ATOS DE CURRÍCULO, ESTUDOS CULTURAIS E EDUCAÇÃO
Jose Teixeira Neto – Zelão
Mestrando em Educação, linha currículo – PPGE /UFBA 2006/07
pesquisador do FORMACCE
Proposta apresentada no GT-Currículo e publicada nos anais do XVIII EPENN 2007
– Encontro dos Pesquisadores de Educação do Norte e Nordeste
Resumo: Este artigo procura estabelecer possíveis conexões entre atos de
currículo, perspectivas teóricas e investigativas dos Estudos Culturais e
Educação. O argumento edificado tenta demonstrar como as questões da cultura
podem atuar com protagonismo nas ações pedagógicas. Aponta possibilidades de um
portal de agências educativas que perpassam o cotidiano dos atores sociais,
afetando suas subjetividades, via conexões entre cultura-saber-poder e
intertextualizações culturais. Argumenta que tais agências podem vir a
expressar significados simbólicos e ampliar o entendimento das tensões
culturais emergentes nas sociedades inseridas no contexto da globalização.
Contextualiza a crise das identidades na modernidade tardia e dialoga com as
perspectivas dos curriculistas críticos, para questionar o tratamento desse
temas em educação. Palavras Chave: atos de currículo – currículos culturais –
estudos culturais
Mobilizado por inquietações diversas e intercruzadas emergidas em sala de aula,
reuniões pedagógicas, reunião de pais, entre outros momentos/lugares
específicos para o tratamento das relações aprendentes escolares, venho
refletindo, discutindo, agindo e aprendendo em educação através da perspectiva
cultural crítica. Essa opção implica interações com as múltiplas manifestações
e "produções" que afetam as subjetividades dos atores sociais. Recorre às
rizomáticas formas e canais de informação e aprendizagem que ocorrem, também,
exteriormente aos muros da escola, atuando poderosamente como questões culturais
nas quais estão inscritas suas interações. Demanda, ainda, análise crítica
sobre o que e quais são as origens, as simbolizações e desdobramentos dessas
culturas. Tal opção implica, também, o reconhecimento da diversidade, superando
metaconceitos de cultura, elitistas, estanques e autocentrados, prevalecentes
na formação/docência de educadores e em currículos que desdenham da
criticidade, como potencial mobilizador para transformações sociais.
O campo de teorização e investigação que pode dialogar com esses atos de
currículo em educação, cosmo de complexidades, são os Estudos Culturais.
Originado na década de 60, na Inglaterra, sua produção tem-se tornado influente
campo de investigação social. A princípio, tomou como referência a concepção
antropológica de cultura que a considera como "a totalidade da experiência
vivida pelos grupos sociais". Atualmente, define cultura "como campo de luta em
torno do significado e a teoria como campo de intervenção política" (SILVA,
2000-a). Teóricos desse campo têm-nos oferecido provocações instigantes para
pensarmos o currículo na contemporaneidade e atualidade na perspectiva cultural
crítica.
Partindo dos tensionamentos referentes às tentativas de definição do contexto
de virada de milênio, como "crise de paradigmas da modernidade" ou das
manifestações da "modernidade tardia" ou, ainda, "pós-modernidade",
contextualizando o campo onde ocorrem "as lutas" e as "intervenções políticas",
dialogo com curriculistas críticos e as teorias do currículo cultural,
apontando os Estudos Culturais como caminho mobilizador para educadores,
educadoras e instituições educativas transformarem a Educação numa nave
transcultural que encarne a pedagogia cultural e mobilize as comunidades para o
conhecimento crítico com responsabilidade social, para o respeito, dignidade e
convivência na diversidade.
