A Amazônia Sob Olhares Estrangeiros: Augusta Dwyer, George Monbiot E Alex Shoumatoff



A Amazônia Sob Olhares Estrangeiros: Augusta Dwyer, George Monbiot e Alex Shoumatoff

Eliomar Rodrigues-Rocha

O fato colonial não é uma idéia pura: conjunto de situações vividas, recusá-lo é ou subtrair-se fisicamente a essas situações ou permanecer e lutar a fim de transformá-las.

Albert Memmi

Into the Amazon: the struggle for the rain Forest é um livro escrito por Augusta Dwyer, uma jornalista e escritora canadense que percorreu a região norte do Brasil em 1988 em busca de dados para a escrita da obra. Augusta Dwyer contribui com The Globe e Mail, Toronto Star, Macleans´s, The Nation e San Francisco Examiner, jornais do Canadá. Segundo a capa de seu livro, a escritora também trabalhou como jornalista no Haiti, na República Dominicana e na América Latina.

 “Into the Amazon” é um retrato dos diferentes modos de vida dos indivíduos de um dos maiores rio da Terra e de seus afluentes: o rio Amazonas. Na capa do livro é destaque a seguinte declaração:

Into the Amazon is Augusta Dwyer’s revealing portrait of the rubber tappers, the river people of the Tocantins, and many other Amazon dwellers. For more than five years, Dwyer traveled extensively throughout Latin American, particularly in the Amazon Basin. She was one of the few journalists to become close friends with Chico Mendes, who, before he was murdered in 1988, did more than any individual to tell the world about the rain forest struggle[1].

Dwyer empresta sua voz aos nativos e declara que a única forma de salvar as diferentes formas de vida amazônica não pode ser separada de uma boa ecologia. Viajando como uma jornalista canadense, certamente nunca esteve na Amazônia como um amazônida, e sim como estrangeira. Segundo a escritora, os ribeirinhos, os seringueiros e outros extrativistas, são capazes de viver em harmonia com os índios da região e o meio ambiente, aprendendo e sobrevivendo reciprocamente. Eles são os únicos que podem tomar decisões sobre a Amazônia. Afinal, será que os amazônidas não têm consciência desse fato? Seria preciso uma canadense declará-lo? Cremos que, cabe aos amazônidas, tal postura, tal esclarecimento. Não é preciso que o Outro nos diga que podemos sobreviver em reciprocidade, pois desde os primórdios, os ribeirinhos, índios, e extrativistas em geral, têm vivido em harmonia com o meio ambiente. Do contrário, não existiria mais meio ambiente. Todo o sistema ambiental estaria devastado.

Esse olhar de curiosidade, de afirmações categóricas e direcionamentos em relação ao que deve ser feito para a efetiva sobrevivência dos povos e etc. deve ser decidida pelos amazônidas, visto que, realmente, não saberiam viver de outra forma. Se as diferentes formas de vidas existentes na floresta levaram inúmeros anos para se formarem, como poderia o homem, animais e flora se modificarem instantaneamente. Essa metamorfose deverá ocorrer em tempo certo, com o caminhar da História, com o vento do progresso, do desenvolvimento e da própria caminhada da humanidade.

 “Into the Amazon” é um apaixonante livro escrito por uma mulher que, entre os demais escritores aqui citados, apesar de alguns ligeiros acenos para as medições e comparações culturais, é a menos preconceituosa e arrogante em relação ao povo amazônico. Certamente, isso não está ligado ao gênero feminino, mas a uma forma diferenciada de ver e registrar o Outro. Dwyer consegue ver, sentir e registrar, de forma inteligente e poética, a ida de uma personagem amazônida em direção aos seus vizinhos seringueiros:

To get to the neighbors, Dona Clarice will walk along one of the rubber tappers` paths, through the filtered rain forest light, along corridors of trees and hanging vines cool under the infinite canopy of green. She will go accompanied by the sounds of forest life: the wind through the multishaped leaves, the cries of birds, perhaps the fall of a dying tree from its thin footing of soil, the persistent tapping of a monkey truing to break the shell of a Brazil nut against a tree trunk, like a man hammering a nail. Butterflies as bright as any carnival mullata flash among the bushes [2](1990, p. 01).

