O CARÁTER SELETIVO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO



O CARÁTER SELETIVO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

A ANÁLISE DA CRIMINALIZAÇÃO ESTIGMATIZANTE NA NOVA LEI DE DROGAS.

Ana Paula Urbano Teixeira[1]

RESUMO

O presente artigo vem tratar da seletividade do Direito Penal Brasileiro tomando como norte as mudanças feitas na Lei 11.343/2006 – Nova Lei de Drogas. Este estudo irá mostrar como a discriminação está enraizada no inconsciente do homem e aparece nas relações interpessoais. A dominação do homem pelo homem nas sociedades modernas em toda a sua complexidade faz transparecer estigmas discriminatórios inclusive no âmbito jurídico. A observância do tratamento diferenciado do usuário e do traficante de substâncias ilícitas, sua criminalização primária e secundária no sistema penal vigente, remetem a uma discriminação classista positivada.

Palavras Chave: Seletividade no Direito Penal – Discriminação de Classe – Usuário de Drogas - Traficante de Drogas – Nova Lei de Drogas

ABSTRACT

The present article talks about the selectivity of the Brazilian Penal Code considering the changes in the drug legislation. This study will demonstrate how discrimination has taken root in human minds. In modern societies, the empowering relations of submission of men to men will make notorious the discriminatory cultural stigmas, including in jurisdiction senses. The observance differential treatment to drugs users and dealers, the primary and secondary criminalization in the present penal system will make clear that we face a legislated class discrimination.

Keywords:Selectivity in Brazil's Criminal Legislation – Class Discrimination – Drug Addict – Drug Dealer – Brazilian Legislation on Drugs.

Sumário: 1. INTRODUÇÃO 2. DO CONVÍVIO SOCIAL E A DOMINAÇÃO 2.1 Da Legitimação do Dominador 3. DA CRIMINALIZAÇÃO 4. BASES PRINCIPIOLÓGICAS DO DIREITO E DO DIREITO PENAL 4.1 Dos Princípios do Direito Penal 4.2. Os Estigmas e o Controle Social 5. ANÁLISE DA SELETIVIDADE PENAL NA LEI 11.43/06 5.1 Sobre Drogas 5.2. Da Evolução da Legislação de Drogas no Brasil 5.3. A Influência da Classe Média nas Mudanças Legislativas 5.4. Considerações acerca da Criminalização Primária 5.4.1. Sobre a Lei 11.343/2006 5.4.2. Novatio Legis in Mellius – O Usuário 5.4.3. Novatio Legis in Pejus – O Traficante 5.5 Considerações acerca da Criminalização Secundária – A Definição Discricionária de Usuário e Traficante 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 7. REFERÊNCIAS

1. INTRODUÇÃO.

Tem-se como objetivo do presente estudo analisar a característica da seletividade do Direito Penal e sua influência na Nova Lei de Drogas – Lei 11.343/2006. A fim de compreender tal fenômeno recorrente no Direito Penal Brasileiro, é imprescindível que a abordagem da temática proposta seja interdisciplinar, analisando-se discussões das esferas Sociológicas, Filosóficas, do estudo da Criminologia e de princípios formuladores do Direito e do Direito Penal.

A abordagem proposta para a temática escolhida se dá pela observância da discriminação de classes implícita na legislação que se refere, bem como percebida embutida na subjetividade discricionária quando da determinação e aplicação efetiva da definição de usuário, dependente e traficante em réus de diferentes classes sociais. Para tanto tratar-se-á de discussões em relação ao contrato social e da possibilidade de convívio do homem em sociedade, e das relações de dominação e poder advindas naturalmente desta condição.

Será também analisado como tais grupos imprimem seus interesses na criminalização primária, levando em consideração a nova lei de drogas.Á luz desta análise comparativa das legislações atual e passadas acerca da temática em questão compreender-se-á como a seletividade está embutida no Direito Penal desde a motivação no elaborar das leis á sua aplicação ao caso concreto. A discriminação de classes está encravada na sociedade complexa, de modo que não há a separação do Direito, como ciência do dever-ser, e dos valores de determinado grupo dominante.

O foco deste trabalho não é a despenalização do crime de uso, tampouco opinar acerca das medidas repressivo-punitivas tomadas em relação ao crime de tráfico, mas sim demonstrar como a discriminação classista está implícita na nova lei de drogas tanto na elaboração das leis, como na criminalização secundária exercida por funcionários públicos. O estudo em questão é de grande relevância, pois, faz-se mister, a apresentação textual da hipocrisia enraizada na sociedade brasileira, culturalmente acostumada a tratar de maneira diferenciada determinadas camadas sociais.

2. O CONVÍVIO SOCIAL E A DOMINAÇÃO

O filósofo inglês Thomas Hobbes, defende em sua teoria do contrato social que em seu estado de natureza o homem vive em um constante estado de guerra onde impera a satisfação das necessidades individuais[2]. Neste contexto falta ao homem a consciência coletiva. Segundo a teoria Hobbeniana o egoísmo é o sentimento inato a todos, que dita a regra da sobrevivência. Por serem naturalmente egoístas todo homem seria uma ilha, mas a existência de outros seres humanos, nesta mesma condição, tal isolamento é impraticável. Mas, como ensina Tânia Quintaneiro, "a anarquia é dolorosa, os indivíduos sofrem com os conflitos e desordens e com a sensação de hostilidade geral e de desconfiança mutua" [3], por isso se faz necessária a ordem. O Leviatã de Hobbes, diferente do monstro bíblico que habita as águas, de proporções gigantescas e aterrorizantes[4], é a sociedade sem ordem que destruir-se-ia violentamente caso os homens se mantivessem em seu estado de natureza [5].