O contexto da modernidade tardia, longe de consensos, de dualismos acomodados
definidores de bem e mal, distancia-se das certezas, fragmentando-as em
múltiplas facetas. Não há concordância sobre sua conceituação. Tanto é
concebida como contexto escatológico, quanto como um universo de contradições
produtivas, de desterritorializações, deslegitimações do conhecimento
tradicional, predomínio dos simulacros, fragmentação e descentramento das identidades
sociais e culturais. Tomaz Tadeu da Silva, no verbete de sua instigante Teoria
Cultural e Educação – Um Vocabulário Crítico, define o pós-modernismo visto
também
como uma perspectiva teórica ligada a práticas textuais, teóricas e sociais
tais como a ironia, o pastiche, o cruzamento de fronteiras culturais
identitárias, preferência pela mistura e pelo hibridismo; a celebração da
contingência e da provisoriedade; a tolerância para com a inderteminação e a
incerteza (SILVA, 2000, p.94 - b).
Para tencionar o tema e situar o debate, recorro a recortes de diferentes
matrizes, optando pela reflexão sobre os deslocamentos das identidades
culturais na modernidade tardia perspectivada por Stuart Hall (2005).
Lyotard (1988) indica que, desde a 2ª. Guerra Mundial, assistimos à perda do
imperialismo cultural das metanarrativas filosóficas e políticas na construção
do conhecimento, estilhaçadas pela autonomia fragmentadora das
micro-narrativas, dissolvendo o sujeito social vinculado à linguagem em sujeito
dos jogos de linguagem, do dissenso, da diversidade, do argumento, da
sensibilidade. Iluminismo, positivismo, marxismo desmancham-se no ar, falindo
os saberes institucionais ideologizados.
Para Baudrillard (1995), esse período caracteriza-se pela "explosão da cultura
na vida cotidiana", inflacionada pela mercadoria hegemônica imagem-signo
operando na cultura de massas. Argumenta que vivemos no mundo onde predomina o
simulacro, e as simulações definem as ideologias. Nele, triunfa a cultura da
representação, superando classes, poder; simulando a voz popular na mídia;
criando efeitos de realidade, a "hiper-realidade".
O crítico literário marxista, Frederic Jameson (1996), também interpreta o
social determinado pela esfera cultural. Para ele, o pós-modernismo é a
dominante cultural ou a lógica cultural da terceira grande etapa do
capitalismo, cuja origem estaria na era pós Segunda Guerra Mundial (GUERRA,
2002).
Na trilha de Baudrillaire, Jameson afirma que a cultura da representação
inverte a direção tradicional do determinismo, onde ocorre o saturamento das
relações sociais por signos culturais mutantes. Nesse tipo de sociedade, tudo é
determinado pela cultura. Crítico do marxismo tradicional, Jameson afirma que a
lógica da mercadoria adentra a esfera do universo simbólico, transformando a
cultura na mais importante mercadoria dessa fase do capitalismo. O império
cultural iguala-se ao econômico–social e, mesmo sendo crítico da
pós-modernidade, mantém fidelidade à análise dialética, identificando os
aspectos negativos e positivos desse contexto. Nele, os artefatos culturais
estão a serviço da lógica do capital globalizador, escamoteando a realidade,
dissimulando suas contradições, navegando apenas nas aparências. Esses
artefatos portam os elementos ideológicos que efetivam o que chama de
"capitalismo tardio", ao mesmo tempo em que refletem o imaginário sobre como os
sujeitos organizam-se na sociedade.
A modernidade tardia pode ser definida, ainda, como período das instituições
modernas cravado de radicalizações: a destradicionalização, os mecanismos de
desencaixe e a reflexividade institucional (GUIDDENS, 2002), em função do
dinamismo das descontinuidades, da abrangência do afetamento das tradições e do
seu impacto global.
Siqueira (2003), ancorado em Castoriadis, entende a pós-modernidade como um
espaço para as "verdades proposicionais" em detrimento das "verdades
formulares". O poder está na condução de micro-grupos que vislumbram alterações
significativas em termos de qualidade na política, segundo.