No percurso, Clarice, uma mulher seringueira em Xapuri no Acre, é seguida por olhos impregnados de respeito pela Natureza. Trilhas iluminadas pelos raios de luz filtrados pela copa das árvores, por trepadeiras que se debruçam sobre as cabeças do transeunte. Um caminhar acompanhado pelos sons da floresta: o vento através das multiformes folhas, o canto dos pássaros, talvez o estrondo da queda de uma árvore, batida de um macaco tentando quebrar a casca de um coco contra o tronco de uma árvore, como um homem martelando um prego. Borboletas tão brilhantes quanto qualquer mulata do carnaval lampeja entre os galhos.  Essa poeticidade que entretecida pela musicalidade dos passos ao tocarem as folhas do chão da floresta, seria resquícios de leituras anteriores sobre a floresta? Solidariedade com o ecossistema? Expansão de seu território sobre o amazônico ou classificação dos diversos aspectos percebidos pelo sentido, olhar e visão? Conhecimento objetivo da realidade? Ou ainda, autocongratulação por estar na floresta amazônica? Vender essa imagem ao mundo?

A essas perguntas buscamos respostas ao analisarmos a prática discursiva revelada nos escritos de Bob Reiss. Por enquanto nos deteremos apenas sobre alguns enunciados no percurso discursivo revelado por Dwyer. Logo depois George Monbiot e, finalmente, Shoumatoff.

Ao tratar no capítulo A threat to the Forest (Uma ameaça para a floresta) da invasão de fazendeiros às terras de seringueiros, a jornalista destaca a idéia de Chico Mendes em transformar os seringais em reservas extrativistas, lembra a medalha que o sindicalista recebeu em Nova Iorque da Sociedade para um Mundo Melhor e da presença de Chico Mendes no Primeiro Conselho Nacional de Seringueiros, onde foi resolvida a criação das reservas extrativistas. Essa idéia trouxe novas possibilidades que excitaram Chico Mendes fazendo-o pensar sobre o futuro. Com suas sobrevivências garantidas em reservas extrativistas, os seringueiros poderiam formar cooperativas, procurar novos produtos para vender, até mesmo plantar mais seringueiras na floresta. O dinheiro seria requisitado do governo local para a construção de escolas e postos de saúde. Organizações internacionais poderiam ajudar a financiar esses pequenos projetos e tornar a extração mais prática para o seringueiro do que tinha sido nos dias dos barões da borracha, esclarece Dwyer.

A escritora se declara fascinada pela política e pela rara educação que Chico Mendes tinha recebido de Fernando Távora. “Perhaps one of the reasons we got along so well, though was just that: my curiosity about his political philosophy. Chico was a committed socialist; the lessons of 1964 and Fernando Távora played a fundamental role in forming his vision[3]” (p. 18).

Se utopia ou ideologia, não importa. O que interessa são os pensamentos do maior líder sindical no Acre; o interesse dele e de outros sindicalistas e sindicalizados em melhorarem a situação de vida dos seringueiros, castanheiros, etc., o que levou Chico Mendes a enfrentar impetuosos e cruéis inimigos; a combater as maiores invasões a espaço de vivência dos povos da floresta.  Essa imagem grotesca se junta a outra ainda mais monstruosa, a morte de Chico Mendes. Assim, Dwyer, impressionada e fascinada pela competência do líder, acompanha-o a diversas colocações (espaços onde vivem o seringueiro e sua família) e participa das várias reuniões na tentativa de conscientizar os seringueiros de seus direitos e deveres. O sonho não morreu, pois muitos são os que lutam pela causa das minorias, tanto no estado do Acre, quanto em outras partes do mundo.

O capítulo com o título Chico Mendes é uma homenagem da escritora e amiga para essa voz de libertação no Acre. Segundo o quadro criado nesse capítulo, Chico nasceu no dia 15 de dezembro de 1944, no seringal Bom Futuro. Conforme a autora, denominado profeticamente good future. Chico Mendes era um dos dezoito filhos da família Mendes. Chico was one of the oldest of Francisco Mendes´ eighteen children. “All rubber tappers have big families” he remarked to me. Most of the children died in childhood. To help the growing family survive, Chico had to begin tapping rubber when he was just nine years old[4]” (p.15).

Denunciando a situação de miséria em que viviam as famílias da floresta, com as crianças tendo que enfrentar a estrada de seringa desde uma idade muito tenra, sem escolas, sem acompanhamentos médicos, etc., Dwyer, retrata o verdadeiro descaso do Estado para com seus súditos, naquela época. Na sua opinião:  “In the Amazon, progress seemed to reside between the horns of a Zebu ox, or somewhere at the end of the expensive road projects, roads that, as many a cynic like to say, go from nowhere to nothing all[5]” (p. 20). Ou ainda na seguinte bombástica declaração: “In 1966, the Brazilian government set up the Superintendency for Development of the Amazon, SUDAM, an organ whose basic and exclusive was and still is to give money to the rich[6]” (p. 20).

