FAREWELL DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: UMA HERMENÊUTICA DE AMOR-CORPO-TERRA.



Ao abrir a derradeira obra de Drummond, Farewell, buscamos o seu conteúdo, a elaboração artística empreendida pela percepção sensível, capaz de dirigir nosso pensamento e sentimento.

Efetivamente, esta é a missão da poesia, dar-nos um mundo completo, exprimir acontecimentos e sentimentos humanos, manifestados na realidade exterior.

Mas, o material que nos vem não é a madeira, nem a cor, é a linguagem e, como tal, é o próprio homem. A composição poética em questão é a lírica. Vem-nos numa canção pura, naturalmente expressa por sentimentos vinculados à interioridade de uma alma.

Nossa busca ao lermos qualquer texto é abusca de sermos lidos pelo que lemos. Se o caráter da leitura, a princípio parece silencioso e solitário, num segundo momento, torna-se vibrante e ecoante.

Parafraseando Jorge Luiz Borges, o livro é mesmo um prolongamento da memória e da imaginação. Drummond abriu os baús do vivido e inventou para nós um mundo cercado de uma realidade verossímil. Mas, é o espírito, a poética, o ethos drummoniano que queremos trilhar.

Trilhar o poiein do poeta na composição do seu objeto, saboreando o material em gênese, reconhecendo que o percurso não nasceu perfeito, fez-se perfeito pela aptidão manuseada, revelada pela consciência estética.

Os temas do amor, corpo e terra sempre perseguiram a poética drummoniana. Há autores que costumam afirmar que os temas os escolhem e não o contrário. No caso de Drummond, temas variados estão sempre interligados. Os segredos, caprichos e imperativos subjetivos regulam a sua matéria poética, envolta por uma ação que, se a princípio estava sob a influência do indefinível, posteriormente, foi regida pelo impulso racional dos meios técnicos.

O jogo metafórico propõe-nos à concentração do que há no fundo de nós mesmos. Assim, nosso olhar interpretativo sobre Farewell será também um procedimento de inventar "relações na realidade da obra (assim como a obra inventou relações na realidade do mundo)".(ANDRADE, 2001: 128).

Nosso trabalho propõe a análise de alguns poemas da obra em questão. Poemas que possuem na sua temática o amor, o corpo e a terra, vinculados a eles, o sofrimento, a velhice, o tempo e a morte.

O poema "Unidade", que nos abre à última vontade poética de Drummond, não nos remete ao abstrato campo onírico de tudo, mas sim à condição primeira da existência, às experiências de sofrimento e finitude. Racionalizada a condição de todos os seres — plantas, flor, pedra e animais — mostra-nos o poeta que o sofrimento é a unidade do mundo. Estamos todos submetidos a essa mesma realidade:

"As plantas sofrem como nós sofremos.

Por que não sofreriam

Se esta é a chave da unidade do mundo?" (F., p.13)

A concepção de unidade que Drummond lança remete-nos à concepção primitiva da religião, a qual apresenta um modo espiritual conhecido como animismo. Tal concepção revela que o mundo constitui um todo, um conjunto vivo. Conjugado numa consciência solidária com a animação e o movimento. Maurílio Adriani, em História das Religiões, expõe-nos com precisão histórica esta fase da humanidade (ADRIANI, 1998: 18):

"Não há distinção entre coisas "animadas", já que, precisamente, tudo é alma, que qualquer entidade é dotada de uma força individual própria: o vento que sopra, a nuvem que corre no céu, a folha que oscila; as ervas e as plantas, isoladas ou reunidas na vegetação escura da floresta; a água que cai do grande mar celeste, que corre nos regatos da Terra ou jorra das fontes ; o fogo agitado, sempre o mesmo, mas nunca igual a si próprio; o fulgor do raio e o ribombar do trovão, a corrida do animal na luta ou na fuga; e o contínuo fervilhar da instável onda do mar."

