Resenha do filme Divã



Resenha crítica Indiferente ao sétimo mandamento da Sagrada Escritura – não adulterarás – o filme Divã, protagonizado por Lília Cabral, conta a história de uma mulher quarentona que revê a vida sob a ótica da Psicanálise e, não hesita em trair o consorte em nome de sua insatisfação interior pelo malogrado casamento com homem que, na sua essencialidade, representa, psicanaliticamente, nada mais do que um reflexo da figura paterna. Dá-nos a entender, no enredo fílmico, que a esposa casou-se buscando no marido a mesma proteção dada pelo pai: buscava um colo para nele sentar-se tal qual uma tomada de câmera nos revela numa certa cena do filme, instante em que a menina perde a mãe e é acariciada pelo co-autor da prole – um chorão por natureza própria. Contudo, o que está em xeque na produção cinematográfica com característica das novelas da Rede Globo de Televisão com seu tom pastelão – o humor previsível – é menos a questão do adultério do que o problema do existencialismo com sua sobrecarga de rotina – a maldita relação marcada pela mesmice nos relacionamentos diários. Como quase toda produção com ares de novela – narração, usualmente curta, ordenada e completa, de fatos humanos fictícios, mas em regra, verossímeis – o filme nos revela o manifestar-se da Lei de Talião – a lei de talião (do latim Lex Talionis: lex: lei e talis: tal, parelho), também dita pena de talião, que consiste na rigorosa reciprocidade do crime e da pena — apropriadamente chamada retaliação: o famoso axioma “olho por olho e dente por dente”. Além da protagonista há uma constelação ao lado dela: o marido Gustavo (interpretado por José Mayer: que possui uma suposta amante – objeto de desconfiança de Mercedes), a amiga Mônica (vivida por Alexandra Richter), além de Theo (Reynaldo Gianecchini: fonte inesgotável de fantasias de qualquer psicanalista didata... ) e Murilo (Cauã Reymond), que interpretam os paqueras de Mercedes. A narrativa que os une ajuda a dar um tom singelo à produção. Mercedes procura, inicialmente, um psicanalista, simplesmente, por mero acaso, uma curiosidade, porém, esta experiência acaba por mudar o rumo de sua existência porque a partir deste instante, o casamento, sua realização profissional e seu poder de sedução são colocados à prova: a harmonia dá lugar à desarmonia e transforma-se em um autêntico caos – comportamento praticamente imprevisível exibido em sistemas que têm evolução temporal extremamente sensível a variações em suas condições iniciais. Dir-se-ia a partir do caos no casamento: adeus moralidades, adeus monogamia casamenteira, adeus primeiro amor, adeus marido, adeus pudor. Após perder a resistência diante do psicanalista – sua figura em um espelho – Mercedes revela-lhe suas fantasias erótico-mentais hollywoodianas, seus amores platônicos com Mel Gibson, a masturbação frequente durante a ausência do marido, o desejo de amores juvenis: seja como for, essa sujeição por jovens acaba lhe saindo caro demais, pois não existe, na realidade, o jovem idealizado com o pensamento maduro, como assim o quer a “des-razão” da personagem Mercedes. Em nome da fugacidade do casamento Mercedes realiza todos os extravios e mesmo todas as monstruosidades que podem ser feitas em seu nome: abandona o marido, comporta-se como uma moça no auge de sua libido; mas não adiante: as rugas no rosto – sinais da plástica que ela não fez – e as dores na coluna denunciam flagrantemente sua vã interpretação: não existem adultos sob a forma de miniaturas... Pode-se dizer que a análise que ela faz não cura nada – apenas mudam um pouco do essencial porque esta prática é teoria em ato, materializada no dispositivo analítico e nos processos que ele condiciona. Quanto ao processo em ação no tratamento analítico, especialmente a transferência e a interpretação, pode-se dizer que ele foi um sucesso porque Mercedes não teve medo de lidar com os seus demônios interiores e, por conseguinte, o psicanalista pode avaliar bem o seu comportamento: profudissimamente marcado pelo desejo de libertação. Sua compulsão – o ato realizado (prática) – e sua obsessão (a teoria) – o ato pensado se completam: finalmente a heroína torna-se livre, leve e solta para dar vazão às suas instabilidades interiores e passa a beber na fonte original do desejo: o livre-arbítrio – capacidade imorredoura e individual de autodeterminação. Embora possa parecer uma narrativa cinematográfica engraçada e descompromissada, ela, na sua forma latente, no seu aspecto discursivo não é engraçada não. Porque a discursividade é objeto de aprendizagem e nós somos, enquanto seres receptivos à linguagem, aprendedores e apreendedores de informações e assimilamos aquilo que nos chega à mente e por que não dizer, também, ao coração. Sob o ponto de vista da moral, o filme é uma receita, no que se refere à moral e aos bons costumes, à prática explícita da dissolução. Nesse contexto, a moral religiosa – esse Superego sufocante – fica relegada para segundo plano. O filme Divã exibe, em visão psicanalítica, apresenta uma relação de perdas e ganhos. Tendo tido alta dos serviços psicanalíticos (um ganho) a protagonista perde sua melhor amiga: talvez a cena mais comovedora da narrativa pastelão onde o tom de um riso forjado dá lugar ao de choro (a perda). Após a perda retorna ao divã de Freud para recuperar a autoconfiança perdida: e consegue – ao final da narrativa liberta-se, finalmente, de seus demônios interiores e aprende a lidar sozinha com as próprias emoções. É dentro desta segunda perspectiva que ela consegue a alta dos serviços de análise, após obter esse efeito de mudança – que é sua razão de ser que se fundamenta na individualidade que dela se beneficia, permitindo à própria personagem esclarecer os motivos inconscientes próprios de si mesma. Em uma visão da dialética freudiana, pode-se dizer que em relação à mudança, seu efeito não deixou de ser provocado e não parou de se estender, ainda que a maior parte daqueles que participam disso não o saiba. Esse é o essencial que muda. É o aprés-coup – o a posteriori – conhecimento ou idéia resultante de experiência ou que dela resulta. Conclusivamente, o filme Divã, é um prato cheio para o divã de Freud e para nós, aspirantes à psicanalista, a película cinematográfica nos ensina que a Psicanálise encontrou a moral em sua rota e, do exterior e quase apesar dela, perturbou seus fundamentos e ponto de não poderem mais ser pensados como antes; é nisso que sua ação pode ser da ordem da ciência, e não da Filosofia, como bem afirma Claude Le Guen em A dialética freudiana – prática do método psicanalítico. Finis coronat opus – o fim coroa a obra.
Autor: leni lourenço de oliveira


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