A jornalista ainda denuncia a tortura dos seringueiros envolvidos ou não, na morte de um fazendeiro, que havia mandado assassinar Wilson Pinheiro, morto em julho de 1980, quando assistia a um filme policial no escritório do sindicato:

Early on July night in 1980, while Pinheiro was watching a police thriller on the old black-and-white television set in the union office, a gunman crept onto the roof, slid in through a window and, waiting for the covering sound of shots from the television program, pumped Pinheiro full of bullets.

At Pinheiro´s funeral, fifteen hundred workers gathered around the coffin and demanded justice. They appealed to the authorities to punish the criminals – it was well known who they were. But justice crossed its arms. Seven days later, the rubber tappers resolved to kill a rancher known to be one of the instigators of Pinheiro´s death.

They were true to their word. On July 27, two of them killed rancher Nilo Sergio de Oliveira. “This time,” said Chico, “justice moved instantly. Twenty-four hours later, dozens of workers were in jail, tortured, their fingernails pulled out. There was an enormous torture session in the Brasiléia jail [7](p.23).

Como se pode visualizar há um quadro de terror que se assemelha às descrições de tortura em Heart of darkness de Joseph Conrad ou ainda às torturas descritas no conto Maibi, de Alberto Rangel. Conforme ainda Dwyer, Chico Mendes não estava na cidade no dia do assassinato do fazendeiro. Ele estava viajando para outras áreas do estado, tentando organizar e conscientizar mais trabalhadores acerca dos seus direitos pela terra. Mesmo assim, uma ordem foi expedida para sua apreensão e prisão imediata. Esse fato fez com que o líder sindical passasse três meses dormindo em casas diferentes a cada noite, tanto com medo dos pistoleiros quanto da polícia. A seguir traduzimos um trecho da fala de Chico Mendes no livro de Augusta Dwyer:

Em 1981, eu fui pego e posto no banco de defesa em uma corte militar em Manaus. Estava feliz por não está na cadeia, mas nós tínhamos um bom advogado. Em 1984, em uma audição, o caso foi arquivado por falta de evidência. Mas de lá pra cá, começou uma vida difícil para mim, perseguido pela polícia federal, a força de segurança e assim por diante (p. 23).

O signo que denota o nome da jornalista Dwyer, pode muito bem, se transformar em lawyer (advogada). Assim, advogada dos trabalhadores, pois esteve ao lado de Chico durante as duas viagens ao Acre, especificamente, para o município de Xapuri e participou de muitas reuniões do sindicato. Denúncia de descasos, mortes e mentiras circulam em seu livro. Há dois capítulos sobre os Yanomami, o capítulo X e o XII. No décimo há uma denúncia de que os Yanomami não queriam brancos em suas terras. Com algumas declarações de políticos, religiosos, índios e certas impressões um tanto quanto preconceituosas, Dwyer retrata, mais uma vez, a política pelo ouro em terras indígenas e acentua sua nacionalidade canadense.  No XII, denuncia o massacre contra esses indígenas.

Entre os Tikuna, povo indígena da região do município de Tabatinga, no alto Solimões, no estado do Amazonas, Dwyer, também esteve, conforme nota de rodapé número 4. Dessa forma, sobre a origem dos índios na região, escreve a jornalista:

The Tikuna have had contact with the white man for more than three hundred years. Some anthropologists believe that the Tikuna originally came from farther inland to occupy the banks of the Solimões when slavery and the presence of rival Portuguese and Spanish colonists had driven the Omagua and Yurimagua tribes to Peru. The Tikuna were frequently forced to gather forest products for the profits of the Portuguese garrison commander in Tabatinga, were sold into slavery and were even sent to fight during the war with Paraguay in 1860s. During the rubber boom, the Solimões River was an important thoroughfare between Iquitos, in Peru, and the Atlantic Ocean[8] (p. 214).

O olhar apropriador de Dwyer não consegue apenas ver, mas interpretar. Como afirma Alfredo Bosi, o olho, fronteira móvel e aberta entre o mundo externo e o sujeito, tanto recebe estímulos luminosos (logo, pode ver, ainda que involuntariamente) quanto se move à procura de alguma coisa, que o sujeito irá distinguir, conhecer ou reconhecer, recortar do contínuo das imagens, medir, definir, caracterizar, interpretar, em suma, pensar (1997, p. 66). O que nos interessa muito, não em Dwyer, mas em Reiss, é como é feita essa interpretação. Assim, nossos olhos procuram por modos de olhar. Dwyer, por exemplo, em alguns pontos reforça a idéia de civilizados e incivilizados. Ao declarar, “I was in the depths of depression, with nothing to do, not even a book to read. Everyone was friendly, but I wanted badly to get back to civilization[9]” (p. 221).     