Os recursos estilísticos, como as prosopopéias: " A flor sofre tocada por mão inconsciente"; "A pedra é sofrimento" (F., p.13) traduzem a concepção anímica de que tudo que nos circunda — coisas, situações, eventos e, os homens — carrega, no sentido grego da palavra, "alma", "hálito". Ainda como nos revela o estudo de Adriani: "Todo o mundo é alma". Daí a integração, inclusive, do sofrimento que é imanente a tudo isso. O universo visto como uma teia dinâmica, inter-relacionada, em que os componentes existentes decorrem das propriedades comuns a todos, numa coerência total, daí a escolha adequada do título "Unidade".

Intrigante, parece-nos o último verso: " Não temos nós, animais, / sequer o privilégio de sofrer"(F., p.13). Drummond, filho de uma poética moderna, não se desprende da realidade que o cerca. A lírica moderna, iniciada por Baudelaire, volta seu olhar para a civilização técnica, que tem a experiência característica de uma época dominada por vários acidentes que reduzem o homem a um mínimo — à desumanização. Uma desumanização que formula uma poesia dura, em que o eu não mais infunde sua subjetividade afetiva, mas vê-se condenado à solidão, submisso a uma violência que o faz em pedaços, que não permite "o privilégio de sofrer" como algo inerente ao humano, porque a técnica o transforma em máquina, em substância fragmentada, porque também a civilização mostra-se complicada, contraditória e de sensibilidade nervosa.

Em "Acordar, viver", a idéia ainda é a do sofrimento. O espírito do poema, verso a verso, molda-se em interrogações reiteradas. Assumir o cotidiano como unidade de medida na sucessão da vida humana é o conflito do eu poético. A circunstância de viver este cotidiano "sem horror", tendo que "suportar a semelhança das coisas", protegendo-se das feridas do acontecimento, caracteriza a silenciosa história das grandes massas; milhões de pessoas que a todas as horas do dia e em todos os países do globo levantam a uma ordem do sol, prosseguindo no obscuro e silencioso labor automatizado. É o reflexo do homem contemporâneo, nascido com a modernidade. A vida toma a dimensão do absurdo, pois o "cogito" iniciado com a modernidade, o racionalismo que deseja explicar tudo, fechado em si mesmo, traz como conseqüência o individualismo.

O poema termina com a linda metáfora: "A vida é pétrea". Uma revelação categórica da decadência de uma civilização que trocou suas crenças no sobrenatural por um sistema de certezas fechado, consubstanciado em si mesmo, que trocou o simbólico pelo racional. Daí, a angústia encerrada na linda metáfora, que ainda nos faz lembrar Schopenhauer, a vida é má porque a dor é seu estímulo. Dor que nasce da vontade, porque indica necessidade (DURANT, 2000: 304):

" Para cada desejo satisfeito, restam dez que são negados. O desejo é infinito, a realização é limitada — " é como as esmolas dadas a um mendigo, que o mantêm vivo hoje para que sua miséria seja prolongada amanhã. (...) Enquanto nossa consciência estiver tomada pela nossa vontade, enquanto nos entregarmos à multidão de desejos com suas constantes esperanças e temores, enquanto estivermos sujeitos a ter vontade, nunca, poderemos ter felicidade ou paz duradoura".

Em "O Malvindo", a inadaptação ao mundo apresenta-se como real, um real que nada oferece. Imagem fotográfica de uma civilização perdida nos seus sentimentos: "Ama sempre, desfalcado, com o punhal atravessado na garganta ensandecida" (F, p.74); perdida nas suas convicções: "Sua ficha — foi rasgada, por ausência de sinais" (F. p.74.), porque possui a face da banalidade. Uma linguagem que expressa paradoxalmente a flutuação entre o sere o objeto — conteúdo que traduz ainda a lírica moderna.

