Maurício e Minerva



MAURÍCIO E MINERVA

 

(Vencedor do concurso de contos do Festival de Arte da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, em 1994)

 

Minerva agora é uma mulher quase louca. Enquanto Maurício não vem, Minerva bebe e se enerva com qualquer ruído que faça algum dos cinco filhos. Pesam em sua cabeça várias doses de cachaça. Quase quarenta anos. Maurício bebe na rua mas sempre vem vomitar em casa. A mãe de Minerva mora no barraco em frente. Não gosta quando ela está bebendo mas a velha, de mês em mês, também enche a cara, no dia em que recebe o dinheiro da aposentadoria. O que não dá nem para comprar o pão durante o mês, ela gasta com cachaça. Minerva pensa que a mãe se embriaga porque as pessoas dão-lhe bebida. E assim vão vivendo em vão. Minerva acha que não. Ela pensa que é feliz e a vida na favela é uma beleza. Pobreza mesmo é pouco. Só o que se vê ao redor é a mais absoluta miséria. Lixo se espalha nos quintais e esgotos à porta das casas. Minerva varre o terreiro quando deu tempo do sol secar um pouco o chão, eternamente úmido. É uma mulher trabalhadeira. Mas nada disso adianta. Das mulheres da favela é a que menos bebe e a que menos tem filho. Mas nada disso adianta ainda. É tola. Sua inteligência é infantil e seu raciocínio lento como um drama em câmara lenta. Seus meninos são raquíticos e estão sempre doentes. As meninas maiores saem uma vez por semana para matar a fome na casa do pai alcoólatra. Os três menores são filhos de outros favelados. Apenas o caçula, chamam de Bigui, é filho de Maurício. Ainda assim, ele duvida. Os meninos são uns capetinhas. Saem de manhã e voltam com fome à tardinha. Ainda bem que passam o dia todo fora de casa, senão seria o tempo inteiro de fome ali aos olhos desesperados da mãe. Os moleques tomam banho de lama, tomam banho ao sol e depois descascam o barro seco enegrecido. Tomam banho de chuva e estão sempre sujos. Sujos, fedidos e famintos. Quando as irmãs lhe trazem algo comestível da casa do pai, eles avançam e comem até as cascas. Nem precisa estar limpo. Minerva agora é uma bêbada. Transformou-se numa mãe desnaturada. Não pensa, não analisa, não pondera. Está do jeito que ela quer. Só precisa agora de um homem para aplacar a sua fúria. Precisa ser possuída, penetrada. Maurício deve estar bêbado também em algum ponto da cidade. Maurício deve estar na cama de outra mulher. Deve estar gastando todo o dinheiro da semana. Mas, Maurício, na verdade, é esperto e ligeiro. Nesse momento, já fez tudo isso. Já transou com uma puta, já bebeu tudo o que pôde, já gastou todo o dinheiro. Minerva se esgota de cantar pela viela enlameada que lhe serve de acesso à casa. Os meninos choram em casa de medo, e de fome também – se lhes dessem comida, calariam a boca e até esqueceriam da pobre mãe. Minerva tenta chamar a atenção da favela para o espetáculo mais comum ali, tão reprisado por eles próprios. Ninguém olha. Só Julião, um negro de dois metros de altura por dois de largura, que para um minuto sua concentração na sinuca para observar a doida varrida que tenta impressionar. Ele pensa: é com essa que eu vou dormir hoje. Ela reage em pensamento: pode vim, negão, pode vim... Maurício agora é um rosto na multidão. Apressado, cambaleante. Precisa chegar em algum lugar. Precisa ir. O corpo dói, a cabeça gira. Orgulha-se: a cachaça foi grande. Os carros passam raspando a cem por hora. Quando um de repente já não raspa, atropela, esmaga sua perna. Maurício é um indigente num hospital da rede pública. Um precário hospital estadual que não tem médico de plantão nem seringa descartável. Minerva está mais calma. Tem sobre ela um peso de cem quilos. O negro sua. Ela arfa de prazer. Falso. Ou não. Fazem movimentos rápidos e barulhentos. As crianças dormem famintas na casa da avó. Maurício geme de dor no hospital, não aparece ninguém. Minerva geme também dentro de casa. Geme alto, grita. Maurício esgota suas forças. Julião solta um urro, um arroto de cerveja choca, um peido. Levanta-se, veste a camisa, sobe o surrado jeans e vai embora. Minerva está tesa de bêbada. Não gozou, não viu nada. Maurício chora, se arrepende, chama seu nome: Minerva! Enquanto ela pensa que dorme. Sente-se pior, chama desesperadamente: Maurício! Ele está sozinho, com frio. Maurício agora dorme de dor. Alguém lhe aplicou um sedativo barato e vencido. Minerva chora. Minerva e Maurício. Maurício e Minerva estão na mesma solidão.  

(24/10/94)

 

 

 

 

 

 


Autor: Roberto Remígio


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