Pela necessidade da vida em conjunto, faz-se imprescindível o abandono do estado de natureza e a "elaboração de um pacto que obrigue a todos ( ... ) que seja capaz de reunir e organizar todo o poder" [6]. Partindo-se do pressuposto levantado por Hobbes, o Estado aparece com o dever-poder de regular o convívio humano, estabelecendo direitos e deveres aos indivíduos, e fixando-lhes limites de conduta, com o objetivo de apaziguar potenciais conflitos, como também de acalmar os ânimos naturalmente exaltados da raça humana, vez que os pressupostos de solidariedade, piedade ou respeito para com o outro não são conatos ao homem[7]. O Estado toma a forma de um "monstro" poderoso regulador da sociedade, uma vez que a existência de regras que estabeleçam os ditames das relações interpessoais é um fator determinante para a possível convivência em qualquer núcleo de agrupamento. Apenas havendo o mínimo de organização e respeito às regras comuns se possibilita a convivência entre seres humanos.

Em sua obra, o autor Carlos Ari Sundfeld [8], pontua que na pré-história, os homens da caverna conviviam em a relação de poder e subordinação pela lei do mais forte, pois aquele que detivesse a força física detinha, também, o poder de comando sobre os outros do grupo. Na estrutura das comunidades indígenas tal relação de dominação também pode ser observadas, onde os caciques e pajés eram os detentores do poder político, um pela liderança religiosa e o outro por se tratar do mantenedor da segurança, decidindo, inclusive, pela guerra ou paz com comunidades adjacentes. Por toda a história da humanidade fez-se necessário o poder político dominante e as regras estabelecidas para o razoável convívio em sociedade. Com o advento do agrupamento humano e da delimitação de direitos e deveres, cada individuo assume um papel na sociedade, desta forma criando relações de dominação e poder. A massa dominada acata as autoridades eleitas por respeito, medo, ou comodismo.

2.1 Da Legitimacão do Dominador

Como visto anteriormente na análise feita por Carlos Ari Sundfeld acerca do convívio social humano, nota-se que as relações de poder e submissão do homem ao homem sempre existiram. Se primitivamente tal relação se dava pela força, hoje são infinitos os meios de seleção dos dominantes. Levando em consideração que a dominação é uma realidade em todas as relações de convívio em grupo, desde os menores núcleos, como o familiar em que os pais exercem poder em relação aos filhos, até sistemas complexos como o da organização de um país, observa-se sua relevância social.

A dominação racional de um grupo definido sobre a massa populacional das sociedades complexas estabelece sua legitimidade "através da crença na legalidade das normas estatuídas e dos direitos de mando dos que exercem a autoridade." [9], significando que a massa dominada crê e respeita a posição de prestígio que ocupa a autoridade dominante, e, portanto as regras impressas na sociedade funcionam como reguladoras do convívio em sociedade.

Sobre este assunto discorre Tânia Quintaneiro em estudo sob a ótica de Durkheim acerca das relações de dominação em sociedade:

A luta pelo estabelecimento de uma forma de dominação legítima – isto é, de definições de conteúdos considerados válidos pelos participantes das relações sociais – marca a evolução de cada uma das esferas da vida social em particular e define o conteúdo das relações sociais no seu interior. As atitudes subjetivas de cada indivíduo passam a orientar-se pela crença numa ordem legítima, a qual acaba por corresponder ao interesse e vontade do dominante. Desse ponto de vista, o que mantém a coesão social, o que garante a permanência das relações sociais e a existência da própria sociedade é a própria dominação. Ela se manifesta sob diversas formas que vai desde a interpretação da história, de acordo com a visão do grupo dominante numa certa época, passam pela imposição de normas de etiqueta e de convivência social consideradas adequadas e chegam à organização de regras para a vida política. É importante ressaltar que a dominação não é um fenômeno da esfera política, mas um elemento essencial que percorre todas as instâncias da vida social.[10]

3. DA CRIMINALIZAÇÃO

Para Weber dentro de uma mesma sociedade existem classes distintas, podendo ser seletiva por sangue, por honra, ou por interesses societários, e que estes que pertencem a tal estratificação "superior" na sociedade, gozam, naturalmente, de privilégios exclusivos ao grupo, sendo comuns nestes casos "as práticas de exclusão e afastamento dos não-membros, as quais reforçam os sentimentos de pertencimento e de distinção"[11]. Decerto que tal caráter discriminatório das classes mais abastadas e detentivas do poder de criminalização primária não se vê explicitamente, mas estão intrínsecos no sistema penal brasileiro. Pode-se conceituar a criminalização primária como "o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas"[12].

Aqueles que detêm o poder se encontram nas classes dominantes, e ocupam cargos privilegiados na própria organização do Estado. Estes se utilizam de seu status social para prevalecerem as suas vontades como se fossem uníssonas da coletividade. Zaffaroni acredita que "toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com esta estrutura, se 'controla' socialmente a conduta dos homens"[13]. A ampliação geográfica e populacional das sociedades modernas aumenta ainda mais a distância de determinados grupos daqueles que tomam as decisões, facilitando o controle destes sobre aqueles.

Fazendo menção ao egoísmo como sentimento arraigado à composição humana da sociedade e motivação inconsciente destes ao contrato social Hobbeniano previamente analisado, vê-se que hoje, mesmo se tendo o Estado como o regulador do convívio social, tal premissa se comprova verdadeira. Isto, pois a defesa de interesses próprios na política e economia por grupos dominadores é cotidiana, muitas vezes olvidando que as decisões devem ser tomadas em prol da coletividade.

Faz-se mister observar um questionamento levantado por Durkheim em estudo referente aos grupos dominantes: qual o motivo do privilégio de determinados corpos sociais?

