EPAHEI! OYÁ! UMA VIAGEM AFIRMATIVA DA IDENTIDADE CULTURAL DO POVO BAIANO NAS ENTRELINHAS DA OBRA AMADIANA “O SUMIÇO DA SANTA: UMA HISTÓRIA DE FEITIÇARIA”



Autoras: Keiza Sampaio;Lígia Sumi;Lucília Oliveira e Silvânia Almeida

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo evidenciar a proposta sincrética amadiana, através de uma viagem afirmativa da identidade cultural do povo baiano, traçada a partir da religiosidade na obra “O sumiço da santa: uma história de feitiçaria”.
Palavras-chave: Religiosidade. Identidade cultural. Mestiçagem. Sincretismo. Jorge Amado.

Cidade da Bahia, de seu nome completo Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, enaltecida por gregos e troianos, exaltada em prosa e verso, capital geral da África, situada no oriente do mundo, na rota das Índias e da China, no meridiano do Caribe, gorda de ouro e prata, perfumada de pimenta e alecrim, cor de cobre, flor da mulataria, porto do mistério, farol do entendimento (O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria. p. 18).

O debate sobre a prática da religiosidade popular vem se intensificando no decorrer dos tempos, seja para exaltar o seu caráter libertador, seja para distorcê-la como pouco fiel aos princípios teológicos, originando diversas reflexões sobre a ligação do homem com o divino, ocasionando uma diversidade de usos e de entendimentos. Cada cultura, em decorrência dos diferentes eventos históricos que atravessou, segue seu próprio caminho, num mundo em constante mudança;é a cultura que nos dá a diferença e que nos torna singulares. Segundo Edward Tylor "cultura é um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade" (apud. LARAIA, 2003, p.25). Nessa perspectiva, Ruth Benedict reforça que "a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo" (apud. LARAIA, 2003, p.67).

A cultura de um povo está no reconhecimento das suas raízes. Segundo Stuart Hall (2002), "uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas nações quanto a concepção que temos de nós mesmos" (p.50). A construção da identidade de um povo provém do diálogo entre o indivíduo e a sociedade. Para falarmos em identidade tomaremos como ponto de partida a idéia de James Baldwin:

A identidade é apresentada dentro de uma perspectiva etno-pluralista em que se ressalta o caráter particular diferencialista, ou seja, cada grupo deve respeitar a sua imagem, sua memória, cultivar e dela se alimentar, ao mesmo tempo a imagem do outro (apud. JOAQUIM, 1996, p.57).

Diante disso, a busca da identidade do povo baiano emerge de uma resposta ao racismo, como escreveu Gilberto Freire "o brasileiro é negro nas suas expressões sinceras[1]. Para demarcar o patrimônio afro-brasileiro, bastaria, portanto, excluir o que em nós é pose ou imitação" (apud SANTOS, 1997, p.5).

A afirmação da identidade do povo baiano pode ser traçada a partir da religiosidade, uma vertente que constitui relações com culturas raciais, étnicas, lingüísticas, desenhando nosso povo, nossa gente. E a terra da Bahia, ventre da nação brasileira, berço de diferentes povos, é o prisma que reflete e retrata os diversos ângulos de uma pátria permeada de encantamentos, "A Bahia de Todos os Santos", de todas as cores, de todas as raças, de todos os credos. É desse universo aquarelado de respostas e significados, que adentramos no campo pluricultural no "resgate" da identidade cultural do povo baiano. Jorge Amado "costura" a nossa identidade com fios de ouro que perpassam toda a nossa trajetória impregnada na "história do negro". Esse fio sarcasticamente entrelaça o riso escancarado de Amado e transita entre o negro e o branco, o profano e o sagrado, o popular e o oficial, o real e o imaginário, que poderá ser entendido dentro de um contexto de relação da religião com a sociedade, rompendo com os limites da religiosidade popular católica brasileira de herança colonial. Como escreveu o próprio Jorge Amado:

Existe uma cultura baiana com características próprias, originais? Creio que sim. Aqui toda cultura nasce do povo, poderoso na Bahia é o povo, dele se alimentam artistas e escritores. [...] Essa ligação com o povo e com os seus problemas é marca fundamental da cultura baiana que influencia toda cultura brasileira da qual é célula - mater (AMADO, 1973, p.23).