O sociólogo português, Boaventura Souza Santos (1997) reconhece a ambigüidade
da expressão "pós-modernidade". Porém, crê em sua adequação para tratar das
contradições e complexidades que se apresentam na contemporaneidade. Afirma que
ela é a incapacidade da modernidade em cumprir uma de suas promessas
essenciais, a emancipação social; é a frustração do Projeto Cultural da
Modernidade. Sem negar a grande importância das questões econômicas, esse
pensador questiona o reducionismo econômico e sua tendência a menosprezar
fenômenos políticos e culturais, afirmando que "cada vez mais os fenômenos
culturais são simultaneamente econômicos, políticos, culturais" (op.cit.).
Deleuze e Guattari, referidos por Galo (2004) afirmam que a totalidade é uma
fábula e que a teia de possibilidades e interconexões, as ramificações em todos
os sentidos, a provisão, o deslocamento, a evasão, a ruptura, a mestiçagem, a
mistura, a promiscuidade, a transversalidade, caracterizam a construção
rizomática onde se dão as tensões desse contexto.
Para David Harvey (1992), a linguagem transformou-se na centralidade do modo de
produção do capitalismo na modernidade tardia. Afirma que o novo capitalismo,
surgido do redimensionamento do sistema, após a crise em meados da década de
70, superou o engessamento das linhas de produção do fordismo, desvanecendo as
fronteiras espaço-temporais que permitiram novo modelo de produção definido
pelas redes e pela flexibilidade. A produção de serviços (eventos, diversão,
entretenimento, saúde, educação e principalmente comunicação e conhecimento)
substituiu a produção material de bens de consumo duráveis (eletro domésticos,
carros), precipitando consumo e lucro dos investimentos. E, numa economia
edificada em informação e conhecimento, o discurso é estrutural, pois o
conhecimento produzido que circula é consumido via discursos.
Stuart Hall (2005), ao identificar a questão da crise das identidades nesses
quadros da modernidade tardia, mobiliza-me para reflexões críticas sobre a
dimensão das questões da cultura na educação. São provocações que podem
provocar conexões entre educação, estudos culturais e atos de currículo. Ele
articula as transformações do conceito de sujeito aos deslocamentos da
modernidade tardia. As alterações provocadas pela globalização, "mudanças
constante, rápidas e permanentes", promovem experiências que ultrapassam os
limites da simples convivência com essas modificações. Nas palavras de
Guiddens, citadas por ele, "as práticas sociais são constantemente examinadas e
reformadas à luz das informações recebidas sobre aquelas próprias práticas,
alterando, assim, constitutivamente, seu caráter" (op.cit.). Afirma, ainda, que
a identidade torna-se "celebração móvel", sendo transformada por nossas
representações e interpelações culturais. Portanto, identidades múltiplas em
múltiplos momentos, contraditórias, temporárias, cambiantes e desconcertantes
apontando e revelando múltiplas direções.
O efeito pluralizador sobre as identidades, possibilitou novas posições
políticas não fixadas e unificadas, mas sim, diversas e nômades. Apesar dos
riscos da homogeneização ou seu contraponto, o centramento nas raízes e
tradições locais; Hall entende os deslocamentos de identidade na globalização
através da perspectiva da "tradução", isto é, possibilidades de constituições
de novas identidades, via intersecções e negociações entre as novas culturas,
sem o comprometimento da assimilação pura e simples ou a perda total de suas
identidades. Mas, sim, como resultado dos intercruzamentos das culturas.
Penso que tais deslocamentos vêm ocorrendo nos mais variados âmbitos, pessoal,
coletivo, familiar, escolar, educacional, político, econômico. Como as
instituições educativas vêm refletindo a respeito dessas questões? As famílias
que buscam a educação têm tratado dessas inquietações? As escolas vêm
provocando educadores e educadoras, alunas, alunos e famílias, enfim, suas
comunidades escolares para essas complexidades, para perceberem-se nesse
processo e interagir criticamente com ele? O que os currículos escolares estão
querendo de seus atores sobre essas questões? Ocorrem aproximações entre essas
questões e seus currículos? Que atos de currículo interagem nesses espaços?
