Como um passe de mágica!



Sandro Xavier

Ninguém sabe como começou o encanto. O fato é que a casa de João e José, seu filho, realizava tarefas de forma inexplicável, desde as mais simples até as mais complexas. João e José não precisavam se preocupar com nada. Tudo era arrumado, limpo e pronto no momento certinho.

Era bom morar em uma casa assim. Mas como eles nunca tinham vivido numa rotina na qual se preocupa com a limpeza da casa, das roupas, preparação da comida etc., nem tinham noção completa do valor da sua casa encantada. Nem mesmo compreendiam alguns amigos que precisavam chegar a casa mais cedo para ajudarem nas tarefas do lar. João e José tinham um vidão... a vida que muita gente pediu a Deus. Vamos dar uma olhada em algumas coisas que aconteciam naquela casa. Só assim poderemos perceber o que acontecia de verdade.

João era metalúrgico. Chegava do trabalho e deixava sobre a cama sua bolsa. Dentro dela, estavam sua marmita suja, naturalmente, e algumas vezes, ainda, com restos de comida; e seu uniforme com marcas do dia de trabalho: sujo e bastante fedido. João seguia para tomar seu banho e, quando retornava ao seu quarto, sua bolsa já não estava nem sobre a cama. O encanto maior acontecia no outro dia: a bolsa já estava preparada, com seu uniforme limpo e a marmita repleta para ser levada em sua nova jornada de trabalho. Tudo como um passe de mágica.

Até nos momentos de refeição o encanto acontecia. Todos os dias, João sentava-se à mesa e, mesmo sem dizer quaisquer palavras mágicas, surgia a sua frente seu prato já arrumado e quentinho. E mais: os talheres já estavam lá esperando. É desnecessário dizer que, quando se fartava de comer, o prato e os talheres eram deixados no mesmo lugar, porque isso vocês já imaginaram, não é mesmo? Também afirme em sua imaginação que, pouco tempo depois, tudo isso estava limpo e arrumado. Sem dúvida, tudo como um passe de mágica.

José, o filho, jovem que era, participava de festas até altas horas da madrugada. Um dia, chegou tarde de uma dessas festas. Fora um dia muito alegre, uma noite para se esbaldar mesmo. José exagerou na bebida e estava incontrolável. Do jeito que estava, não se aguentou e vomitou todo o banheiro e sua própria roupa. Mesmo assim, com muita dificuldade, banhou-se, pôs uma roupa qualquer e foi dormir. No outro dia, o banheiro estava de novo limpo e cheiroso. Além disso, nem se via sua roupa que restou jogada e suja no chão do banheiro. Já estava lavada e estendida para secar. Tudo isso, mais uma vez, como um passe de mágica.

E no dia do futebol? Sempre a roupa aparecia lá, por perto, fácil, preparadinha para a prática esportiva de José. Mas isso até que seria fácil de entender, depois dos exemplos que já vimos. O que mais ficou marcante foi o que aconteceu quando José voltou do futebol naquele dia muito chuvoso. O campo de futebol onde ele jogava com seus amigos ficava bastante enlameado quando chovia. Nesse dia, José entrou pela casa, não somente pingando a água da chuva por toda a entradae no caminho até o banheiro, mas sujando tudo com aquele barro vermelho que soltava de suas chuteiras. É claro que ele não precisava se preocupar com nada, afinal ele nunca se preocupara mesmo! Assim que ele saiu do banheiro, após seu demorado e tranquilo banho, tudo já estava limpo pela casa. E foi, de novo, como um passe de mágica.

Sabedor do encantamento de sua casa, João convidou seus amigos do trabalho para um belo almoço em seu lar. Eram oito amigos, todos morrendo de fome e nada arrumados para a ocasião. Vinham do jeito que estavam da metalúrgica. Era um sábado, dia em que somente trabalhavam pela manhã. Seguiram famintos e ansiosos para comer na casa encantada do João. Tudo estava pronto. Assim como acontecia para João, aconteceu para todos eles: pratos prontos sobre a mesa com talheres e, nesse dia, até suas bebidas preferidas... tudo perfeito! Conversas animadas e muitas risadas entre as garfadas e os goles de bebidas rolaram até tarde. Lá pelas tantas, João despediu os amigos e deitou-se para descansar. Afinal, aquela comida gostosa dava um soninho. Além disso, receber os amigos cansa, não é mesmo? Depois desse sono justo e reparador, José nem percebe que a louça já está toda lavada e guardada, e a cozinha limpa. Pronta para outra festança como essa. Que bom! Outra vez, tudo como um passe de mágica.

Mas um dia uma constatação triste foi feita por José e João: algo errado estava acontecendo com a casa. Será que o encantamento tinha acabado? As roupas permaneciam nos lugares onde eram abandonadas, a casa já estava toda empoeirada, não se encontrava mais comida pronta na mesa, nem mesmo no fogão. Além disso tudo, a comida da geladeira já estava se estragando lá dentro. O que estava acontecendo? O que estava errado? Onde estava o defeito?