Para ele [Durkheim] a sociedade é um organismo, as classes sociais dentro da sociedade são órgãos, cada uma delas é uma parte desse organismo vivo que é a sociedade. Diz Durkheim, da mesma maneira que em um corpo vivo certos órgãos recebem mais sangue, mais nutrição ( ... ) certas camadas que recebem o papel de cérebros da sociedade são privilegiadas, portanto, isso é um fenômeno natural, necessário. A desigualdade social se explica naturalmente. [14]

Ocorre que, em verdade o direito penal nada mais é do que o reflexo de interesses político-econômicos das classes dominantes, aplicando de forma dura e recorrente contra os dominados os dispositivos tipificados, enquanto se flexibiliza a sua aplicação contra aqueles que as elaboram, utilizando-se das lacunas na lei, para dar tratamento diferenciado àqueles que fazem parte desta elite dominadora. De acordo com Lênio Luiz Streck, pode-se entender o sistema jurídico brasileiro como cerrado, uma vez que "reproduz o princípio do non liquet"[15] em suas codificações, mas o autor ainda faz reflexão oportuna acerca das lacunas no Direito, afirmando que

uma lei considerada como justa pelo intérprete ou aplicador aparece sempre como um texto normativo claro. Por outro lado, um dispositivo de uma lei, entendido como injusto, aparece sempre aos olhos do intérprete ou do aplicador como obscuro e, às vezes, é enquadrada como um caso de ausência legislativa, enfim, uma lacuna[16]

Isto confere a possibilidade àquele que tem o conhecimento das leis, e de sua infinidade de interpretações que se utilize da hermenêutica como melhor lhe convier. Ainda, concede ao juiz a discricionariedade de julgar conforme o que lhe for apresentado, agregando, mais uma vez, valor a determinada conduta, chamada também de criminalização secundária. Zaffaroni conceitua a criminalização secundária como "a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas" [17] em consonância com o estabelecido nos dispositivos legais, realizado por agentes da Administração Pública, tais quais advogados, juizes, policiais, agentes penitenciários, etc.

Pode-se afirmar que "a lei penal seria, conforme tradicional alegoria, comparável a uma teia de aranha muito fina em suas malhas, aprisionando pequenos insetos, mas facilmente sendo rompida por animais de grande porte" [18].

4. BASES PRINCIPIOLÓGICAS DO DIREITO E DO DIREITO PENAL.

Com o crescimento físico e demográfico as sociedades se tornaram cada vez maiores e mais complexas, e as relações interpessoais de poder e dominação não mais estava adstrita a pequenos agrupamentos, onde os valores que especificar as diretrizes do convívio pacífico eram comuns a todos e o monitoramento comportamental era pessoalmente realizado pelo dominante. A complexidade das sociedades modernas fez evoluir a forma de determinação valorativa de condutas adequadas, bem como das conseqüências de seu descumprimento.

Fazendo referência ao pensamento de Hobbes, uma vez que o homem é egoísta por natureza, a falta de regras e fiscalização sobre os limites impostos, os faria retornar ao status quo, ou seja, ao caos primitivo. O Direito surge como a forma de unificar uma sociedade complexa, e tem "a função precípua de integração, de realização do controle social nestas diferenciadas e complexas sociedades modernas, derivadas da divisão do trabalho social"[19]. Na intenção de garantir a unicidade dos grandes agrupamentos sociais fez-se imprescindível a construção das bases principiológicas de regulação das relações para a possibilidade de manutenção pacifica do convívio social. Os princípios são "elementos básicos e indispensáveis, norteadores na elaboração e aplicação do direito" [20], e é fundamental que todas as pessoas que convivem em dada sociedade se comportem de acordo com estes princípios basilares. No Brasil a base principiológica estruturante da sociedade é positivada, e os valores morais são encontrados, mesmo que implicitamente na legislação.

Os princípios constitucionais exercem função de limitar a liberdade individual como também a atuação estatal, que desregrada poderia vir a invadir por demasiado a esfera individual[21], muito além das limitações do contrato social. Eles demarcam a unidade da sociedade em sua esfera jurídica e delimita pressupostos fundamentais para a elaboração e aplicação adequada da legislação, possibilitando uma consonância das demais normas, e sua integração entre si através da hermenêutica. Os princípios representam os anseios do povo.

4.1 Dos princípios no Direito Penal

O Direito Penal, como ramificação do Direito instituído submete-se aos princípios constitucionais basilares, tendo também, no bojo de suas atribuições, princípios próprios. Em artigo intitulado Princípios do Direito Penal, Maurilúcio Alves de Souza[22] ressalta alguns destes, como o Princípio da Legalidade ou da Reserva Legal que se trata de um limitador do poder punitivo do Estado, vez que só se pode punir a conduta que estiver previamente tipificada como desviante, sendo vedada a aplicação de analogias ou valores morais como justificação para sentenças condenatórias. Ainda no sentido de limitar poder punitivo e incriminador do Estado cita-se o Princípio da Intervenção Mínima. O Direito Penal é tido como a ultima ratio, e por ele só devem ser abraçadas aquelas condutas que inferirem perigo a bens jurídicos de maior relevância.

Acerca dos princípios penais Alessandro Baratta faz considerações em Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal[23], principalmente sobre elaboração das leis no âmbito jurídico-criminal. Na visão de Baratta, o princípio da culpabilidade elege o delito como aquela conduta não aprovada pela sociedade, embebida dos valores culturais que integram a sociedade de forma unânime, cabendo ao legislador sua tipificação criminal, possibilitando a punição do agente desviado. É o princípio que norteia a aplicação da legislação criminal, na esfera judicial, de modo individualizado ao fato, atribuindo responsabilidades ao autor como conseqüência a uma conduta antijurídica e punível[24].

Ainda em se tratando do princípio em destaque, é importante apresentar uma divergência na doutrina acerca de onde recai a culpabilidade que legitimam o poder punitivo do Direito Penal. Ao discorrer sobre o direito penal do autor, Zaffaroni ensina que muitos consideram o delito como "signo ou sintoma de uma inferioridade moral, biológica ou psicológica"[25] do autor, e que tal condição da pessoa explica a pena. Já Alessandro Baratta faz alusão ao princípio do bem e do mal que tem o delito como um dano à sociedade. Afirma que a estigmatização do delinqüente, aquele que pratica a conduta desviante, ocorre, pois sua conduta não é adequada para o convívio social, e é tido como uma parte podre da sociedade por entender que "o desvio criminal, é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem" [26], fazendo uma nítida referência ao direito penal do ato.