É através da percepção da realidade à sua volta, que Jorge Amado traduz a atmosfera de encantamento e mistério da Cidade da Bahia de Todos os Santos e Encantados. A religiosidade é tema marcante nessa galeria, e a obra O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria é o laço sincrético entre dois mundos "distintos", os Orixás e os Santos Católicos. O autor é testemunha e integrante desta nação, exerce a função missionária e como um "Exu"[2], abre caminhos para a afirmação dessa sociedade biocultural. A partir do estudo dessa obra, pode-se tecer a linha ideológica amadiana, ora contínua, ora sinuosa. Essa linha ganha cor e brilho, enlaça e revela a identidade e os valores do povo mestiço do Brasil. Jorge Amado traz de forma expressiva a fé e a crença de uma nação "Afro-luso-tupi", dentro da célula-mater chamada Bahia. Assim, apresenta a Bahia para o Brasil e o Brasil para o mundo. O Sumiço da Santa aborda duas religiões e as contrasta, no entanto, é visível a sua defesa ao enlace sincrético. A proposta amadiana poderia ser assim definida, fazendo uso das palavras de Cid Seixas:

Desconstruir a herança cultural européia e fortalecer a auto-estima da gente mestiça - ou do povo brasileiro - é o que Jorge Amado começou a fazer, a partir dos anos 70, por entre as frestas da história contada e por entre as festas dos sentidos incendiados da tempestade do texto (apud, LEITE, 2006, p.40).

Esta tempestade tem início na obra com o embarque de Santa Bárbara no saveiro com destino à Bahia de Todos os Santos, onde seria exibida no "evento cultural do ano" a Exposição de Arte Religiosa no Museu de Arte Sacra da Bahia. A viagem foi tranqüila, no entanto, chegando ao porto de Salvador...

[...] a Santa saiu do andor, deu um passo adiante, ajeitou as pregas do manto e se mandou. [...] Lá se foi Santa Bárbara, a do Trovão, subindo a Rampa do Mercado, andando para os lados do Elevador Lacerda. Levava certa pressa, pois a noite se aproximava e estava chegada a hora do padê. [...] Antes que as luzes se acendessem nos postes, Yansã sumiu no meio do povo (AMADO, 1988, p. 21).

Esta cena é o primeiro capítulo de uma novela que entre risos, conflitos, dogmas e conversões retrata o empenho do romancista em defesa do sincretismo afrocatólico. O movimento cenográfico de sumir e revelar-se "Bárbara-Yansã" a ajeitar as pregas do manto, dar um passo adiante e sumir no meio do povo, reproduz a visão amadiana de expressar o realismo mágico, a metamorfose, em que as figuras se confundem, completam-se. Aqui, Jorge Amado deixa na narrativa o laço frouxo, permitindo ao leitor adentrar no mundo mágico da Bahia,

Terra onde tudo se mistura e se confunde, ninguém é capaz de separar a virtude do pecado, de distinguir entre o certo e o absurdo, traçar os limites entre a exatidão e o embuste, entre a realidade e o sonho. Nas terras da Bahia, santos e encantados abusam dos milagres e da feitiçaria, e etnólogos marxistas não se espantam ao ver imagem de altar católico virar mulata faceira ao entardecer (AMADO, 1988, p. 44).

O sumiço da santa desencadeia todos os acontecimentos que perpassam a narrativa, num breve espaço de tempo de quarenta e oito horas, suficientes para mudar os destinos e as vidas das personagens. É válido ressaltar que a narrativa é "rica em veracidade" como afirma o próprio autor, e transcorre no momento mais duro da ditadura militar e rígida censura à imprensa. Quando deputado federal, Jorge Amado, foi autor da lei que pune a discriminação de credo religioso e garante a liberdade para a prática de rituais de Candomblé, que sofriam perseguição policial na Bahia dessa época. Jorge Amado, nessa obra, continua o seu projeto de corrigir as injustiças sociais e conduzir o povo ao centro da cena histórica:

Na cidade mestiça da Bahia existem todas as nuances de cor na pele dos viventes: vão do negro, azul de tão retinto, ao branco de leite, alvo de neve, e a infinita gama dos mulatos - todos comparecem. Quem não é devoto do Senhor do Bomfim, os milagres incontáveis, quem não se pega com Oxalá, os ebós infalíveis? (AMADO, 1988, p.53).