Apesar de estar entre amigos, diz a escritora, quero voltar para a civilização. Isso significa claramente, que na Vila Vendaval, onde estava com os índios Tikuna, todos eram incivilizados. Assim, Dwyer reproduz o discurso de superioridade do europeu. Se o enunciado fosse invertido, desse jeito, eu queria voltar à civilização, apesar deles serem amigos, suavizaria um pouco essa pretensa superioridade. Contudo, não queremos, sobremaneira, condenar tal postura, antes, julgar e dizer que existem outras formas de produzir tal enunciado em relação ao seu Outro. 

Apesar de a jornalista emprestar sua voz ao amazônida, como afirmamos no início dessa subseção, e denunciar a invasão territorial, religiosa, política, social e lingüística na Amazônia, há em alguns enunciados, como já destacamos, a autocongratulação de que fala Edward Said na epígrafe desta dissertação Apontar para o Outro e declarar-se pertence a outro espaço cultural, organizado, confortável e superior, dentre outras coisas mais. Não acontece, nesse embate, a compreensão do Outro, como quer Jorge Larrosa: a compreensão do outro estrangeiro só pode ser considerada como um processo dialético, que começando por um momento de estranhamento, se resolveria finalmente em uma recuperada re-familiriarização (2002, p. 78). Passemos ao nosso segundo convidado.

George Monbiot é um jornalista britânico que veio para a Amazônia fazer uma nova investigação do meio ambiente, como esclarece o subtítulo de seu livro: the new environmental investigation (nova investigação ambiental). Um dos objetivos de Monbiot era descobrir por que a Amazônia estava sendo destruída de forma tão rápida quanto nunca havia sido antes. I needed to look how Amazon works[10] ( 1990, p. 03). Ver de perto o que acontecia na Amazônia, pois estava certo de que encontraria uma solução para os problemas da região. Como afirma João Carlos de Carvalho em seu livro Amazônia revisitada – de Carvajal a Márcio Souza: A Amazônia é tão somente esta paisagem a ser descrita, sua gente é cercada de curiosidades a serem averiguadas e a tensão entre o homem e o meio vai sendo intermediada por uma grande vontade de conhecer o exótico (2005, p. 81).  Porém, não seria mais útil, neste trabalho reflexivo, ao invés de afirmamos como faz Carvalho, interrogarmos se a Amazônia é apenas isso?

Monbiot, crente que era possível ver, realmente, a Amazônia estando dentro do espaço geográfico amazônico e certo de que poderia fazer melhor o que muitos outros escritores haviam feito, não sendo, portanto, um grande talento, pois não tem “um respeito salutar por aquilo que os outros fizeram antes dele e por aquilo que o campo já contém, como quer Edward Said (1990, p. 209), que declara o seguinte:

There had been no rigorous investigations by Northern journalists of the new threats and the deeper troubles which gave rise to them. If I was to come close enough to the issues to understand why the destruction in the Amazon was continuing, and what could be done to stop it, I felt that I would need to launch the sort of voyage of discovery that other writers had been reluctant to contemplate: in which the investigator becomes not only an observer but a potential victim of the troubles [11](1990, p. 03).

Imbuído de um espírito altivo e corajoso o suficiente para arriscar sua vida, Monbiot em partiu em direção à Amazônia. Recolheu material no estado do Maranhão: informações, fotografias, filmes e guardou todo esse material amazônico para posterior manipulação e construção de mais uma entre tantas Amazônias. Como compreende Michel de Certeau,

Tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos, mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Esse gesto consiste em isolar um corpo como se faz em física, em desfigurar as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele forma a coleção. Constitui as coisas em um sistema marginal, como diz Jean Baudillard, ele as exila da prática para as estabelecer como objetos abstratos de um saber.  Longe de aceitar os dados, ele os constitui. (1982, p. 81).             

Confiante em sua capacidade de apreensão seja através da escrita, da fotografia ou das filmagens, o autor embrenha-se por vales, rios, igarapés, cidades e aldeias na busca de dados para o arquivo que pretende montar. Numa relação prazerosa com seu novo corpus, multiplica, redistribui sua obra, dando um novo foco à questão abordada, assim, constitui um novo saber, como acabamos de esclarecer com Michel de Certeau.

Não apenas como observador, mas como uma possível vítima da Amazônia, Monbiot circula por vários estados brasileiros: Maranhão, Pará, Goiás, Roraima Rondônia, etc. em uma espécie de tour pelas várias paisagens brasileiras, misturando-se aos povos amazônicos na busca de uma resposta para a solução dos problemas.

