Representar o povo: Missão ou Profissão?



Notícias sobre o mau uso do dinheiro público sempre foram constantes nos periódicos, no rádio e na televisão. Atualmente não é diferente. Denúncias sobre o uso indevido do dinheiro dos contribuintes pululam na imprensa cotidianamente. Não há mais espanto na amostragem dos benefícios particulares conseguidos por alguns. A exclamação se dá quando um anônimo age com honestidade e não se apodera daquilo que é de outrem.

Laurentino Gomes trouxe no ano de 2007 instigante livro sobre a vinda da corte portuguesa ao Brasil em 1808, junto com todo o aparelho de Estado do Império português. O texto que compõe a obra vai além da narrativa sobre o fato de um monarca europeu fazer o que nenhum outro fizera: vir para a colônia e nela instalar residência. Nunca outro monarca europeu sequer cruzara o oceano. A família real portuguesa não só veio para a colônia como a transformou na capital do Império, instalando no Rio de Janeiro toda a burocracia do Estado. Com este ato, será cristalizado no Brasil o modus operandi português na administração pública. De acordo com as idéias trazidas a tona na obra de Gomes, uma corte acostumada a sugar o Estado em benefício próprio, em claro apoderamento do público em benefício do privado impedirá um melhor arranjo no quadro social verificado por ocasião da chegada da nobre família e seus vassalos. Programas sociais tardarão muito a chegar. Corroborando a obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, o autor aponta que os colonizadores do Novo Mundo se dividiram em aventureiros e trabalhadores, cabendo ao Brasil larga parcela dos primeiros, nestas paragens será desenvolvido e cristalizado o chamado modo cordial no que tange lograr benefícios e facilidades. O decantado jeitinho brasileiro tem raízes seculares. Uma vez o Brasil convertido em sede do Império português, o modo cordial dentro da administração pública, será uma prática constante. O exemplo vindo de cima, da cúpula do poder espraiou para as demais alas sociais, e a massa popular que compõe o país aprendera de forma bastante clara como galgar sucesso a partir do mínimo esforço.

A República brasileira foi erigida há 120 anos sob os auspícios de uma minoria da sociedade de então que visava, com o novo regime de governo, a resolver as mazelas que o carcomido sistema monárquico lhe causara. Militares, fazendeiros do café, políticos republicanos e outras parcelas da sociedade, sobretudo de São Paulo e Rio de Janeiro, inventaram a República à brasileira, um sistema republicano, de proposta de participação popular nas decisões do Estado, porém o verificado na prática foi o avesso do teórico, nascendo uma nova fase oligárquica da história do Brasil.

A ideia de um governo de cidadãos, onde se pode buscar referência na França revolucionária da última década do século XVIII, ficou apenas no discurso, uma vez que no Brasil de um século após Robespierre, eram poucos os tidos como iluminados capazes de gerenciar o novo modelo de Estado que se apresentava.

Ao reler a obra de José Murilo de Carvalho, Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que não foi, criam-se análises a partir da tão festejada República democrática que tanto se fala e se orgulha. Fazendo uma breve passagem pelos vultosos movimentos políticos do Brasil é fácil perceber que o povo estivera alijado da maioria. Naquele Brasil de 1889, de acordo com o autor, a Proclamação da República mais parecia uma parada militar do que a instalação de um novo regime de governo. Afinal, o que era a República? Exceto uma minoria letrada que se incomodava com a questão política, as pessoas receberam o novo regime de governo sem saber ao certo as diferenças entre um Imperador e um Presidente, e para maior complicação para os militares, era fase de grande euforia em favor de D. Pedro II, já que um ano antes, 1888, este libertara de fato os escravos.