A estrutura do pensamento expresso em Farewell carrega uma ideologia capaz de nutrir as nossas mais profundas verdades ocultas. Daí sua grande importância intersubjetiva.

Os poemas, por enquanto analisados, trazem na mensagem o sofrimento. Percebemos ao longo da leitura a corrente dialógica entre um poema e outro. A temática do corpo está intrinsecamente relacionada a do tempo, a da velhice, a da morte que, por conseqüência, está relacionada a do sofrimento. O poema "O segundo, que me vigia", por exemplo, traz no seu interior, a materialidade do tempo figurada pelo "segundo" que, por conseqüência, liga-se à morte, que não existe sem o seu contrário, a vida. Mais uma vez, o tempo mecânico, o relógio, vem sentido como o símbolo da civilização técnica, dominada pela aceleração.

O eu poético apresenta-se como vítima desta modernidade: "De mim não se condói, não pára, não perdoa".(F. p.80). Neste sentido, o poeta constrói sua poesia adequada ao destino de sua época, e numa obsessão — tão peculiar ao nosso tempo — volta aos mesmos temas. O que nos faz lembrar Baudelaire (FRIEDRICH, 1978: 45):

"Para se penetrar a alma de um poeta, tem-se de procurar aquelas palavras que aparecem mais amiúde em sua obra. A palavra delata qual é sua obsessão."

Assim, como já vimos observando, os temas realmente formam uma grande corrente dialógica. O tema do corpo dialoga com o da velhice, com o do tempo, com o do sofrimento e da morte. O poema "A carne envilecida", composto parece-nos de um único fôlego, pois curto e profundo, mostra-nos as limitações da matéria, do corpo sob a imagem da "carne encanecida" que, sôfrega por consolo, oscila entre o prazer e a dor. Sente, por um átimo, o retorno dos sentidos carnais satisfeitos: "Volta a carne a sorrir, no vão intento/ de sentir outra vez o que era graça..." (F. p.14). Mas, limitada pela ação do tempo, pelos "dons infernais", sem defesa, vira cinzas, traz horror e tristeza: " Mas os dons infernais são novo agravo" ( F. p.14).

E numa obsessão, o poeta insiste com "Missão do Corpo". Nesse, o corpo é a imagem suprema do existir, instrumento vaidoso, solto entre as antíteses do sofrer e do gozar: " Na inocência do sofrimento/ como na inocência do gozo" (F. p.71). Somente ele cumpre os ritos mágicos da existência: " Meu corpo, minha dor,/ meu prazer e transcendência,/ és afinal meu ser inteiro e único". (F. p.71).

Sintoma essencial da modernidade é a matéria e o racionalismo. O poeta dá ao corpo a função sacralizadora da existência, função antes delegada ao espírito, à alma. Mas, é o próprio poeta também que reconhece as limitações desta "estrutura de viver", porque presa à função do tempo. Emnenhum momento a voz poética foge ao revelado pela história, os valores estão referenciados pelo real, ainda que recriados dentro de um corpo lingüístico peculiar, transcendidos pela imaginação.

O mesmo acontece em "Noite de Outubro" que, por meio de uma belíssima metáfora, o corpo volta a tomar consciência da sua efemeridade: "e não esta lenta vírgula rastejante/ no chão noturno da existência?" (F., p.73). Tal metáfora denuncia a prerrogativa do espírito em frente à existência, à transitoriedade do eu; e o motivo noturno do universo impõe-se pela esfera banal e limitada das necessidades imediatas: "O Zodíaco pesa-me sobre a cabeça" (F., p.73).

Os valores transmitidos sutilmente por meio das figuras estilísticas espelham a modalidade profana de ser do homem, situação existencial assumida ao longo da história contemporânea. E a perspectiva histórico-cultural pertencente a uma civilização que dessacralizou o mundo, ou senão, que trocou o veículo de passagem ao sagrado — a supremacia não é mais o espírito, e sim a matéria, o corpo.