“Amazon Watershed” é uma instigante descrição dos diversos povos indígenas – os Yanomami, os Tukano e Uru Eu Wau Wau, por exemplo e uma prova de pretensão de um escritor sabichão – ao querer saber mais que os nativos e resolver os problemas da região. Essa autoridade, revestida em um discurso de poder, levou Monbiot a ridicularizar e a generalizar que todas as cidades, na Amazônia, são feias e indecentes, como mostra a epígrafe na introdução deste trabalho, o que mostra, também, sua falta de sensibilidade e visão a respeito da cultura do Outro.  Esses julgamentos de valor giram sobre uma organização discursiva que parte do modo de manipulação do autor para com seu corpus, como afirmamos três parágrafos acima.

Partindo da perplexidade frente à extensão territorial da Amazônia, principalmente diante da imensidão dos rios amazônicos, Monbiot contrasta o tamanho do rio Tiquié com o mais celebrado rio em seu país, o Thames:

In the far north-west of Brazil, on a journey of the territory of the Tukano Indians, I found one: a tributary called Rio Tiquié, which is a little longer than the River Thames, but narrower in the lower reaches. The Tiquié flows into the Uapés, an unremarkable Amazonian river of around three times the length of the Thames. The Uapés is itself a tributary of the Rio Negro, a tributary of the Amazon. The Rio Negro is the second largest river in the world, with a discharge slightly greater than that of the Congo, or three times that of the Mississippi, or greater than all rivers of Europe combined. When it reaches the main river, having traveled 2400 kilometers from Colombia, the Negro, impressive as it is, adds only 15 per cent to the Amazon’s volume [12](p.04).

Nesse quadro, a Amazônia, enquanto espaço geográfico domina, soberanamente, sobre seu país, sobre os Estados Unidos, etc., porém a bacia amazônica cobre somente 7% da face da Terra, o mais significante, conforme Monbiot, é que ela contém 40% das florestas tropicais. É como se essa imensidão verde e aquática reprimisse os sentidos do estrangeiro em suas aventuras. Freasse, um pouco, sua fome de dominação, seu instinto europeu de invenção, usurpação, colonização e auto-afirmação, assim, parafraseando Edward Said, e aplicando suas palavras para tentar compreender George Monbiot ao vir para a Amazônia ocidental, e vivendo entre os amazônidas, vendo a Amazônia em primeira mão, tentando verdadeiramente enxergar a vida ocidental do ponto de vista de alguém imerso nela, tem a intenção de ser um testemunho de sua vitória sobre o sistema ocasionalmente escandaloso de conhecimento ocidental, um sistema que ele dominara sozinho. Nessa perspectiva, Monbiot assumira a administração da vida ocidental, mesmo que apenas em seus registros, para os fins de sua narrativa.

Como Augusta Dwyer, George Monbiot escreve a respeito da origem dos povos amazônicos, de suas formas de cultivar a mandioca, de seus hábitos, etc., do massacre dos Yanomami, dos modos de cultivo dos índios Kayapó, da sabedoria indígena e termina o capítulo com a seguinte denúncia sobre a situação de vida dos povos da floresta:

There are no more than 650.00 Indians in the Amazon today, many still suffering the diseases, slavery and war with the white man first persecuted them. Along the floodplains, of the whitewater rivers, where Indian kings were once buried with their gods, the only fragments of surviving tribal culture are found among the caboclos. These are the peasants of mixed indigenous and Portuguese blood, descended from the Indians corralled, in the seventeenth and eighteenth centuries, by Jesuit priests and the Portuguese crown[13] (p. 20).

 Amazon watershed é um quadro pintado com palavras quentes que quase chegam a transformar em veias sangüíneas suas linhas. A correrem sobre o papel, os signos lingüísticos se metamorfoseiam em figuras assombradas por um narrador que as persegue e as tenta fixar entre os demais signos, a ponto de fazer com que o leitor, fatigado pelo cansaço de imagens distorcidas, as aceite ou procure uma interpretação lúcida para tal quadro agonizante.

Do estado do Maranhão, Monbiot vai para Belém e de lá vai para Manaus, capital do Amazonas, lá em meio aos cientistas, procura assertivas para seu projeto de escrita. De Manaus segue para Boa Vista, capital de Roraima, repetindo assim, o trajeto de seus predecessores. Entra nos garimpos roraimenses e entre índios Yanomami, participa de um ritual de curas. Mistura-se com outros invasores em terras indígenas: pistoleiros, migrantes e fazendeiros e recolhe mais uma vez, dados para sua obra redentora, pois como já dissemos, Monbiot pretendia encontrar uma resposta para os problemas amazônicos; terminando por afirmar que a responsabilidade era totalmente dos agricultores e colonos.

