escada. Subir as escadas, até o fim, esquerda, corredor. Fico tentando desenhar o caminho na mente pra não me esquecer e não desistir. Primeiro, segundo, terceiro, quarto degrau. Ainda falta uns quarenta. Sinto o músculo da coxa esquentando. As crianças estavam correndo, e todas elas corriam muito! Brincavam de mãe da rua. Me viram de longe, e sorriram. Ou riram? Agora me escapa. Acho que eu também era inocente, apesar de tudo. "Emengarda", respondo quando me perguntam o nome, e aí sim, lembro que foram risadas. Ri também, pra não ficar chato. "Posso brincar?", "Pode, tá com você!" e logo todos correram encostar na parede. Quando viram que eu não conseguia alcançá-los, passaram a andar, e todos andavam, todos ao mesmo tempo, e eu não sabia de quem correr atrás, todos andavam juntos e eu perdida no meio do pátio, confusa. Todo mundo então me chamava pra brincar de mãe da rua, e sempre faziam o mesmo, andavam, andavam de um lado pro outro e eu não entendia, não entendia como eles conseguiam andar, e por que eles riam uns para os outros. Teve um dia que eu cansei de brincar. O Alê gritou "a baleia desistiu!" e todo mundo se mijou de rir. Eu também ri.

Metade da escada, subir até o fim, esquerda, corredor. Era esse mesmo o caminho. Passo por uma porta de vidro ao meu lado. Reflito-me. Paro, por alguns segundos, e contemplo meu cabelo preso ao topo da cabeça. Hoje em dia minhas orelhas já estão coladas na cabeça. Lembro que trabalhei meio ano sem almoçar fora pra juntar a grana do almoço e pagar a cirurgia plástica. Hoje parece que não faz diferença. Naquele dia, lá do filme do Dumbo que a professora passou, ia fazer. O Alê, que já tinha decorado um vocabulário inteiro de sinônimos para "criança gorda", tinha combinado com a galera da classe toda de irem com as camisetas enfiadas pra dentro da calça no dia que a professora passasse esse filme. Eu também ri.

Mais dois degraus e eu estou lá no final. Esquerda, corredor. O caminho não muda nunca, mas sim a forma como o desenhamos em nossa mente. Eu tinha que passar pelo primeiro e o último degrau, assim como passei pela quinta série até o terceiro colegial. No terceiro já, eu não era mais a mesma. Digo, todos sempre somos a mesma pessoa, unidos pelo fato de nunca definirmos exatamente quem somos. Me perguntaram certa vez quem era eu, e emudeci, considerando se responderia meu nome, minha idade ou minha profissão. Aprendi a separar as pessoas por categorias, na faculdade. Sexo, classe social, idade, localização geográfica. Oi, eu sou a Emengarda, 27 anos, mulher, residente de São Paulo. Oi, eu sou a Emengarda, minha mente tem 60 anos, meu corpo tem 18, não decidi ainda meu sexo e vivo no espaço.

Ainda falta-me virar a esquerda e andar pelo corredor. Fico imaginando quem está nessa maldita festa, e qual anti-depressivo me convenceu a enfrentar meu sábado a tarde remoendo lembranças de uma adolescência que já disse adeus, volte nunca. Não tive o abraço da formatura de um amor deixado nos muros do colégio. Não tive nem o vestido molhado de ponche que alguém, por me odiar, houvesse derrubado em mim. Teve uma vez, sim, que derrubaram ácido no meu avental da aula de química. A mais gostosa da classe, Ju, tinha entrado no laboratório toda ofegante e cheia de risinhos com a Lu, que era sua melhor amiga. Aquela sonoridade infantil de Ju e Lu, misturadas aos chiadinhos infelizes de suas glórias hormonais com os meninos do 3º colegial, me faziam querer vomitar a coxinha do recreio. Assim como elas mesmas faziam. Sempre as via vomitando o lanche pra não engordar, e na minha cabeça supus que aquilo era nojo delas mesmas. Eu também me vomitaria se fosse alguma delas. Mas a professora reparou logo que elas iam perturbar a aula e separou as duas, colocando a Ju pra trabalhar comigo. O Gustavo falou logo um "vai tirar dez finalmente", e ela riu satisfeita. Acho que a classe toda riu. Dessa vez eu não ri. Quando disse pra ela que eu não ia fazer trabalho nenhum, ela tacou o ácido em cima do meu avental. Aí sim, a classe toda riu, mas não foi por causa dela ter tacado o ácido, foi por eu ter caído de costas na bancada, com medo de ele corroer o pano até chegar na minha pele. A professora gritou "joga água!" e o Alê catou a mangueira e começou a me dar um banho. Tirei o avental correndo, e ele ainda me jogava água, e tinha muita bagunça na classe, eu só fui reparar que estava completamente molhada, com a camiseta transparente, depois que a professora acalmou o pessoal. Tremia de frio, era agosto, o casaco eu havia deixado na classe. Saí correndo, com as banhas marcadas pela blusa que grudava molhada em meu corpo, e tudo balançava, mas o frio era tanto que desisti de tentar esconder o que não era segredo pra ninguém. Não ri mais, por muito tempo.

O corredor é curto e é o tempo exato para eu calcular com qual sorriso eu devo dizer "olá". Pode ser o sorriso do professor que tirou minha prova quando a Bel jogou o papel de cola em cima da minha mesa. Pode ser o sorriso do Álvaro, quando acharam no meu caderno escrito o nome dele em volta de um coração. O sorriso de todas as vezes que não me chamaram pro time de futebol. Logo vi que aquilo seria como a minha primeira festinha da escola. Era na casa do Ricardo, e colocaram a música "Two Become One" das Spice Girls pra turma dançar de parzinho. A Ju dançou com o Álvaro, a Lu com o Alê, a Bel com o Gustavo. Todo mundo tinha o seu par, menos eu e o Gabriel, o moleque mais asqueroso da classe. A Ju viu e começou a gritar o nosso nome, e ele a contra-gosto me tirou do sofá. E hoje? Eu vou ficar no sofá, comendo amendoim, esperando a gostosona gritar meu nome e lembrar a todos que eu ainda estou sozinha e com uma roupa de ponta de estoque? O Álvaro vai dar risada quando lembrar que eu gostava dele, e o Alê vai gritar que eu emagreci 48kg?

Abro a porta e o salão está cheio. Acendo um cigarro e sento ao lado do cinzeiro. Nada, nunca, irá mudar. Os anos que me desenharam queimam a cada tragada e cada riso rasgado no meio da música alta. Alguém se aproxima. Abro o sorriso de Emengarda e assopro a fumaça pela janela.

Autor: Vanessa Del Negri


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