O diálogo com pensadores e com curriculistas críticos pode permitir esse
movimento mobilizador e aprendente das comunidades escolares. Desta forma, após
os tencionamentos dessa condição histórica de complexidades e de minha forte
mobilização, aponto conceitos de pensadores críticos da Educação e da
epistemologia multicultural para refletirmos sobre pedagogia cultural e
currículo cultural.
José Gimeno Sacristán (2000) chama atenção para o que denomina de "quatro
celebrações no final do século XX": o triunfo do projeto iluminista, a
lamentação de seu fracasso e desnaturalização, o esclarecimento da pós-modernidade
pessimista e crítica do projeto de sociedade e suas realizações e o
ressurgimento da esperança renovada em um projeto matizado e revigorado.
Ao mesmo tempo, são inquietantes as demandas intercruzadas no campo da educação
e da cultura do século XXI, apontadas pelo curriculista Peter MacLaren (2001):
tecnologias, diásporas, globalização, pós-modernidade, multiculturalismo,
pedagogia crítica, epistemologias, resistências, práxis revolucionária,
emancipação e justiça social
Como possibilidades para o projeto "matizado e revigorado" de Sacristán e a
interação com os desafios de MacLaren, nesses quadros de modernidade tardia,
inúmeras lutas devem ser travadas na arena cultural contra a lógica do capital,
da acumulação e da maximização do lucro, política que se sobrepõe ao
conhecimento e a escolarização democratica (APPLE e GENTILI, 2001). A ação dos
professores como intelectuais críticos pode desconstruir ideologias
instrumentais a serviço do capital predominante nas escolas, para práticas
sociais de oposição (GIROUX, 2000), ao mesmo tempo em que dialogicidade,
autonomia ,interculturalidade, consciência do
inacabamento/incompletude/inconclusão (FREIRE, 1993) sejam campos fertilizados
para a "Pedagogia da Esperança", mobilizada por éticas solidárias e militantes
do exercício da democracia e pela "utopia com um olho no presente e outro no
futuro" (GENTILI, 2004).
Tais atos de currículo devem fundamentar-se numa epistemologia multicultural
crítica, pois o deslocamento de "cultura" para "culturas", além de teórico, é
político. A diversidade é pulsante, reveladora da necessidade de diálogos
interculturais que, poderosamente, desconstroem as imposições de culturas
unificadoras. Essas ações transculturais são políticas favorecedoras de
convivência cultural, de trocas, contestadoras da educação oculta,
estabelecedora de crítica política e não folclorizadora (MACLAREN, 1998). O
multiculturalismo crítico é dinâmico e questionador dos modelos monoculturais,
revelando vozes caladas na modernidade, superando o multiculturalismo
conciliador, que defende a tolerância e não o respeito e a interatividade
(SIQUEIRA, op. cit., p. 4). O multiculturalismo "não pode dizer como é o mundo,
mas, sim, como ele se apresenta através dos jogos da linguagem. Os jogos do
poder saber de quem fala dele e como criar outras formas de estar nele". É "o
babelismo lingüístico e cultural"; a implicação da cultura e da linguagem em
nossas idéias e práticas não como um problema, mas como um estado de ver o
mundo (VEIGA NETO, 2002).
Qual a dimensão que esses entrelaçamentos adquirem nas escolas, nas discussões
pedagógicas, nas salas de aula, nos "atos de currículo" (MACEDO, 2003)
cotidianos? Como lidar com a diversidade cultural, com a profusão de culturas
que se intercruzam nas escolas? O que pode ser considerado como cultura nesses
tempos de modernidade tardia?