No capítulo VII, Monbiot chega à conclusão de que não são os garimpeiros que estão destruindo a Amazônia, mas os fazendeiros, como assinala nesse trecho:

While most of the miners I saw in Roraima came from Maranhão, the peasants now cutting and burning around the south and along the flanks of the Basin have come from all over Brazil. Many have left their home state, as I have shown, through the agencies of expulsion or technological change. Others are escaping from their financial troubles. Brazil’s economic crisis, exacerbated by a concentration of capital as intense as the concentration of land, has overburdened farmers already struggling with small plots and low prices for their crops. Many who worked for larger landowners are losing their jobs, as agricultural employment is declining throughout the nation. At the same time one and a half million people are entering the labour market each year. As the size of peasant families has tended to grow, farmers find that smallholdings can no longer support them [14](.123).

Seguindo sempre a perspectiva desse olhar dominador, desse olhar que se quer ativo, Monbiot busca, capta, uma vez que não veio para a Amazônia, simplesmente para olhar-por-olhar, ou para dizermos como Alfredo Bosi, ver-por-ver, mas para apreender cenas amazônicas, interferir, sobremodo, nessa realidade criada a partir de seu olhar e visão. Não reconhecendo as diferenças, ou não as aceitando, antes, modificando-as a partir de seu entendimento e interesses e intrusão, Monbiot é em alguns momentos sarcásticos, preconceituoso e juiz, haja vista que, de forma irônica, ridiculariza cenas e fatos amazônicos:

But above all settlement has been used to boost national prestige. In the 1970s Brazil military leaders chose to portray their nation as a pioneer state, whose advance into the Amazon would be the first step towards becoming a superpower. Such propaganda helped to boost the popularity of the government during the time of the most ferocious state repression. Allied to this purpose was the aim of national integration, taking control of the Brazilian Amazon before it was annexed by other – unidentified – nations. To this end the people living in the Amazon were encouraged to be representative Brazilians, and much of the failure of the first farmers there can be ascribed to the fact that they were advised to farm like those in the temperate south, despite the great differences in climate, soils, infrastructure and markets[15] (p. 129).

Descrevendo a situação política e social da Amazônia, e ainda mais abrangente, do Brasil, o investigador britânico, ironiza, de forma desvelada, questão da autonomia brasileira em relação à Amazônia e em relação a tornar-se uma grande potência. De forma sarcástica relata que o Brasil temia a invasão de outra nação da América do Sul, ou ainda, de qualquer parte do globo. Lembrando a propaganda do governo brasileiro de integrar para não entregar, Monbiot, sarcasticamente, coloca-se em um patamar de superioridade política em relação aos líderes brasileiros, uma vez que estes incentivaram os fazendeiros a criar gado como se cria no sul brasileiro. Essa política econômica, muito rendeu aos repórteres, jornalistas, escritores, ambientalistas, etc., e principalmente, ao primeiro mundo que, diariamente, vigia essa região do Brasil. Afinal, o que fazem os satélites norte-americanos Nooa-9 e Landsat, senão vigiar a Amazônia?

Monbiot escreve semanalmente para o jornal The Guardian, conforme o site www.monbiot.com, acessado em 25 de fevereiro de 2007. No topo da página inicial há seguinte epígrafe: “Tell people something known already and they will thank for it. Tell them something new and they will hate you for it[16]”.  Obviamente, Monbiot se refere aos seus descobrimentos em defesa da natureza e às controvérsias existentes entre os ambientalistas e os desenvolvimentistas. Seu artigo publicado no dia 18 de outubro de 2005, com um título, visivelmente, repressivo, Are you paying to burn the rainforest? (Você está pagando para queimar a floresta?), é bastante persuasivo, pois manipular os britânicos e demais primeiro mundistas, para que não comprem carne importada do Brasil. A seguir destacamos três trechos desse artigo:

Cattle ranching, if it keeps expanding in the Amazon, threatens two-fifths of the world’s remaining rainforest. This is not just the most diverse ecosystem, but also the biggest reserve of standing carbon. Its clearance could provoke a hydrological disaster in South America, as rainfall is reduced as the trees come down. Next time you see footage of the forest burning, remember that you might have paid for it[17].

No livro Amazônia: de Carvajal a Márcio Souza, de João Carlos de carvalho, já citado neste trabalho, a visão de norte-americanos sobre a questão das queimadas na Amazônia, apresenta-se consoante tal descrição acima, porém muito mais nazista. Segundo Carvalho,      “numa lanchonete dos EUA, no ano de 2000, distribuía-se a seguinte frase numa toalha descartável: Lute pelas florestas, queime um brasileiro”. ”Como podemos ver, diz Carvalho, conseguimos, e também conseguiram transformar-nos no algoz de um “grande santuário” e de nós mesmos” (2005, p. 193).

George Monbiot, diz ainda que muitos trabalhadores das fazendas brasileiras trabalham em regime de escravidão, o que, infelizmente, não podemos desdizer.