O sistema brasileiro adota o posicionamento de que o que valida a punição de determinada conduta é o fato praticado pelo autor que constitui uma lesão a determinado bem jurídico previsto em lei, mas a criminalização secundária acaba por se utilizar da condição do autor para legitimar penas. Neste contexto Baratta alega que "O sistema penal se fundamenta, pois, na concepção da Escola Positiva, não tanto sobre o delito e sobre a classificação das ações delituosas, consideradas abstratamente e independente da personalidade do delinqüente, quanto sobre o autor do delito, e sobre a classificação tipológica dos autores" [27], uma vez que ao final, é esta criminalização, a secundária, que se vê na prática.

Dando prosseguimento à análise da base principiológica do Direito Penal, Baratta critica o princípio da igualdade. Previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988[28], dispõe que todos devem ser tratados de forma eqüitativa pela lei. Infelizmente a aplicação deste princípio é utópica uma vez que "o sistema promove uma seleção desigual de pessoas de acordo, sobretudo, com uma imagem estereotipada da criminalidade e do criminoso em que a variável status social do acusado tem um peso decisivo" [29]. É comum e recorrente a demonização do delito e do delinqüente, vistos, então, como à margem do aceitável para o convívio social[30].

 

 

4.2 Os Estigmas e o Controle Social

O Direito Penal é a ciência do dever-ser, e se caracteriza por agir como um meio de controle social, a manter as desigualdades para ter o domínio das grandes massas. Alessandro Baratta, afirma que "a criminalidade não existe na natureza, mas é uma realidade construída socialmente através de processos de definição e de interação" [31] onde diante de uma situação problema a sociedade irá criar normas de controle social, pelo medo (prevenção) ou pela própria repressão punitiva de determinada conduta. São os processos de cunho político, psicológico, social e cultural que vão determinar qual comportamento será tipificado como criminoso.

Em um país como o Brasil, elevado á condição de um Estado Democrático de Direito[32], viu-se resguardar uma forma de dominação excludente desde os primórdios da nação. O pensamento escravista está enraizado nos eternos senhores de engenho, hoje, não menos poderosos, reconhecidos nas figuras de empresários, bancários, acionistas, políticos, herdeiros, enfim, na elite do país. A mentalidade instituída de que o pobre é incapaz e ignorante é herança da exploração capitalista desenfreada dos recursos naturais e humanos, por poucos, registrados escritos nos livros de História do Brasil[33].

Adentrando na seara do Direito Penal Brasileiro e ao sistema vigente, percebe-se a seletividade manifesta. Tal situação gera o que se chama de estigmatização seletiva. As classes dominadas (leia-se aqueles que se encontram longe dos centros de decisão e poder, normalmente as classes de baixa renda) que vivem à margem das oportunidades são vistas como o outro de modo que facilita a estigmatização de estereótipos de criminosos. Serão estas pessoas as futuramente enquadradas nos tipos puníveis penalmente. Como ensina o professor E. Raúl Zaffaroni, "A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho" [34]. Retirar-lhe a condição de ser humano (condição de semelhança ao dominante) e colocar-lhe à margem da sociedade, torna tarefa fácil e moralmente admissível, criar para eles, enquadrá-los em tipos penais específicos.

Há o estereótipo do criminoso, uma reprodução inconsciente dos estigmas estudados por Lombroso[35]. Neste sentido vale destacar o que ensina Zaffaroni, "o estereótipo acaba sendo o principal critério da criminalização secundária; daí a existência de certas uniformidades da população penitenciária"[36]. Tem-se na imagem estigmatizada do criminoso o pobre, tratando a pobreza, inclusive, como fator de risco à delinqüência.

Na grande maioria dos casos, os que são chamados de 'delinqüentes' pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas de pobres. Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como 'delinqüentes' e não, como se pretende, um mero processo de seleção das condutas ou ações qualificadas como tais. [37]

A equação pobreza = criminalidade é errônea e de natureza discriminatória, devendo ser desmistificada. Em um estudo realizado no ano de 2004 na comunidade conhecida como Cidade de Deus, localizada em um morro do Rio de Janeiro, constatou-se que menos de 1% da população residente no meio, composta em sua grande maioria por pessoas de baixa renda, optaram pela carreira criminosa.[38]. A realidade carcerária é reflexo direto desta seletividade. Apesar do princípio constitucional do tratamento eqüitativo dos homens, ao visitar um presídio é notório que características físicas e sociais se repetem cela a cela. Uma mudança, por mais ínfima que seja, neste cenário é usada como prova da funcionalidade igualitária do sistema penal. Criticando tal realidade, cita-se declaração de Nilo Batista,

Um branco rico preso constitui elemento precioso para demonstrar que o sistema penal é igualitário, isonômico e não seletivo. Pouco importa que ele seja o único branco rico preso naquele momento, a espiga de milho no cafezal da penitenciária. Só ele está aparecendo no Jornal Nacional, é a prova de que a justiça penal é igual para todos.[39]

A seletividade vem do pensamento capitalista de consumo, numa máxima inventiva de que aquele que tem recursos não delinqüe, enquanto se põe em dúvida a integridade daquele que não goza da mesma condição. Nilo Batista prossegue afirmando que ainda se teoriza preconceituosa e inconscientemente que este teria a propensão à delinqüência como meio de subir na estratificação social, a fim de obter privilégios classistas garantidas às elites dominantes. É um pensamento infeliz que leva a uma estigmatização da população de baixa renda. Predominância do direito penal do autor sobre o direito penal do delito[40], que é o que o sistema brasileiro se propõe. Pertinente trazer, mais uma vez, comentário do referido autor afirma que defende que é "... a policia [que] distribui seletivamente poder punitivo, porque é ela que no cotidiano realiza a criminalização primária [secundária]"[41].