A experiência social e as condições históricas aparecem no contexto literário. O fenômeno literário focalizado por Drummond, seu olhar estético sobre tudo que o circunda, é em profundidade obra do seu espírito.O que chama Valéry de: "fruto de uma experiência individual" (VALERY, 1991: 187). Mas que, uma vez lançada ao mundo como objeto, adquire força e forma de ação: "Um poema é um discurso que exige e que provoca uma ligação contínua entre a voz que existe e a voz que vem e que deve vir". (VALERY, 1991: 193). Corrobora Sartre, em outras palavras: " É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só existe arte por e para outrem" (SARTRE, 1989: 37).

Ainda ligada à temática do corpo, temos a da velhice. Ela encontra-se no poema "Enumeração"; a palavra velho(a) aparece inúmeras vezes, traz como síntese estilística imagens sensoriais: "Velhos furores demenciais/ esmigalhados no mutismo/ de demônios crepusculares"; comparações: "velhos signos de santidade/ atravessando a selva negra/ como servos escorraçados", e antíteses: "velhos choros que não puderam ser chorados", imagens curtas, momentos pequenos que, ao final, de tão velhos serão esquecidos: "velhos issos, velhos aquilos/ dos quais sequer me lembro mais" (F., p.58).

Esta velhice prenuncia a morte — berço do óbvio — que, em Farewell, desfila em poemas vários. Em "Desligamento", por exemplo, alma e corpo extinguem-se para sempre. Nesse, o poeta aceita a alma como parte da existência. Em apóstrofe, o poema inicia-se: " O minh'alma, dá o salto mortal e desaparece na bruma, sem pesar" (F., p.51). Somente no momento final, de dor aguda, de perda total, o eu poético aceita a companhia da alma. Uma confusão própria, peculiar ao contemporâneo; perturbada pela imprecisão do momento. O reconhecimento do fim traz sofrimento.

Em "Liberdade", poema curto, composto de seis versos, as imagens paradoxais encerram a complexidade temática com uma certa leveza, talvez por força vocabular do título:

O pássaro é livre

Na prisão do ar.

O espírito é livre

Na prisão do corpo.

Mas livre, bem livre,

É mesmo estar morto.

Implicitamente, a idéia do imponderável preenche o ser de certeza e reiteradamente o vocábulo "livre" toma a dimensão dialética do estar livre, estar preso; estar vivo, estar morto. No fundo, o eu lírico quer esta morte que acredita trazer a verdadeira liberdade.

A experiência existencialista declara que "o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define" (NOGARE, 1981: 143). O poema "Queda"traz-nos esse sabor existencialista. Ao signo "tarde" podemos ler como a plenitude existencial. Quando o poeta diz: " Nós caímos na tarde numa antecipação de morte sem dor"(F. , p.91), parece-nos que ele não está falando da morte no sentido literal de fim; pelo contrário, "a morte sem dor" remete à reflexão, à hora que o ser toma consciência da sua existência e pode inquirir-se, a fim de moldar sua essência. Lemos a estrofe:

"Não importa que o sol regresse com o prestígio

de reinventar a vida albente.

A tarde, a triste tarde caiu. Caímos

imorredouramente." (F., p.91)

Somente por meio da "tarde" (lemos "consciência"), o eu lírico pode movimentar-se, conceber-se, definir-se a si próprio.

Mesma abordagem pode ser definida no poema "Sono limpo". O sabor existencialista parece mais profundo agora. O eu lírico busca compor-se na realidade e não no sonho: "Não mais o sonho, mas o sono limpo/ de todo excremento romântico" (F., p.98). Ele nega o "nada":

"Não à morte": ao sono

que petrifica a morte e vai além

e me completa em minha finitude,

ser isento de ser, predestinado

ao prêmio excelso de exalar-se(F., p.98).