Localizo-me, nesse momento, no curriculista e etnógrafo Roberto Sidnei Macedo
para referendar uma das multirreferências de currículo que me mobilizam para
esse tema:
é tomando o fato de que os dilemas são inelimináveis e importantes como pautas
de reflexão partilhada, que partilha e intercrítica passam a se constituírem em
dispositivos para tornar a vida cotidiana de atuação de um educador uma fonte a
ser acordada e realçada enquanto possibilidade de compreensão e resolução das
questões pedagógicas do dia-a-dia do seu trabalho. Assim como, uma das
possibilidades de desconstrução da expectativa historicamente cristalizada da
ultra-valorização no novo pronto.
Ademais, aprender a abordar os dilemas como um esforço de formulação
teórico-prática, convertendo-os em pauta formativa de forma partilhada
intercrítica, significa densificar uma revolução que está se instituindo pelas
mãos dos próprios educadores: a gestão da formação a partir das situações
concretas e complexas do exercício profissional.
Trazer os dilemas da educação como resultante da práxis vivida para o campo da
reflexão curricular, significa alcançar uma outra perspectiva em relação aos
saberes e a formação, principalmente, se orientada pela ética da partilha
intercriticizada. (MACEDO, op. cit., p. 10 e 11).
Os atos de currículo refletem a diversidade de tessituras de redes de
conhecimento imbricadas nas vivências cotidianas. Aquilo que está sendo tecido
na ação pedagógica local remete e é remetido à rede de subjetividades, profusão
de vivências de tantos outros contextos (MACEDO, Elizabeth, 2002).
A discussão referente às conexões entre cultura, poder e saber na perspectiva
curricular já é praticada há tempos por grande diversidade de caminhos. A
"jurisdição do educar" foi deslocada pela pedagogia cultural que ampliou e
transfigurou o campo dessas conexões, antes entendido como especificamente do
currículo escolar, para os chamados artefatos culturais. Os últimos 50 anos do século
XX foram marcados por inúmeras agências inscritas numa "educação para o
consumo", para o entretenimento, para "a competitividade", para a estética
corporal, pela mídia de forma geral e por empresas inscritas na lógica do
capital (MENDES, 2002). Os modos de endereçamento propostos pelo cosmo de
artefatos culturais estão em ação, educando-nos a todo instante, definindo os
diferentes currículos culturais. Seus alvos são:
os mais variados públicos, com os mais diversos interesses, constituindo
processos culturais "intimamente vinculados com as relações sociais,
especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões
sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de
idade (MENDES, op. cit., p.2)
Se entendermos os atos de currículos como agências
promotoras/receptoras/interrelacionadoras/transformadoras/criadores/divulgadoras
de culturas, podemos buscar na diversidade de matizes dos Estudos Culturais,
grandes possibilidades de navegação para o tratamento dessas tensões.
Esse campo de teorização e investigação social vem servindo-se da pedagogia
cultural para provocar e problematizar tais conexões.
Os Estudos Culturais ancoram-se em portos diversos: artes, ciências sociais,
humanidades, ciências naturais e tecnológicas, apropriando-se de
teorias/metodologias da crítica literária, psicologia, ciência política,
antropologia, lingüística, teoria da arte, entre outras. São inúmeros os
caminhos investigativos utilizados (COSTA, 2003). Seus investigadores
reconhecem que os sujeitos aprendem:
em diferentes lugares, de diferentes formas, em diferentes contextos. Além da
escola, são igualmente considerados como espaços pedagógicos os
momentos/lugares "onde o poder (e suas relações com o conhecimento) se organiza
e se exercita, tais como bibliotecas, TV; filmes, jornais, revistas,
brinquedos, anúncios, videogames, livros, esportes etc." (MENDES, op. cit., p.
6)
Nesses espaços/momentos e "não-lugares" (AUGÉ, 2005), creio em possibilidades
de análise referentes às inscrições dos sujeitos em currículos culturais.