5. ANÁLISE DA SELETIVIDADE PENAL NA Lei 11.343/2006

Tomando como objeto de análise a nova lei penal nº 11.343/2006 é possível observar a seletividade classista implícito no direito penal. É coerente tecer algumas considerações sobre a matéria Drogas e a legislação brasileira respectiva antes de prosseguir à análise proposta.

5.1 Sobre Drogas.

É sabido do uso de drogas para fins religiosos ou com o intuito recreativo desde os primórdios da humanidade. Tem-se registros da utilização do ópio e da Cannabis datados do ano 3000 a.C na Mesopotâmia[42]. No Oriente, por exemplo, a tradição do fumo destas substâncias remonta à Antiguidade. O Rastafarianismo, seita jamaicana que busca a natureza e abomina os modismos (Babilônia)[43], faz o uso da cannabis por considerá-la sagrada. Pode-se citar também o uso LSD e da própria Cannabis nos anos do movimento hippie. A intenção aí não era o culto sagrado, mas o prazer proporcionado pela droga.

Em nenhum dos casos citados a droga é, ou foi, legalizada. O movimento hippie ia contra o modelo posto da época, e na Jamaica, maior concentração da seita Rastafari, a Cannabis não é, no máximo tolerada. Com a evolução das sociedades houve a criminalização de condutas tidas como religiosas ou lúdicas, e em torno desta criminalização existem incontáveis questões culturais, políticas e econômicas e, principalmente, muito preconceito[44].

O presente trabalho não objetiva adentrar aos motivos de criminalização e repúdio ao uso de drogas, mas vale ressaltar que são questionáveis os critérios de determinação da substância ilícita. Conceitua-se droga como a substância que pode causar dependência ao usuário, mas como bem foi observado por Nilo Batista, este critério vai além das toxinas inerentes à droga em si, pois "Se for uma droga dos grandes laboratórios, a vontade – o garoto fuma uma maconha na sexta à noite, a mãe dele enche a mão de Lexotan todo dia".[45]

5.2 Da Evolução da Legislação de Drogas no Brasil

Desde as Ordenações Filipinas a legislação brasileira trata da matéria de drogas. Muitos foram os termos utilizados para nomear tais substâncias, tais como entorpecentes, tóxicos, substâncias venenosas, mas sempre se tratou de matéria regulada na esfera criminal, culminando em sua ilicitude.

A Lei 6368/76[46] – Lei de Tóxicos, trazia aspectos materiais e processuais referentes a questões de drogas, e vigorou por 30 anos até a promulgação da Lei 11.343/2006 – Lei de Drogas. Na legislação antiga se fazia a associação do usuário ao dependente, imprimindo-o a pena de até dois anos, e estipulando a pena para o traficante de 3 a 15 anos de prisão. A lei de crimes hediondos – Lei 8072/90 – influenciou o procedimento processual do crime de drogas. Houve um endurecimento da matéria penal com o advento dessa lei. Aplicou-se aos crimes tipificados na lei 6368/76 a impossibilidade de responder o processo em liberdade, bem como a admissão da apelação de acusado preso. Posteriormente, a Lei 9712/98 – Lei da Penas Alternativas – abrandou tal situação, admitindo a substituição de penas restritivas de liberdade por aquelas restritivas de direitos no caso em que o crime em questão não fosse cometido com violência ou grave ameaça, podendo aplicar-se aos crimes de uso.

Em 2002 houve a intenção de substituição da lei de tóxicos pela Lei 10.409/2002, mas tal tentativa foi frustrada pois nota-se que por conta dos incontáveis vetos a seus artigos, impossibilitou-se sua aplicação material e processual e a efetiva revogação da Lei de 76. Finalmente vêm-se revogadas as duas leis anteriores pela Nova Lei de Drogas que levantou muitos questionamentos no âmbito jurídico.

Em comparação direta com a revogada Lei 6368/76, observa-se que a Nova Lei de Drogas segue a mesma linha repressiva no que tange ao tráfico, inclusive majorando penas em determinados casos. Houve um abrandamento significativo em relação ao tratamento dado ao usuário e o dependente, abarcando inclusive condutas antes consideradas como tipo classificado como tráfico. A nova legislação sobre drogas segue duas linhas distintas, "a proibicionista [que] dirige-se contra a produção não autorizada e o trafico ilícito de drogas, e a prevencionista [que] é aplicada para o usuário e para o dependente" [47].

A primeira mudança perceptível se encontra no uso do vocábulo drogas ao invés de substâncias entorpecentes utilizadas na lei anterior. Tem-se como conceito legal de drogas as "substâncias ou produtos capazes de causar dependência, e que estejam especificadas em lei, ou relacionados em listas atualizadas, de forma periódica, pelo Poder Executivo da União." [48]. É na Portaria SVS/MS nº 344 de maio de 1998[49] (e em suas posteriores atualizações, tal qual a Portaria SVS/MS nº 6, de 29 de janeiro de 1999) que se encontra o rol taxativo das substâncias ilícitas, definições pertinentes acerca de termos técnicos utilizados, bem como os meios de se obter autorização para cultivo, prescrição e/ou consumo de tais substâncias.