Para logo depois, numa dialética desesperada, numa tendência própria do seu espírito e temperamento, abraçar-se a esse "nada". Um processo ôntico privativo do homem contemporâneo, perdido em ideologias contraditórias.

Segundo Leão, em Introdução à Metafísica, sobre os estudos de Heidegger (LEÂO, 2000: 110):

"A necessidade do homem de estar sempre presente no mundo dos entes, para chegar a ser ele mesmo, exprime que o homem não pode ser o ente que é, senão encarnado no mundo. Em contínua comunhão com os outros entes".

Isso nos remete a um importante signo desenvolvido por Drummond, não só em Farewell, mas em todo o seu percurso literário: a Terra(memória). Em "A ilusão do migrante", poema longo, composto de seis estrofes, recheado de figuras, aparece o homem preso às suas raízes, rosto e alma delineados pelo chão. As prosopopéias ("a correnteza do rio/ me sussurrou vagamente"; " os morros empalidecidos/ no entrecerrar-se da tarde/ pareciam me dizer"), as metonímias ("... um riso, uma voz/ ressoam incessantemente/ em nossas fundas paredes), as metáforas ("essa ferida alastrada/ na pele de nossas almas") e as antíteses ("Quando vim da minha terra,/ não vim, perdi-me no espaço")(F.,p.20,21) desfilam a mensagem de o poeta nunca ter saído realmente da sua terra, que sempre esteve preso às raízes e, essencialmente,todos somos formados por elas: "...tudo é conseqüência/ de um certo nascer ali" (F,p.20). O poema é composto, em primeira instância, na 1ª pessoa do singular (1ª, 2ª, 3ª estrofes), essa singularidade do eu lírico posteriormente toma a dimensão pluralizada do nós (4ª e 5ª estrofes), pois o que vem afirmar trata da dimensão humana em sua completude: " Que carregamos as coisas/ moldura da nossa vida/ rígida cerca de arame,/ na mais anônima célula" (F,p.21).; para finalmente retornar à sua singularidade (6ª estrofe), carregada de cultura local:

" Lá estou eu, enterrado

por baixo de negras sombras,

por baixo de lavras de ouro,

por baixo de gerações,

por baixo, eu sei, de mim mesmo,

este vivente enganado,

[enganoso." ((F,p.21).

Ontologicamente, um Ser reconhecido como produto da terra, da família, de algo ou alguém especial. Mesmo diante de uma nova realidade, uma realidade presente que não satisfaz, sugere-nos ele, que conservamos nossa gênese, no caso específico, o poeta conservou Minas Gerais dentro de si, porque profundamente se é aquilo, ainda que no final se defina como um enganado: (sufixo latino ado: efeito de ação ou feito de) feito de engano; e um enganoso: (sufixo latino oso: abundância, cheio de) cheio de engano.

Vemos o cotidiano refletindo toda uma cosmovisão em "O peso de uma casa", poema composto de dez dísticos, com rimas emparelhadas. As imagens formam um sistema de referência fixo, capaz de alicerçar a construção da identidade do eu poético. O que nos remete a Ortega e Gasset (KUJAWSKI, 199: 44): "Eu sou eu e minha circunstância".

A materialidade do lar — "... o frescor da sala", "egrégia escada", "austera mesa", "móveis em pó", "ondulantes cortinas" (F., p.76,77) — restitui ao espírito o peso das raízes familiares e a tênue linha que separa passado e presente, estabelecendo o encontro do poeta consigo mesmo, que é da solidão de ser o único sobrevivente a lembrar-se do passado e neste encontrar sua essência presentificada, perene: "Sou eu só a portar o peso dessa casa que afinal não é mais que sepultura rasa?" (F., p.76,77) — lembra-nos Linhares Filho (LINHARES FILHO, 2000: 20):

"Mas, porque possui verdadeira consciência artística, o seu tempo presente tem, não raro, um vigor de perenidade. Assim, a efemeridade, um dos elementos do cotidiano, é um dos principais e mais válidos motivos com que paradoxalmente, eterniza sua poesia."