João e José sentiam-se de mãos atadas. Nada estava sendo feito e também eles não conseguiam fazer. Além de não terem habilidade para nada absolutamente, também não sabiam onde ficava qualquer material dentro da sua própria casa. Um desespero repentino tomou conta dos dois. Eles não sabiam o que estava acontecendo.

Mas a pergunta talvez não fosse "o que está acontecendo?", mas "o que estava acontecendo?". Talvez nossa observação da casa não estivesse sendo suficientemente atenta. Vamos voltar e reparar melhor no funcionamento dessa casa encantada. Afinal, todo espetáculo de magia tem seu truque um dia revelado.

Olhando melhor a casa encantada de José e João encontramos surpreendente revelação, um pequeno detalhe. Vamos olhar nós mesmos:

Quando João chegava da metalúrgica e colocava sua bolsa em cima da cama, com roupas e marmita suja, sutil e silenciosamente chega alguém e a pega: dona Maria. Ela retira a roupa e a marmita. Limpa e lava tudo. Prepara a bolsa para o outro dia e a comida para João. Como um passe de mágica?

Naquelas refeições, quando João só tinha o trabalho de sentar-se à mesa, Maria estava ali, pertinho, já com a comida pronta e preparando o prato de João. Colocava-o já a sua frente. Inclusive com os talheres preferidos de João. Tudo como um passe de mágica?

E no fim da noitada etílica de José? Quem acordou sabendo que algo estranho acontecera? Ela chegou ao banheiro e, além de ajudar seu filho a deitar-se, ainda gastou o tempo de sua tranquila noite de sono limpando o banheiro e lavando a roupa toda suja dos "resíduos do excesso de bebida". Onde está o passe de mágica?

No dia do futebol, o banho de José foi tão demorado que ele nem conseguiu ver o esforço da dona Maria para limpar toda a sujeira de lama que ficou pela casa. Certamente, não foi somente como um passe de mágica.

E quando aquela gente mal-educada e suja chegou à sua casa para comer. Falaram todo tipo de coisa entre si, mas nem notaram a presença de Maria. Mesmo tendo ela cozinhado, servido e ainda arrumado tudo depois... e sozinha. E nada disso, para ela, foi como um passe de mágica.

Mas o que aconteceu, então? Onde estava a valorosa Maria?

Valorosa? Agora? Só agora que se percebeu que a casa não era encantada. Só agora, João e José perceberam que nada era encantado em sua casa. O encantamento acabara e só assim notaram que havia a, agora valorosa, Maria.

Mas quem era essa Maria? Mãe e mulher. Dona de casa que trabalhava incessantemente, de dia e de noite em sua casa para manter a ordem que era facilmente desfeita pelos outros dois moradores. Maria não era notada porque nenhuma palavra lhe era dirigida. Nem mesmo era necessário lhe pedir nada, porque ela já sabia o que e em que momento deveria estar pronto. Se Maria não era notada em sua casa, pode-se imaginar que José e João nem sentiam sua falta em suas relações e atividades fora de casa. Maria não era convidada para nada.

Agora está desvendado o mistério da casa encantada. O passe de mágica tinha nome: Maria. Olhando melhor, vimos tudo o que ela fazia e o que José e João nunca deram valor... porque nem abriam seus olhos para ver.

A única coisa que não desvendamos foi o que aconteceu com Maria. Será que ela tinha morrido? Será que ela cansou daquele trabalho todo? Ou será que ficou mais incomodada com a ingratidão e com o desprezo que lhes eram dispensados? Talvez tenha encontrado um outro lugar para viver. Algum lugar onde lhe dão valor, onde dividem com ela a tarefa, fazendo com que os trabalhos não sejam pesados, mas uma prazerosa partilha das atividades da casa. Um lugar onde a convivência respeitosa é o passe de mágica necessário para uma vida suficientemente feliz.

Na verdade, não se sabe. Como também não se sabe qual será o futuro de José e João. Não se sabe o que eles farão e até mesmo se vão conseguir fazê-lo. Coitados deles agora. Terão que arrumar uma nova maneira de "encantar" a casa. Não será muito fácil...

Essa história é para homenagear as tantas marias em nosso país que trabalham em várias jornadas, sem direito a salário nem aposentadoria, sem lazer nem reconhecimento. É, também, com o objetivo de abrir os olhos e os corações dos joões e josés que não conseguem enxergar em sua própria casa as marias, valorizar-lhes o trabalho ou mesmo dar uma "mãozinha". A elas, nosso reconhecimento e nosso carinho de maridos e de filhos. Muitas vezes, por causa delas, vivemos uma vida tão fácil, como numa casa encantada... como um passe de mágica!

Rio de Janeiro

Em fevereiro de 2007


Autor: Sandro Xavier


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