5.3 A Influência da Classe Média nas Mudanças Legislativas.

Em discurso sobre o empreendimento neoliberal do direito, Zaffaroni afirma que o Direito Penal detém-se "sobre as mutações na estrutura e funcionamento do sistema penal"[50] e que tal condição passa pela criminalização. A relação pessoal direta com a classe dominante, bem como a relação econômico-consumista que se tem com a sociedade são fatores relevantes para a elaboração das condutas relativas à criminalização primária. Zaffaroni afirma ainda ser o sistema penal

vertido para o controle dos contingentes humanos por ele mesmo marginalizados, opera mediante uma dualidade discursiva que distingue os delitos dos consumidores ativos (aos quais correspondem medidas despenalizadoras em sentido amplo) dos delitos grosseiros dos consumidores falhos (aos quais corresponde uma privação de liberdade neutralizadora).[51]

Neste sentido vale observar que até alguns anos atrás não se via na mídia a exposição dos crimes de colarinho branco[52], tampouco o envolvimento, mesmo que indireto, de pessoas pertencentes ao topo da estratificação social com condutas desviantes. Não que não existissem índices de criminalidade na elite, mas por que eram dados mantidos em segredo, defendendo o interesse dos mesmo. A mudança de atitude do jovem de classe média, em grande escala, que passou a ter relações com drogas, conduta esta criminosa, não conseguiu ser abafada. O envolvimento da classe média com o uso das drogas foi um propulsor para dar vazão ao que se chama de avanço legislativo em matéria de drogas.

A mudança de postura dos mais abastados, assumindo um comportamento de conduta estigmatizada levou para perto dos centros de poder uma problemática a muito conhecida pelas classes dominadas, gerando uma aproximação dos estereótipos criminalizados às classes dominantes. A partir do momento que os filhos de políticos, magistrados e grandes empresários começaram a passar pelo "constrangimento" de atuar como parte ré em um processo criminal, resolveu-se adaptar a legislação. Pessoas conhecidas nacionalmente passaram a aparecer não nas novelas ou programas de auditório, mas nos noticiários, seguidos dos termos pejorativos como viciado e drogado.

Mais uma vez policiais apreendem maconha com algum ator da Rede Globo. É o segundo artista pego com drogas em menos de um mês. A polícia apreendeu uma trouxinha de maconha no carro de Caco Ciocler, que interpreta o personagem Renato na novela Páginas da Vida. A questão — aparentemente não tão relevante — que enfatizo é que ele foi preso no Rio. Foi lá também que, pela segunda vez, o ator Charles Paraventi, que interpreta o professor Afrânio, da novela adolescente Malhação, foi detido, em dezembro, portando entorpecentes.[53]

Tal situação gerou tamanho desconforto que sob o argumento de atualizar a legislação para adequar às tendências européias de redução de danos, o Brasil, sempre dominado pelos ditames norte americanos, acaba por despenalizar a conduta desviante. Em matéria publicada no jornal O Globo, o jornalista Rodrigo Viga Gaier mostrou uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas que afirma que 62% dos usuários de drogas no Brasil são das classes de maior poder aquisitivo[54].

O cometimento recorrente de condutas delinqüentes tipificados nas leis drogas, "manchava" a imagem não só do agente e das pessoas de sua relação próxima, mas principalmente levava ao descrédito da sociedade, apontando a hipocrisia uma vez que, pela lei anterior, estes se argüiam o princípio da bagatela e tinham seus argumentos acatados. A despenalização do crime de uso foi uma forma de proteger a classe dominadora dos questionamentos acerca da discriminação classista, retirando o caráter estigmatizado de crime desta conduta e, dessa forma, distanciando novamente, o outro.

5.4 Considerações acerca da Criminalização Primária

5.4.1 Sobre a Lei 11.343/2006

A Lei em análise tem uma preocupação grande com as medidas e atividades preventivas do uso de drogas, bem como da reinserção social do usuário e do dependente de tais substâncias, principalmente pela institucionalização do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD).Trata-se da absorção, mesmo que em parte, do modelo adotado na Europa, chamado de redução de danos. Tal sistema visa que descriminalize a conduta do uso de drogas de forma gradual, partindo do pressuposto que uma política de controle baseada na educação do cidadão comum (prevenção) e reabilitação do usuário dependente é mais efetivo do que a política de repressão total e tolerância zero – "Say No to Drugs" – utilizada nos Estados Unidos, modelo este que objetiva a redução de oferta. O sistema de redução de danos trata o uso de drogas como um problema de saúde pública e não de segurança.

5.4.2 Novatio Legis in Mellius – O Usuário

A nova lei conceitua o usuário em seu artigo 28, caput como "Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Apesar de tipificar mais duas condutas que não constavam na lei revogada, o artigo 28 da Nova Lei de Drogas é vista com bons olhos, ao passo que se trata de uma novatio legis in mellius. Isso acontece porque a nova lei parte da absoluta impossibilidade da pena de prisão nos casos em que se classifique o crime de uso, aplicando as penas previstas em seus incisos I, II e III e §6º [55], pretendendo, inclusive, que o assunto seja diretamente encaminhado ao Ministério Público, sequer passando pela polícia[56]. Sob esta ótica, nota-se que são duas condutas tipificadas, a mais, que tem de ser enquadradas no artigo 28, impossibilitando a classificação pelo artigo 33 que autorizaria a pena de prisão. A classificação como usuário daquele que, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica no previsto no §1º do referido artigo foi uma medida muito bem aceita, pois na legislação anterior, por não tipificar tal conduta, o sujeito que porventura tivesse em casa uma planta de maconha poderia ser judicialmente visto como traficante, recaindo sobre ele uma pena maior.

Sabendo-se que não há a penalização da conduta e que se lavra um termo circunstanciado ao invés de uma denúncia, pela nova legislação o usuário não perde a primariedade, não incidindo a reincidência penal sobre ele. Uma vez que não comete crime ou sequer contravenção, pode-se afirmar que a conduta praticada se trata de uma infração sui generis, pois

se as penas cominadas para a posse de droga para consumo pessoal são exclusivamente alternativas, não há o que se falar em 'crime' ou em 'contravenção penal' (por força do art 1º da Lei de Introdução ao Código Penal) (...) Essa infração sui generis não pertence ao (clássico) Direito penal, fundado na pena de prisão. Constitui, isso sim, exemplo de direito judicial sancionador. [57]

Como as drogas eram consideradas questão de segurança ao invés de saúde pública existia uma verdadeira "dificuldade de trânsito para os dependentes até os meios de tratamento adequado, quando o uso era criminalizado. A ameaça de pena que recaía sobre eles criava um distanciamento, gerado por desconfiança de dependentes em agentes de saúde[58]. Grande avanço se deu com a despenalização da conduta, objetivando alcançar melhores resultados sociais pela aplicação do modelo europeu com enfoque na redução de danos, mas pouco mudou na concepção de uso por vontade.