E assim, Jorge Amado, por entre as linhas do texto, vai tecendo a nossa história e lança luzes sobre algumas das representações de nação presentes e veiculadas na sociedade brasileira, por suas mais variadas instituições. A crítica social está presente no decorrer de toda narrativa, no que diz respeito à religião católica que teria abafado ou recalcado a exuberância inventiva de uma antiga cultura do povo. Nesta obra, estão presentes personagens racistas, corruptos e negligentes que se acortinam na religiosidade para forjar uma identidade suja, impregnada no "pecado". Estratégias do autor, os personagens religiosos de O Sumiço da Santa, que representam a igreja católica, distinguem-se como seres humanos, por vezes indo de encontro aos dogmas do sacerdócio.

O desvirtuamento de tais dogmas pode ser percebido em Dom Maximiliano, o dom "Mimoso", delicado e erudito. Ele é o diretor do Museu de Arte Sacra e principal interessado em desvendar o mistério do desaparecimento da santa. Durante o enredo, passa de vítima a suspeito do suposto roubo; inicia-se, então, a fuga à imprensa e aos telefonemas do pároco de Santo Amaro da Purificação, que lhe emprestara a contragosto a imagem. Esse acontecimento é uma alusão a fatos verídicos da época, em que dezenas de imagens já haviam sido furtadas em igrejas e museus, muitas sob suspeita de religiosos da ordem doutrinária. Um grande número dessas raridades veio parar nas mãos de colecionadores, aqui e em outros países, provavelmente à custa de um bom "pé de meia".

O narrador, com um gingado malicioso, vai desestruturando convicções doutrinárias, em que a pregação é uma, e as atitudes outras.A intenção não é um ataque geral à Igreja; é, sobretudo, criticar essa hipocrisia que está em causa. Outra figura importante nesse cenário é o Vigário de Santo Amaro, "osso duro de roer", e Dom Rudolph, que "urgia em separar o joio do trigo, o branco do preto, o bem do mal, impor limites, traçar fronteiras" (AMADO, 1988, p.98), ninguém mais vigilante e responsável quando se tratava da doutrina da igreja, é totalmente contra a "impureza", a miscigenação, como se seguisse a idéia de Nina Rodrigues[3].

Em meio a essas contradições surge Edimilson Vaz, uma figura que retrata o universo sincrético da Bahia, mesmo sendo católico ele era dado a visões. O etnólogo, auxiliar de confiança de Dom Maximiliano testemunhou a metamorfose da santa, relata ao seu superior, jura, por Deus e por todos os santos, ver a imagem da santa transformar-se em mulata faceira. Diante do inexplicável, Dom Maximiliano não acredita, mas é retido pelo Abade Timóteo: "– Os milagres existem, acontecem diante de nós a cada instante, só o orgulho nos impede de vê-los e de reconhecê-los" (AMADO, 1988, p. 337).

"Nos atalhos da tentação, nas ameaças da queda, nas trilhas da excomunhão, padre Abelardo Galvão..." (AMADO, 1988, p.358). Um jovem, moderno e bonito, defensor de idéias avançadas, luta na defesa dos sem terra,no entanto, Abelardo era um homem incompleto, vítima do celibato clerical e de sua mente que o impossibilitava de concretizar seu amor com Patrícia, uma bela mestiça, filha de Yansã e apaixonada pelo referido pároco. No entanto, o padre torna-se um homem inteiro nos braços de sua amada Patrícia, que, num pedido a Oyá, anula a sentença de morte destinada ao padre e escreve, em seu lugar, a palavra amor. A união da filha de Yansã com o sacerdote pode ser lida no dizer de Ordep Serra (1995): "uma convincente metáfora do sincretismo" (p. 309).

Nesta obra, Jorge Amado fala do mundo místico dos orixás e do sincretismo presentes na Bahia, aperta o nó da linha que tece o enredo para centrar no real motivo que levou Oyá a desembarcar na Bahia de Todos os Santos: "[...] Oyá... trazia um propósito e uma decisão: libertar Manela do cativeiro e mostrar a Adalgisa com quantos paus se faz uma cangalha. [...] Para lhe ensinar a tolerância e a alegria, o bom da vida" (AMADO, 1988, p.38). As personagens Adalgisa e Manela aparecem na trama, como escreveuo autor no prólogo do livro: "para que sirvam de exemplo e advertência", é um chamado à reflexão.