Antonio Candido, em Vários Escritos, ensaio produzido em 1965, traz uma observação que nos parece satisfatória (CANDIDO, 1965: 96):

" O bloco central da obra de Drummond é, pois, regido por inquietudes poéticas que provêm umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo, têm como conseqüência uma espécie de exposição mitológica da personalidade".

Isso parece patente em "Escravo em Papelópolis". Vejamos:

"Ó burocratas!

Que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio...

É ainda sentimento

da vida que perdi sendo um

Dos vossos." (F., p.59)

Farewell, como não poderia deixar de ser, é um adeus revisitado de essência drummoniana. Seuestado-de-espírito são as inquietudes não com o sabor de último suspiro (embora confessadamente, o poeta, assim o concebera); não, as experiências poéticas encontradas nele estão presentes em tantas outras obras produzidas por Drummond.

Novalis diz-nos o seguinte: "O lugar da alma está no ponto onde o mundo interior e o mundo exterior se tocam. Onde eles se penetram — ele está em cada ponto de penetração" (CHAFES,1991,p.29).

Outras figurações confirmam isso: em "A loja Feminina"(F.,p.22,23) —com sutil ironia, o humano é apresentado em sua superficialidade, quando preocupado apenas com os artifícios que o cobrem; em "Aristocracia" (F.,p28)— é a nobreza que não importa; em "Arte em exposição" (F.,p29-37) — a arte pictórica é transformada pela lente poética; em "As identidades do poeta" (F.,p38-39) — a fascinante figura de Fernando Pessoa aparece abrindo a perspectiva para que o poeta Drummond se reconheça também dividido; em "Duração" (F.,p.55) — pelo amor, há de restar algo do que se foi; em "Cabaré Palácio" (F.,p.44-45) hásexo e poder nos bordéis de Belo Horizonte; em "Os vasos serenos" (F.,p.81) encontra-se o amor frio, sem emoção; em "Os 27 filmes de Greta Garbo" (F.,p.82-86) — na arte como na vida, tudo não passa de visões memorialísticas; em"Romancetes" (F.,p.95-96) encontra-se esboços deromances; em "Zona de Belo Horizonte, anos 20" (F.,p.104) ocorre pequena narrativa poética sobre prostitutas; em "O Rei Menino" (F.,p.78-79) vê-se uma abordagem religiosa sobre Jesus Cristo e, finalmente e em "A um ausente" (F.,p.41-42) focaliza o poetao suicídio de um amigo.

Quanto ao amor, ainda encontramos os poemas: "A grande dor das cousas" (F.,p18) saudade revivida de um grande amor; "Aparição amorosa" (F.,p.26-27) — a visita de um amor que se foi; "Canção final" (F.,p.46) — amor pequeno, quase nenhum; "Canção flautim" (F.,p.47-49) — amor cantado; "Diante de uma criança" (F.,p.52-53) — amor, o maior sentimento; "Fora de hora" (F.,,p.61) —o tempo está preso às horas, o amor está preso às horas; "Perturbação" (F.,p.87) — o estado puro da paixão; "Por que" (F.,p.88) —a busca incessante do conceito de amar.

À categoria corpo, como desvelamento da própria face, surgem ainda: "Fera" (F.,p.60) e "Coração-de-Carlos" (F.,p.50) — as faces do homem; "Dois sonhos" (F.,p.54) — a leveza do existir, ser o que se é; "Não passou" (F.,p.72) — tudo que vivemos e sentimos sobrevive; "Tanatos Tanajura" (F.,p.99-100) — Deus da morte; "Elegia a um tucano morto" (F.,p.56) — um canto fúnebre à vida.

E à temática terra (memória), encontramos: "Glaura revivida" (F.,p.62) — são as lembranças infantis;"Imagem, Terra, Memória(F.,p.63-67) — as fotografias trazem de volta vidas que se foram. As imagens impressas em papel guardam, velam vidas.