Decerto o usuário deve, por vezes, ser tratado como vítima, nos casos de dependência da droga por exemplo, mas, deve-se também ser visto como alguém que, conscientemente utiliza determinada substância em um dado momento sem afetar bens jurídicos de terceiros[59]. Estudos demonstram que a maioria das pessoas que experimentam ou que fazem uso de drogas, lícitas ou não, não se tornam viciados. "As estatísticas mostram que menos de 10% deles [usuários ocasionais] vão desenvolver o alcoolismo ou a dependência de Cannabis"[60]. A administração, inclusive recreativa, ocasional de substâncias consideradas nocivas pela Anvisa, logo, ilícitas, não apresentam conseqüências danosas para a sociedade ou maiores riscos á saúde. Posicionando-se em concordância com o exposto se colocam os autores de Nova Lei de Drogas Comentada afirmando que

A nova posição legislativa sobre o usuário caracteriza-se pelo seguinte: a) não associação do uso de drogas com a "demonização política e social" – não deve o usuário ser visto como demônio; b) a sobrevivência da sociedade não depende só da política repressiva; c) a política do uso controlado, como álcool, pode dar bom resultado; d) o uso de droga não é assunto prioritário da policia (sim, de saúde publica)[61].

5.4.3 Novatio Legis in Pejus – O Traficante

Se por um lado a política repressiva foi abandonada no que tange ao usuário, nos casos que envolvem a produção não autorizada e o trafico ilícito de drogas, estas foram mantidas e incrementadas[62]. Os 18 (dezoito) núcleos verbais de condutas puníveis característicos do tráfico que vigoravam na Lei de 76 foram reeditados na nova legislação.

O artigo 44 da lei em mote prevê a impossibilidade de conversão em penas restritivas de direito nos tipos dispostos nos artigos 33, caput e §1º, 34 a 37. Não se trata de uma ampliação do rol taxativo dos crimes hediondos, mas ao vedar a conversão em pena alternativa, proibir a fiança, o sursis, a graça, a anistia, o indulto e a liberdade provisória, o legislador acaba por ir de encontro à tendência jurisprudencial que estava admitindo tanto a liberdade provisória como a conversão de pena[63]. Ainda que omissa fosse a legislação, o aumento da pena de 04 anos (na legislação de 76) para o mínimo de 05 anos, na nova, impossibilita materialmente a conversão desta pena de reclusão em privativa de direitos que tem o teto de 4 anos estipulado na Lei das Penas Alternativas, retirando-o da alçada do JECRIM[64].

Em análise do artigo 35 do novo texto observa-se o tratamento mais severo do tipo associação para o tráfico, elevando a pena privativa de liberdade máxima de 06 para 10 anos. Houve também a criação do tipo previsto no artigo 36, da conduta do informante, que não era prevista na lei anterior. Nota-se que nos tipos relativos à conduta do traficante ou de financiador do tráfico, foram incluídas as penas de condenação em dias-multa a condutas que antes não a previa, ou aumentou consideravelmente naquelas que já constavam no tipo penal. Em lição de Nilo Batista observa-se a política repressivo-punitiva mais severa da nova lei em comparação com a revogada,

Por onde a questão das drogas sangra literalmente é no tráfico. Então, você tem isso de descriminalizar o usuário mas manter a criminalizacao do traficante, que virou uma categoria fastasmática, o traficante é o demônio, ele não tem casa, não tem mãe. ( ... ) A descriminalização usuário poderia ser o começo de uma legislação geral, mas, como eles estão legislando para o Posto Nove, fica uma coisa perversa, porque quem já está descriminalizado será descriminalizado e onde está sangrando, que é na periferia, aumenta-se a hemorragia.[65]

5.5 Considerações acerca da Criminalização Secundária - A definição discricionária do usuário e do traficante.

A distinção entre usuário e traficante continua tendo por base o caso concreto. Devem ser levadas em conta a natureza da droga, sua quantidade, local e condições da prisão, modo de vida do agente, seus antecedentes etc. As drogas ilícitas são classificadas de leves a pesadas. Sustenta-se que tal distinção entre substâncias se dá pela sua maior ou menor incidência de dependência, nocividade à saúde do usuário, e periculosidade potencial para a sociedade. Existe também agregado o valor discriminatório classista. Substâncias como o crack são considerados drogas "populares", daquelas que tem como consumidores a classe de baixa renda, constatado inclusive valor pecuniária atribuído à droga; já o ecstasy, parente próximo das anfetaminas, é considerada "a droga da classe média"[66]

De acordo com a natureza e quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que ocorreu a apreensão, as circunstâncias sociais e pessoais do agente, bem como a conduta e aos antecedentes do mesmo, o juiz determinará se a droga destinava-se a consumo pessoal ou ao tráfico. A discricionariedade na definição de quem se enquadra em questão de saúde publica (usuário) e quem é um perigo para a sociedade (traficante) tem cunho discriminatório classista implícito. A neutralidade axiológica é um conceito utópico no Direito que se encontra no campo do dever-ser, e a autoridade pública um sujeito social, embebido de preconceitos pela própria vivência individual[67]. Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que a discricionariedade resulta de uma lacuna deixada no Direito e se trata de um

campo de liberdade em cujo o interior cabe interferência de uma apreciação subjetiva sua [do juiz] quanto à maneira de proceder nos casos concretos, assistindo-lhe, então, sobre eles prover na conformidade de uma intelecção, cujo acerto seja irredutível à objetividade e ou segundo critérios de conveniência e oportunidade[68].