Adalgisa, Dadá, é uma personagem ambígua, cuja identidade forjada apresentava-a como uma "senhora de princípios", pura, casta e honrada. Era, na verdade, uma mulata inautêntica, que renegava sua origem negra, valorizava apenas o sangue espanhol do seu pai. Preconceituosa, alicerçava-se na hipocrisia da "civilização ocidental". Ironicamente, Adalgisa era filha da mulata Andreza de Yansã e casara-se com Danilo, um mulato, "clareado" economicamente, portador de avantajados "totens" de safadeza.

Por entre os risos e as linhas que conduzem esta "epopéia" amadiana, presenciamos cenas picantes, ardentes desta católica fervorosa a "quebrar o cabaço" e a penitenciar-se. Adalgisa, mulher catolicamente civilizada, é frígida, mal humorada, dona de uma dor de cabeça que não passara nem com o casamento; é a representação do "embranquecimento intelectual" através da crença doentia que lhe vendava os olhos para impedir que ela aceitasse sua condição de mestiça.

Quando Andreza se iniciou no candomblé, carregava no ventre uma criança – Adalgisa – abicun[4], portanto, já veio ao mundo comprometida com o orixá. Esse compromisso marca sua ligação com a religião africana, a qual Dadá teimava em não reconhecer. "Adalgisa tinha horror ao candomblé" e tudo que o representasse. O reflexo contorcido de Adalgisa é sua sobrinha Manela: menina moça, linda, de dezessete anos, acostumara à liberdade quando vivia com os pais, após a morte desses, passa a morar com a tia, sua tutora e algoz:

Adalgisa pusera-lhe o cabresto, ditara horários rígidos, não lhe permitia trocar pernas pelas ruas, e, quanto a festas e cinemas, somente acompanhada pelos tios. Terreiros de santos, nem falar: Adalgisa tinha horror a candomblé. Horror sagrado, o adjetivo se impõe. Cabresto curto, pulso forte, trazia-a sob controle, castigava sem dó nem piedade. Estava cumprindo seu dever de mãe adotiva – um dia, instalada na vida, Manela lhe agradeceria. (AMADO, 1988, p.58).

Adalgisa acredita ter a grande missão de fazer com que Manela seguisse seu caminho de dama respeitável, longe do candomblé, segundo ela "onde o demônio se apossa das almas dos cristãos" (AMADO, 1988, p. 79). Deseja recalcar na sobrinha a mulher sensual, a negra,assuas raízes. Contudo, a "justiça" amadiana tarda, mas não falha, e é chegado o dia da redenção: "Oyá viera por Adalgisa e por Manela, cobrar o que lhe era devido, exemplar quem lhe faltara, proclamar o direito à vida e ao amor" (AMADO, 1988, p.153).

Oyá tem por objetivo modificar a vida e os destinos das personagens, e o autor dá continuidade ao seu projeto de afirmação da identidade cultural afro-brasileira. É como disse o próprio Jorge Amado, segundo citação de Carlos Nelson Coutinho: "O fundamental era assegurar ao povo à sua cultura e aos seus valores condições de alcançar um pleno protagonismo na construção da sociedade brasileira e, em particular, de uma cultura autenticamente nacional, democrática e pluralista" (apud Fonseca, 2001, p.16).

A trajetória de Yansã foi traçada de terreiro em terreiro, e, por cada lugar que passava, ia deixando o seu rastro, inspirando artistas, salvando vidas, libertando enclausurados, arrancando máscaras e despindo as contradições. A concepção amadiana acerca das relações entre negros e brancos e da própria idéia de nação presente na obra é personificada nas personagens Adalgisa e Manela; a primeira renega suas matizes africanas por opção e puro preconceito, a segunda é impedida de viver sua vida, cultuar seus deuses, tiraram-lhe o direito à liberdade pela imposição e também pela "taca de couro". O processo de legitimar a cultura popular é trabalhado por Amado através das oposições culturais em processo de transição e hibridismo, envolvendo questões sociais, étnicas e religiosas.

De forma irônica, crítica e carnavalizada, Amado seduz o leitor e direciona para o caminho contra o preconceito e a repressão, na construção de uma civilização própria. Ao longo da obra, o narrador vai dando mostras dessa civilização sincrética, a Bahia de Todos os Santos e Orixás, de origens distintas, mas que, ao chegar nessa terra, "farol do entendimento", tudo se modifica:

Chegado de Portugal, ao tempo da colônia, no voto aflito de um náufrago lusitano, Nosso Senhor do Bomfim; chegado da costa da África, ao tempo do tráfico dos negros, no lombo em sangue de um escravo, Oxalá. Sobrevoam a procissão, encontram-se nos seios das baianas, mergulham na água-de-cheiro e se confundem, são uma única divindade brasileira (AMADO, 1988, p.53).

