ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO



O público e o privado não se reconhecem mais como distintos. De tanto serem confundidos, passaram a ter uma só identificação, tornaram-se siameses e andam juntos. Não se pode mais referir-se a um, sem a interferência do outro. Não há mais espaço para a discussão, a divergência no campo das idéias sem que essa divergência acabe com relacionamentos pessoais de décadas de fidelidade, companheirismo, compartilhamentos. Ter opiniões distintas não significa que deixamos de ter os referenciais qualificativos de antes, quando compartilhávamos relacionamentos afetivos, sinceros e respeitosos.

Um exemplo atual do público entendido como privado é a farra das passagens aéreas no Congresso Nacional, que alguns (nossos representantes) entenderam e ainda entendem serem portadores desse direito, revelando que o nepotismo, o clientelismo, o servilismo, a concupiscência, a omissão, e, mesmo, a corrupção passiva – já que a ativa é deliberada e fruto de outra fonte - permanecem cristalizados em nossa sociedade. É o privado, quando confundido com o público, que dá audiência e amplitude para as futricas e os boatos; reality shows; publicações sobre as celebridades e tantos e tantos outros projetos de programas televisuais, editoriais e, por que não, institucionais.

A amizade é confundida com cumplicidade, a discordância de idéias e atitudes com traição. Tudo sob o amparo absoluto da ignorância e da falta de substância de conceitos, falhas de caráter, fraquezas de espírito. Fala-se muito, mas conversa-se pouco, compreende-se menos ainda. Não se considera politicamente correto expor-se em discussões de cunho filosófico, ético, moral, partindo-se da premissa elementar - mas nem sempre acertada - de que existem coisas que não devem ser questionadas sem que uma crítica feita na esfera pública resvale para o campo da individualidade. E os relacionamentos imaturos e carentes amontoam-se no lugar-comum da indiferença do relacionamento entre bandos de anônimos, onde ninguém contradiz ninguém, mas, também, ninguém respeita mais ninguém; totalmente anestesiados; totalmente alienados e descompromissados, medrosos e covardes.

Confundir público com privado é o mais reles equívoco de quem exerce uma função pública representativa. A opção por essa condição sempre nos obrigará ao recolhimento dos nossos interesses, opiniões e atitudes pessoais, porque, quando se opta pela vida pública deve-se abster da emissão de opiniões privadas. A discussão pública de interesse privado, amplamente divulgada pelo canal televisivo do Supremo - com seus esgares e tiques nervosos midiatizados pela mídia fisionômica dos envolvidos - é um exemplo típico desse acoplamento e indistinção.

Entre pedidos de "respeite-me" e "vossa-excelência-não-pense-que-está-falando-com-um-dos-seus-capangas..."(capangas!, como assim?) o que se viu foi a mistura dessas identidades - togadas - misturando tudo e expondo suas míseras pendengas privadas em um ambientepúblico; suas idiossincrasias no âmbito do coletivo.

Há urgência em se ensinar e se aprender esses e outros conceitos, absolutamente, antagônicos. De certo, que não deveriam ser confundidos, e sequer, relacionarem-se; separados, deveriam ser mantidos e apartados por barreira intransponível.Quem sabe, esteja faltando espaço público, e, mesmo, privado (em nossas casas), para se estabelecer essas reflexões. Quem sabe, espaços como este, oferecido pelos jornais, possam ser vistos e tidos como espaços educativos-cidadãos? O artigo "Que que é isso minha gente" publicado no último dia 9, nessa página, obteve significativa repercussão, evidenciando isso: a possibilidade de diálogo e de ação. Precisamos muito divergir, refletir, mas, precisamos, mais do que tudo, posicionarmo-nos diante dos fatos que nos dizem respeito, sem medo, omissão ou acovardamento. Precisamos estudar mais, visitar com mais freqüência os dicionários, buscar os significados dos conceitos, das palavras e melhor nos prepararmos para o salutar exercício da comunicação, com vistas a uma comunicabilidade mais sadia, certos, porém, de que a comunicação será sempre - e apenas - mera possibilidade, tantas são as divergências constitutivas do nosso repertório pessoal, de nossas vivências e concepções. Por isso, quando nos perguntaremquanto são dois e dois, nem sempre a resposta correta será quatro, poderá ser vinte e dois, e ambas as respostas estarão absolutamente certas, dependendo, evidentemente, da ótica (dos valores e conceitos) e da opinião de quem fez o questionamento.

Maria Ângela Coelho Mirault Pinto


Autor: maria angela mirault


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