Pode-se confirmar o a seletividade na criminalização secundária e o caráter discriminatório classista-cultural da discricionariedade comparando o texto legal com a aplicação in loco. Os artigos 28 e 33 da nova lei de drogas têm parágrafos de conteúdo textual muito parecido. No artigo 28 §1º da referida lei, equipara as condutas de semear, cultivar ou colher, para consumo próprio, plantas destinadas à preparação de substância que possa causar dependência, a uma conduta de usuário, levando em consideração que seja possível a produção de pequena quantidade do produto. Já o art. 33, II I, se utiliza dos mesmos núcleos verbais tipificando a conduta como aquela de um traficante. A priori conclui-se que enquadrar-se-á a conduta dependendo da capacidade de produção de substância ilícita possível de acordo com a quantidade apreendida. Esta seria a aplicação obvia da letra da lei, uma vez que no artigo 28 utiliza-se da expressão pequena quantidade como parte do tipo em questão. Ocorre que pequena quantidade é um tipo subjetivo, ficando a critério da autoridade sua delimitação objetiva. O mesmo ocorre com os núcleos verbais adquirir, ter em depósito, transportar, trazer consigo ou guardar, utilizados para tipificar crimes diferentes nos artigos 28 e 33. Cabe, mais uma vez, à autoridade fazer valer de sua discricionariedade para determinar aonde se enquadra a conduta praticada pelo sujeito.

Levando em consideração o capitalismo sacramentado na legislação brasileira, bem como em toda a população de forma cultural e inconsciente, em uma situação em que dois rapazes tenham consigo uma pequena quantidade de droga, pronta para o consumo. Neste contexto, relevante é a reflexão e posicionamento crítico de Vera Malaguti Batista,

O menino branco de classe média, que tenha 400 gramas de maconha, vão dizer que comprou porque vai fumar a longo prazo. Isso é um dado concreto! O outro está com uma pequena quantidade, mas, como é pobre, mora em favela e está com quatro papelotes, não vai comprar, vai vender. Ele é ontologicamente traficante. [69]

Não se sabe quantos são os usuários habituais e viciados que estão cumprindo pena como se traficantes fossem. Esta estatística não existe, não é interessante para o Estado ter conhecimento deste dado. Zaluar e Mingardi acreditam que "a ampla maioria dos selecionados pelo sistema, que estão nas prisões por trafico de drogas, sejam dependentes e viciados" [70], isto pois a discricionariedade da autoridade ao tipificar a conduta do agente, sua atuação como a criminalização secundária no sistema penal não conta com a utopia teórica da neutralidade axiológica do sujeito, resultando em estigmas sociais e na seletividade do Direito Penal.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao abrir o jornal pela manhã percebe-se que "se espremer, sai sangue!". Diariamente se tem notícias de mortes, assaltos, e crimes de toda natureza, e na grande maioria destas reportagens se tem a completa qualificação do autor do delito. Nome, idade, endereço, profissão. São estas as informações que ficam armazenadas e constroem o senso de criminalização comum enraizado culturalmente. Como afirmado por Nilo Batista, "o senso comum criminológico tem de ser reproduzido diariamente". [71]

A imagem do traficante como o negro favelado, armado e perigoso, estereótipos mostrados em filmes como Cidade de Deus[72], onde o comandante do tráfico se personifica em um homem sem educação e naturalmente perverso, morador de uma favela no Rio de Janeiro, mostra uma realidade frágil e típica do imaginário da elite, contribuindo para que se propague tal imagem estigmatizada. Estigma este que será aplicado a qualquer indivíduo que possua características físicas e sociais semelhantes, são os estudos de Lombroso, já desconsiderados a partir do estudo da Psicologia[73], aplicados diariamente.

Vale ressaltar que o homem branco, universitário, bem vestido e perfumado, que vende drogas em festas privadas de um meio social dominante, não é taxado como traficante a priori, pois não possui o perfil discriminado[74]. Este não, ele se enquadraria, no máximo, como dependente. Ainda fazendo referência ao cinema nacional e atual, é válido comentar o Meu Nome não é Johnny[75]. Nele o protagonista é da elite carioca, chega a traficar para o exterior, mas ainda assim recebe tratamento diferenciado ao ser reconhecido como dependente e cumprir a pena em manicômio judicial. Interessante conhecer os comentários à época que afirmavam ter sido, a juíza do caso, muito dura na condenação[76].

Em teoria a Nova Lei de Drogas se trata de um grande avanço na legislação Penal brasileira, isto, pois abraça tendências contemporâneas de tratamento do usuário de drogas como um problema de saúde e não de segurança publica. Mas, como tradicionalmente se observa na cultura jurídica do país, as classes dominantes e os estigmas enraizados no inconsciente dos que detém o poder, acabam por imprimir a discriminação social não só implicitamente nos textos legislativos, mas também nos espaços que a lei permite a discricionariedade dos agentes administrativos. Os grandes avanços vistos na modernização da legislação de drogas foram incluídos em beneficio daqueles que estão "acima da lei", pouco mudando em relação àqueles que estão na periferia dos centros de decisão.

Diante do exposto no presente estudo fica claro o caráter seletivo e discriminatório do sistema penal brasileiro. A dominação social em diversos níveis é natural, bem como a defesa de interesses de uma classe em detrimento da coletividade, mas sendo um principio basilar da sociedade constituída o da igualdade, a seletividade é inaceitável. Como bem foi dito pelo Professor Jackson Azevedo[77] em evento realizado no Centro Universitário Jorge Amado, o Direito Penal é o direito do pobre, não em defesa deste, mas porque só a ele o poder punitivo se aplica.

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Autor: Ana Paula Teixeira


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