Os Estudos Culturais atuam, de forma decisiva, nas concepções de cultura
propagadas pelas elites ao longo da história, promovendo a cultura como espaço
de resistência, embates e negociações na diversidade, assimilada como lócus de
produção, circulação e consumo de significações, o que assinala a dimensão
simbólica inerente às ações humanas (CANCLINI, 1991). No campo dos Estudos
Culturais, "a reflexão intelectual explicitamente integra-se ao engajamento em
práticas culturais, como estratégia para que o sujeito-pesquisador possa
intervir na realidade" (MELLO, 1997).
Costa (op. cit.) vincula-se à Stuart Hall (1997) para afirmar que o capitalismo
gera espaços de desigualdades no tangente a sexo, a etnia, a gerações e a
classes, estabelecidas e contestadas na cultura como lócus; os grupos
inferiorizados tentam enfrentar os significados em que estão embasados os
grupos poderosos. Os textos culturais são o próprio locus de mobilizações
desses significados. Cita, também, Martino (2005), para argumentar que os
pensadores desse movimento não analisam a cultura como um locus simbólico de
dominação e reprodução das expressões da classe dominante, mas, sim, como o
locus das batalhas das inúmeras culturas de diferentes camadas da sociedade.
Esses estudos originaram-se nos anos 50. Vinculados à Universidade de
Birmingham, Inglaterra, propagaram-se a partir da fundação do Centre For
Contemporary Cultural Sdudies (CCCS). Contrapondo-se ao conceito elitista de
cultura do crítico literário F.R. Leavis, o CCCS tomou como referência uma
concepção antropológica de cultura, considerando como tal a totalidade da
experiência de vida dos grupos sociais. Hoje está presente em todos os
continentes, sob diversas vertentes, recusando a estampa acadêmica ou o status
de disciplina (JOHNSON, 2000).
Sua base teórica é o marxismo revisitado e distante da ortodoxia; revisam
Gramsci e apropriam-se de conceitos de Althusser; criticam o ceticismo de
Adorno e ressignificam Benjamin, embora apropriem-se, de certo modo, do
estruturalismo, influenciados por Foucault e Derrida, e ao pós-estruturalismo,
através de R. Barthes (HOHLFELDT, 2000). Os pioneiros foram R. Hoggarth e R.
Willians. Hoje, entre muitos, suas principais expressões são: Stuart Hall,
Richard Johnson, James Donald, na Inglaterra; Homi K. Bhabha (indo-britânico),
Eliszabeth Ellsworth, nos EUA; Armand Mattelart, Érik Neveu e Marc Auge, na
França. Na América Latina, Nestor Garcia Canclini, Jesus Martín-Barbero e
Beatriz Sarlo. No Brasil, Marisa Vorraber Costa, Ana Carolina Escosteguy, Tomaz
Tadeu Silva e Alfredo Veiga-Neto. Estes últimos, através da perspectiva
foucaultiana, fazem a ponte entre os Estudos Culturais e a Educação.
É importante destacar, ainda, que a origem dos Estudos Culturais em Educação
está na educação de adultos. Porém, hoje, ela está subordinada a um discurso
que a coloca como algo que surgiu, em função da crise da modernidade.
Marisa Vorraber Costa, da UFRS, Rosa Hessal Silveira, UFRS, e Henrique Sommer,
FEEVALE, RS, em interessante e abrangente artigo "Estudos Culturais, Educação e
Pedagogia", apontam grande diversificação de temáticas dos Estudos Culturais já
trabalhadas e outras possíveis de serem tratadas em Educação, apresentadas nos
tópicos propostos na IV Conferência Internacional Crossroads in Cultural
Studies, Tempere, Finlândia, 2002, apesar do caráter controvertido dessa
aproximação, por não estarem suficientemente problematizados e debatidos :
Teoria Cultural; Audiências; Corpo na Sociedade; Cultura do Consumidor e do
Consumo; Política Cultural; Estudos Culturais e História; Estudos Culturais,
Educação e Pedagogia;Etnia e Raça; Alta e Baixa Arte e Cultura de Massa;
Construção da Identidade; Cultura Material; Estudos da Mídia;
Metodologia;Nacionalidade e Nacionalismo; Tecnologia da Informação e da Nova
Mídia; Cultura Popular; Estudos Culturais da Psicologia; A Cultura das Cidades;
Cultura da Juventude; Meio ambiente e Estudos Culturais; Estudos das
Profissões; Globalização (COSTA, op. cit., p. 53).