For the same reason, and despite the best efforts of President Lula, the ranchers are now employing some 25,000 slaves on their estates. These are people who are transported thousands of miles from their home states, then – forced to buy their provisions from the ranch shop at inflated prices – kept in permanent debt. Because of the expansion of beef production in the Amazon, slavery in Brazil has quintupled in ten years [18].

O artigo de Monbiot termina com um pedido de ajuda e uma alerta aos leitores do jornal:

Perhaps the Guardian’s readers could help me locate it. Unlike other meat, fresh beef’s country of origin must – because of BSE - be printed on the packet. So, with a little detective work in shops and supermarkets and round the back of pubs, schools, hospitals and barracks, it shouldn’t be too hard to trace. Once you’ve found it, I suggest you back away[19].

Seja como for, a resistência já se instaurou entre os povos da floresta amazônica: os migrantes, os caboclos, os povos indígenas, etc. De forma silenciosa, mas contínua. É importante conscientizar-se dessa luta e partir para o embate, seja ele político, econômico, religioso, cultural, etc., deve acontecer de forma dialógica. O último livro de George Monbiot, Heat: how to stop the planet burning, publicado pela Penguin em outubro de 2006, tem como tema a questão do aquecimento global e indicação de direções para a solução do problema. Dessa maneira, depois de retratado, ligeiramente, o olhar de George Monbiot, sobre a Amazônia, avancemos em direção a outro americano em terras estrangeiras.            

Alex Soumatoff é um jornalista americano que esteve na Amazônia, especificamente, no Acre. Na contracapa de seu livro ”O mundo em chamas, já destacado neste trabalho dissertativo, há a seguinte nota escrita pelo tradutor Luiz Fernando Martins Esteves:

No dia 22 de dezembro de 1988, o seringueiro Chico Mendes saía de sua casa em Xapuri, Acre, quando foi fulminado por um tiro de espingarda – um fim que como jurado de morte ele já esperava. Poderia ter sido apenas mais um crime brutal nos confins da Amazônia, mas Chico Mendes era figura destacada do sindicalismo rural e do movimento ecológico. Assim, o caso ganhou repercussão internacional e avivou a polêmica em torno da devastação da floresta amazônica. Alex Shoumatoff, jornalista americano, deslocou-se até um canto remoto do Brasil para investigar o caso e fazer a crônica dessa morte anunciada, detendo-se nas suas origens sociais, econômicas e políticas, bem como em seus imprevisíveis desdobramentos. Suas revelações surpreendem e emocionam, alertando-nos para uma tragédia que deita raízes na pobreza, na ignorância e na estrutura agrária de uma região que hoje, com razões de sobra, tem sobre isso os olhos do mundo.

Shoumatoff oferece aos brasileiros a sua obra nos seguintes termos: “Para o povo brasileiro, que está entre os mais amáveis e generosos da Terra: Que possam “chegar lá” e ocupar seu lugar entre as grandes nações, mas lembre-se de seu sábio ditado: “O apressado come cru”. De maneira irônica e sarcástica, o escritor euroamericano, instiga o Brasil rumo ao desenvolvimento, porém, utilizando-se de um ditado popular brasileiro, insinua que a nação não está madura o suficiente para ocupar espaço entre as nações desenvolvidas do planeta. Essa pretensa sabedoria e ridículo julgamento de valor permeiam toda a extensão da crônica de viagem. Shoumatoff ficou conhecido no mundo jornalístico-literário, através de usurpações desse enorme formigamento de fatos e boatos brasileiros. De acordo com Esteves, três de seus oito livros se referem ao nosso país: In Southern Light; The Rivers of Amazon; e The Capital of Hope, este sobre Brasília. E ainda, seu relato de morte de Chico Mendes na Vanity Fair de abril de 1989 foi uma das primeiras reportagens investigativas sobre o caso, e teve seus direitos de filmagens adquiridos pela Fox. Ex-redator da revista New Yorker, Shoumatoff escreve para a Vanity Fair, Conde Nast Traveler, e muitas outras publicações.

Shoumatoff, em uma página com o título em latim Caveat Emptor, traduzido em nota de rodapé por Acautele-se o comprador. Assim, comprador de notícias sobre a Amazônia, esse ilustre intelectual, ainda declara que em seu livro anterior, In Southern Light há um capítulo central sobre Os problemas dos dados amazônicos. Ao finalizar essa advertência aos seus leitores, nosso instruído jornalista sentencia:

Como sempre acontece numa narrativa baseada em fatos reais, ninguém se recorda exatamente do que aconteceu. Mas até que ponto se pode acreditar em alguma coisa? Especialmente num lugar como o Brasil, onde a visão geral sobre o que está ocorrendo é tão fluida, onde outras coisas – atitudes culturais, e mesmo a moeda, sempre m mudança – conspiram contra a visão de uma realidade fixa e estável. No Brasil tudo é diferente (1990, p. 10).