A historiadora Lilia Schwarcz traz na obra As Barbas do Imperador, destacada análise sobre o governo de D. Pedro II (momento onde o Imperador era tido como representação da ciência e sobre o qual repousava uma aura de pai de todos, clara política paternalista herdada da tradição monárquica portuguesa). Neste período se dera a redação da história do Brasil (país independente desde 1822), que teve no romantismo indianista, forte apelo de construção dos mitos de origem, mitos fundadores da nação. Os famosos romances da literatura brasileira atuaram no contexto histórico do então jovem país, de história curta, como ferramenta intelectual para o fomento da construção do espírito de nação, da construção do imaginário que provesse a mesma categoria de brasileiro o nascido em Porto Alegre e o nascido em Manaus. A preocupação era nivelar pelo discurso da nação o barão de café e o escravo que trabalhava a roça, afinal todos são filhos de um mesmo Estado nação, todos sob a batuta de um Imperador filósofo, espécie de pai de cada brasileiro. Iracema e O guarani, ambos de José de Alencar são representantes de relevo neste contexto.

O Império de D. Pedro II sucumbe em 1889, quando da proclamação da República. No que tange a mudança de regime de governo, desde a independência em 1822, posta em vias de fato por um europeu e a proclamação da República 67 anos mais tarde, atesta a falta de participação popular nos processos políticos que redesenham o quadro da sociedade.

Como sabido ao longo de todo o século 19 o contexto social sempre fora bastante tenso, porém, manifestações e revoltas sempre foram exemplarmente reprimidas pelo governo central, seja na forma monárquica seja no modelo de República. A partir deste último há o contundente exemplo da Guerra de Canudos. Marco Antônio Vila mostra em seu Canudos – O Povo da terra, como uma comunidade instalada no interior da Bahia se organiza em torno de um líder religioso para conseguir meios de subsistência num cenário de seca e penúria onde a fome graça solta. Canudos, uma sociedade comunal que não alcançou as benesses da República, lutou contra o exército brasileiro com um único objetivo: o de existir enquanto comunidade e de amparar seus filhos, porém para isso seria necessário se encaixar nos novos paradigmas, dentre os quais o pagamento de impostos além da submissão em cumprir ordens dos então coronéis locais, que perderam muito de sua força de trabalho com o êxodo dos sertanejos para dentro do arraial encabeçado por Antônio Conselheiro. O Belo Monte capitulou em 1897 como uma das maiores vitórias (ou vergonha) do nascente sistema republicano em seus primeiros anos na chamada república da espada. Contra as milícias dos sertanejos, foram empregados mais de 15 mil soldados, carabinas e canhões. Como relatado por Euclides da Cunha, contemporâneo e espectador da guerra, relatou no fechamento de seu Os Sertões "Seus últimos defensores foram um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados". Não houve tempo nem diplomacia suficientes para que os canudenses conseguissem representação pública

A imagem de um país unido, coeso, se consagra ao longo do século 20. Nome de singular significado no engendrar do nacionalismo brasileiro é Getúlio Vargas, advogado, político, líder de novo golpe de Estado praticado em 1930. A República brasileira foi permeada por momentos de força - leia-se força por movimentos militares - desde sua proclamação. Vargas está a frente de um movimento armado que encerra a fase dos presidentes civis ligados ao café paulista e ao gado mineiro, fase da história do país onde muito se usou da máquina pública em benefício de poucos. O privado fazendo uso do público foi prática cotidiana entre 1898 e 1930, porém isto é prática comum nos séculos que escreveram a história deste país. O chamado café-com-leite modelou um sistema que José Murilo de Carvalho chamou de Estadania, quando a proposta em voga deveria ser cidadania. Mais uma vez, a representação pública, a assistência do Estado às mazelas nacionais ficaram para depois. Getúlio Vargas foi o nome que mais tempo permaneceu na presidência da República. Durante quinze anos, seja na forma de governo provisório (1930/34), governo constitucional (1934/37) e ditadura estadonovista (1937/45) foi presidente, ditador e pai dos pobres, sabendo de forma única manobrar as massas populares de acordo com sua vontade política. Promoveu benefícios, representou o povo naquilo que era conveniente a seu governo, governo este linha dura, exatamente adequado ao esquema de Estado forte, tal e qual pensado na Itália e na Alemanha dos anos 1930.