Como desdobramentos: Abordagens sobre questões de metodologia e política na
escolarização dos vários níveis, discussões sobre relações de poder no
currículo e na sala de aula, bem como contribuições aos debates sobre infância,
cidadania, identidade nacional, pedagogias culturais na pós-modernidade, a
cultura do "outro", raça, gênero e etnia no capitalismo neoliberal, efeitos da
globalização e do neoliberalismo na educação, o combate à contínua colonização
dos saberes e das relações sociais nas escolas". (COSTA, op. cit., p. 53)
Outros tópicos do painel do encontro: abordam as ligações dos Estudos Culturais
com conceitos-chave como liberdade, hegemonia, resistência, poder e
subordinação. Convocam, também, para uma discussão sobre as conseqüências das
grandes catástrofes contemporâneas sobre suas vítimas, tais como os êxodos e
diásporas causados pelas guerras e outros acontecimentos dramáticos
relacionados com atos terroristas, desastres ecológicos e a violência nos
centros urbanos, nas periferias e no campo, em muitos países. As conexões entre
cultura e poder são enfatizadas nos trabalhos que procuram desafiar as
fronteiras disciplinares, mediante estudos que exploram a transdisciplinaridade
ou celebram a pós-disciplinaridade. Nessa direção surgem, igualmente, as
análises críticas à divisão do trabalho e às fronteiras entre trabalho
intelectual acadêmico e não-acadêmico. Incentivam-se debates sobre temáticas
emergentes nos movimentos sociais eem circuitos intelectuais fora do eixo
Europa – América do Norte. A cultura das cidades é abordada com ênfase nos
discursos pós-modernos sobre o espaço urbano. A experiência de viver na cidade
é retomada nos cenários e problemáticas urbanas do século XXI, recompondo e
explorando representações em que exóticos "outros" são posicionados. Também a
natureza é discutida como o "outro" da cultura ocidental, aportando novos e
importantes elementos para um criticismo das visões antropocêntricas. Estudos
de mídia e literatura são articulados nesse cruzamento com questões ecológicas,
delineando novas configurações e espaços para o encaminhamento destas
preocupações (COSTA, op. cit., p. 56).
Nos Estudos Culturais em Educação, questões, como cultura, discurso, identidade
e representação, estão encadeadas como protagonistas das ações pedagógicas. Mesmo
navegando por inúmeras disciplinas, ressignificando caminhos metodológicos, "há
certa homologia nesse caráter híbrido, tanto da Educação quanto dos Estudos
Culturais" (op. cit.).
Educadoras e educadores inscritos nessa aproximação com os Estudos Culturais
podem identificar matrizes para reconhecer que a Escola é apenas um dos campos
de aprendizagem e educação na atualidade. Há um cosmo de "agências educativas"
perpassando nosso cotidiano, mediando nossas interações, afetando nossas
subjetividades. Diferentes textos - escritos, imagéticos, falados, esculpidos,
instalados, estáticos, em movimento - promovem lutas vinculadas às relações e
às constituições de classe, gênero , etnia, revelando o envolvimento da cultura
com o poder. Como "produtores culturais" de suas práticas
construindo/interagindo em currículos culturais como "campo de luta", esses
atores podem possibilitar vivências em que todos, alunas, alunos, educadoras e
educadores sintam as construções sociais nessa arena de intercruzamento de
simbolizações (GIROUX, 1995).
Reflexões sobre a práxis são agências potencializadoras para percebermos-nos
autores/partícipes engajados dos atos de currículo, intercriticizando (MACEDO,
op. cit., 2003) e provocando a si e as comunidades educativas para revoluções
cotidianas.
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Autor: jose teixeira neto
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