Ainda, no poema "Reinauguração", percebemos a alma do poeta tocando a luz da manhã. Ele estende seu olhar à vida como um menino: "como bons meninos reclamamos a graça dos presentes coloridos" (F.,p.92-93). Beatificado pela "magia do tempo", pela "colheita particular/ que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,/ no acreditar na vida e na doação de vivê-la" (F.,p.92-93),alma e mundo tocam-se com tolerância sagrada.

Nosso olhar sobre Farewell ambicionou traduzir o que fala-nos Bosi, no seu ensaio A interpretação da obra literária: " A produção dessa nova escritura é o a operação intervalar da consciência, que ambiciona traduzir o mesmo, servindo-se dialeticamente do outro: "O outro é o discurso próprio do hermeneuta".

Bosi, no mesmo ensaio, fala-nos que " o texto artístico é sempre gerado no interior de uma dialética de lembrança pura e memória social, de fantasia criadora e visão ideológica, de percepção singular das coisas e cadências estilísticas herdadas no trato com pessoas e livros". Assim, érecriação humana na sua face espiral.

CONCLUSÃO

Há no poema "Bordão" (F.,p.43) a sugestão da "palavra eterna". E o poeta começa: "Em torno de um bordão organiza-se o espírito". O espírito adota "a sua palavra" e por ela torna-se eterno. Mas é possível tornar-se eterno pela palavra? Massaud Moisés, em Literatura: mundo e forma diz-nos: "Quem tem a palavra, tem o mundo" (MOISÉS, 1982, p.125). No sentido de que a palavra do poeta, a "sua voz é a do Homem, na qual ecoa a de toda a Humanidade" (MOISÉS, 1982: 269).

Lembrando Baudelaire, perguntamos: qual a obsessão literal de Drummond? Qual o "bordão" organizado por seu espírito? É possível que exista "um gesto bio/gráfico" que seja independente do que o poeta apresenta na sua arte? Dominique Maingueneau diz que não: "não existe gesto bio/gráfico cujo significado seja independente das reivindicações estéticas que fundamentam uma obra" (MAINGUENEAU, 1992: 56). Podemos afirmar que o homem possui uma biografia que testemunha sua integração ao mundo, mas ao transformar as situações exteriores em arte, estamos nos referindo ao "étimo espiritual" conferido pela consciência, pela visão de mundo do autor. Uma abordagem romântica sabemos disso, mas que convictamente acreditamos.

A voz de Drummond é o seu estilo. E Dominique Maingueneaunos traz em sua obraO contexto da obra literáriaa concepção que Barthes tem sobre estilo (MAINGUENEAU, 1995: 13):

"é a voz decorativa de uma carne desconhecida e secreta, uma linguagem autárquica que só imerge suas raízes na mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofísica da palavra, em que se forma o primeiro par das palavras e das coisas."

O poeta encarnou o seu mundo e o seu tempo, numa mitologia em que os temas amor, corpo e terra estão entrelaçados à necessidade de fazer arte. A arte do poeta dos poemas "curtos", capazes de causar impacto e, como ele mesmo diz (NETO,1994: 205): "ficar a ressonância desse impacto na sensibilidade". O que nos faz voltar ao poema "Bordão: "Repetir é viver e criar ressonâncias"(F. p. 43).Verso que encerra as verdades peculiares à poética drummoniana, com seus temas ecoantes e verdades tão remotas quanto a própria história da humanidade, quando essa mesma ainda não se havia separado da natureza circundante.

Consciência sagrada da existência foi o que o poeta nos trouxe, pois sabemos que não há vida fora do amor, do corpo e da terra. Tudo isso envolvido pelos recursos líricos que enriquecem e abrem as portas para o que tanto almejamos — a felicidade estética.

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Autor: Emília Passos


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