Que impressões são essas que levam o investigador cronista a declarar tal sentença? Por que, aos olhos do estrangeiro, somos seres fluidos, instáveis? Por que nossas atitudes culturais lhes parecem tão instáveis? Certamente as coisas mudam. Em contato com o outro nunca mais seremos os mesmos, ou ele, o intruso, será o seu mesmo. Novas informações, idéias, sonhos e lembranças nos acompanharão ou os acompanharão como é o caso de todos esses e aqueles que se aventuraram pelo Brasil e etc. Podemos dizer, em uma espécie de triunfo, que as coisas – fatos, boatos, moeda, moda, estudos, hábitos, etc., se modificam. Logicamente, não em curto espaço de tempo, mas lentamente e paulatinamente.

Shoumatoff agride verbalmente os amazônidas ao generalizar que na Amazônia, o problema dos dados é particularmente grave devido a sua vastidão e ignorância em aritmética.

Se a gente faz uma pergunta que antecipa uma resposta afirmativa, os caboclos e os índios são tão humildes que concordam automaticamente, por você, o civilizado, o doutor branco, sabe mais. Então se aprende, tentando estabelecer uma determinada informação, a perguntar para várias pessoas, ou mesmo a perguntar várias vezes para a mesma pessoa. É preciso fazer rodeios, voltar atrás e fingir que não entendeu: Como é mesmo? É preciso reunir as informações em camadas, misturá-las e transformá-las em algo único, compará-las umas com as outras, até que o resultado comece a adquirir um certo ar de polimento e a aparência de credibilidade (p. 41-2).

 O mundo em chamas, assusta até pelo título exagerado. Dividido estrategicamente em três partes: na primeira – Assassinato na Floresta Tropical – descreve, com detalhes, tanto a jura de morte quanto à própria morte de Chico Mendes, seu velório, enterro e clamor emergido da população xapuriense, acreana, brasileira e estrangeira, pedindo justiça aos assassinos e encomendadores do homicídio.

Descreve a trajetória política de Chico Mendes, sua ascensão social. Na segunda parte do livro, descreve a segunda morte de Chico Mendes, denunciando a lentidão da justiça brasileira no processo de investigação e punição dos assassinos. Na última parte do livro, descreve seu retorno ao Acre, com a intenção de entrevistar fazendeiros. Denuncia o apagamento jornalístico sobre o herói ambientalista. Para Shoumatoff, a Amazônia se apresentou assim:

A selva em si parecia um carnaval agitado e lentamente sério, no qual todos usam máscara. Camuflagem é a estratégia preferida de sobrevivência. Mariposas imitam folhas, cobras parecem cipós, mariposas-esfingídeas parecem beija-flores, orquídeas mudam as formas para simular o órgão sexual das abelhas fêmeas, borboletas fazem todo tipo de mimetismo (p. 353).

A sociedade humana é comparada à sociedade da selva dessa forma:

Mas a duplicidade da floresta tropical não é nada comparada ao que encontramos na sociedade humana. Chantagens, reações violentas, juramentos de morte, contrato de morte, dúzia de motivos para mentir (que não passa de dissimulação colocada em palavras), as 10 mil irregularidades encontradas no governo do presidente Sarney: tais refinamentos são típicos da nossa própria espécie. A maldade humana – não apenas no Brasil, claro – só é limitada pela imaginação. O homem imita a natureza, mas a supera nesse ponto (p.354).

Diante desse quadro comparativo, quais seriam as saídas para um país perseguido por olhares primeiro mundistas tão presos aos discursos imperialistas? Aos brasileiros, estigmatizados por uma ordem de sabichões como violentos e cruéis, restam dados, relatos e opiniões que convergem para a mesma prática discursiva do período colonial. Essa formação discursiva, para anteciparmos o conceito foulcaultiano, se delineia e converge para um campo em aberto sobre a Amazônica brasileira – o discurso imperialista. A toda a nação brasileira, e principalmente, aos intelectuais universitários ou não, cabe a tarefa da construção de uma Amazônia discursiva, em que tais discursos estrangeiros, sejam postos à luz para possível análise. Aos brasileiros, urge que seja dada a voz para que possam (re)construir sua autonomia discursiva. Aos estrangeiros não serão permitidas tais impressões e sanções, antes, ao brasileiro e, em se tratando da Amazônia, às diversas e inconclusas, tribos amazônidas. Afinal, quem são os sujeitos amazônidas senão os indivíduos que moram em tal região?


Autor: Eliomar Rocha


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