A personagem Manela é uma baiana "arretada", mesmo sendo criada com rédeas curtas, carrega no peito o sangue da sua gente, é a encarnação da resistência e afirmação das suas origens. A conversão de Manela tem início na festa da Lavagem do Bonfim, é o retorno a uma origem cujo distanciamento lhe era imposto. "Ao mesmo tempo em que invoca a proteção divina –Misericórdia, meu Senhor do Bomfim! –, num gesto instintivo, hereditário, Manela inicia o ritual das ekedes, acólitas das feitas no cuidado dos orixás manifestados..."(AMADO, 1988, p.61).

Por entre os retalhos da nossa história, Jorge Amado costura a nossa identidade. Manela é liberta finalmente da clausura pelas mãos de Santa Bárbara/Oyá. Adalgisa, de mulher presa e sofrida, vítima da opressão católica, troca o figurino. Yansã monta-lhe a cangalha, quebra-lhe a frigidez e põe fim à dor de cabeça. Dadá agora estálivre dos seus vícios, misérias e das "leis penitenciais". A "essência" de sua alma recebe a alforria, desata o nó que separava as duas mulheres: a dona de casa, a dona do mundo. Continua católica, mas é também, e com muito orgulho, filha de Yansã. E assim, Amado proclama a mestiçagem não só das raças, mas também das religiões, retratando o povo da Bahia.

Nessa terra, onde encantados e santos vivem em harmonia e se misturam, nenhum povo nascido aqui pode se declarar "puro", seria até uma ironia. Nosso povo é alegre, festeiro e de fé, o hibridismo aqui ganha múltiplas formas, e a religiosidade, poderíamos dizer, reúne um panteão divino a proteger o nosso povo.

A religião que avistamos na obra, retrata fielmente a identidade do povo brasileiro, transparente, ligada diretamente à sensualidade, característica marcante do autor que apimenta e desconstrói a hegemonia da herança colonial européia, fazendo o contraponto entre a religiosidade (moral) e a sensualidade (amoral). Este confronto dilui-se num realismo mágico de uma "história de vencedores" de uma cultura crioula, de um país mestiço: "O tema é, na verdade, uma guerra de demiurgos, de deuses poderosos, um confronto de culturas e raças em busca de caminhos e de identidades" (SEIXAS, 2003, p.16).

A nossa pátria ganha significativo valor nas mãos de Jorge Amado, quereescreve a história do povo brasileiro, da gente mestiça que constitui 80% da Bahia, herói plural da narrativa amadiana, herói plural do Brasil. Neste sentido, a obra se configura como um manifesto contra a opressão de um povo que traz na sua gênese a força, a coragem e a dignidade, que, mesmo diante da imposição de uma cultura dita dominante, conseguiu sobreviver, mantendo e preservando suas tradições. A religião, portanto, oferece a um povo uma carteira de identidade que, por muito tempo, fora-lhe negada pela sociedade.

A tessitura ficcional amadiana em O Sumiço da Santa, satiriza a máscara imposta pelas leis do catolicismo, intensificando a posição sincrética do povo da Bahia, com passagens da obra em que a divindade ora é Santa Bárbara, ora é Yansã. A narrativa é simplesmente fascinante, um verdadeiro convite à última página. Seria uma façanha? Ou puro feitiço? Amado é um mago da pena e da agulha, com palavras, alfineta a hipocrisia na tecitura da história. É generoso à frente de seu tempo, doa seus sentidos para falar com a sua gente, com a linguagem do seu povo, no contexto real de sua civilização. E assim, Amado constrói por entre as linhas do discurso O Sumiço da Santa: uma história de feitiçaria, uma brincadeira séria, o zigue-zague de componentes culturais que se fundem a alegoria, expressões populares, a "presepada" e o diálogo divertido com o leitor. Ele entremostra o sorriso de uma sociedade cheia de virtudes, nesta terra de Jorge Amado, a Bahia de Orixás e Todos os Santos.

REFERÊNCIAS

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Autor: Silvânia Almeida


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