O lampejo democrático assistido entre 1946 e 1964 está localizado em contexto bastante ácido das políticas internacionais. O pós-segunda guerra conhecido como guerra fria não deixou o Brasil de fora e o medo das elites nacionais da instalação de um regime popular aos moldes cubanos, que lograra vitória em 1959 e se convertera em braço soviético em 1962, causara temor nos líderes do grande capital brasileiro e nos representantes das várias multinacionais aqui instaladas. Um governo mais inclinado às categorias de base da sociedade, liderado por João Goulart, carecia de interregno. Simples questão de tempo. 1964 marca o início de mais uma fase ditatorial muito próximo daquilo que o país já havia conhecido com Getúlio Vargas, porém agora não havia ninguém a candidato a pai dos pobres. A representação popular sofrera reveses sucessivos num cenário de perseguição em massa a professores, advogados, estudantes, enfim, a qualquer pessoa que possuísse o mínimo de engajamento nas discussões mais agudas da sociedade. Mais uma vez houve necessidade de mascarar a pungente situação da República. 1969, em plena ditadura militar e também dentro do período de maior fechamento do sistema, Jorge Bem cantava sobre este "país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza", propalando discurso que anestesiava a crítica às torturas, à censura, enfim, à própria crítica. A mão-de-ferro do regime militar conseguiu mascarar muito do mal uso do dinheiro público. A coerção grassava na república da democracia militar. Os arranjos políticos de trinta anos atrás ecoam até hoje.

O Brasil de 2009 abarca mais de 180 milhões de habitantes, número bastante expressivo para uma população que já se habituou a ver e ouvir sobre as articulações da máquina pública para fins particulares de pessoas que foram eleitas, outras selecionadas para servir a nação. Afinado aos acordes da política neo-liberal, se vê nos noticiários a degradação de todo um sistema de saúde pública, urgente necessidade de reformas nas políticas educacionais, estradas carecendo de manutenção ao mesmo tempo que deputados e senadores tem passagens aéreas garantidas pelo suor popular, dentro outros benefícios que demais funcionários públicos não gozam. Ao que parece a grande preocupação dos já citados representantes do povo está em conseguir (ou aprovar) o aumento do próprio salário (oriundo do dinheiro público) e caminhos para a melhoria do próprio cargo. Há raras exceções a regra, mas a imagem de um parlamentar que tem bom emprego, trabalho fácil com excelente remuneração com muitos benefícios se sedimenta na cabeça de cada eleitor, daí a ânsia pela conquista de tal posição. O papel destes legisladores, parlamentares, enfim, é cuidar de seus eleitores ou de si próprios? Assim, existe de fato a tão festejada cidadania ou, como põe Carvalho, graça em nosso sistema uma clara Estadania? Vem a pergunta se representar o povo é missão ou profissão?

Depois de tantas inquietações fica o registro para que cada cidadão leia além das promessas, questione cada "boa" proposta, exija seu direito na Res Pública Democrática de que tanto se orgulha e de que tanto se almeja crescer, claro, para todos os setores, todas as camadas, enfim, que se construa o país para todos os brasileiros.

Roger dos Santos é formado em História, pós-graduado em Historia Social e Mestrando em Comunicação e Cultura.

Professor na FACENS – Faculdade de Engenharia de Sorocaba e Anhanguera Educacional Sorocaba.


Autor: Roger Santos


Artigos Relacionados


Entendendo Alguns Períodos

Desapropriação Da Propriedade

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

O Perfil Do Administrador Hospitalar Na Rede PÚblica Municipal De SaÚde De SÃo LuÍs - Ma

Insegurança Pública

PolÍtica ComunitÁria