Dom Casmurro



A crítica costuma dividir a obra de Machado de Assis (1839-1908) em duas fases distintas: os escritos da juventude, ainda ligados ao Romantismo (Ressurreição, Helena, A Mão e a Luva, Iaiá Garcia), e seu crescente amadurecimento até chegar ao Realismo de suas principais obras (Memórias Póstumas de Brás cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires e contos como O Alienista e A Cartomante). Machado foi o primeiro escritor nacional a, de fato, criar um estilo consciente da literatura universal e de si mesmo.

A obra de Machado de Assis é essencialmente moderna e muitas de suas intuições só viriam a ser formuladas bem mais tarde, nas idéias de Freud, por exemplo. Seu forte não era o teatro nem a poesia, mesmo tendo sido um polígrafo incurável. É na ficção que seu gênio atinge níveis de excelência. Por isso Machado de Assis é hoje o autor brasileiro que mais leituras críticas acumula, dentro e fora do país. Ensaios e teses não se cansam de encontrar novos sentidos nesse olhar oblíquo que enfrenta a natureza humana de maneira tão irônica e profunda. Desde seu lançamento, em 1899, Dom Casmurro é um sucesso de crítica e público, e seu autor é considerado pelo maior crítico literário da atualidade, Harold Bloom, como uma das cem mentes brilhantes da literatura universal.

Enredo de Dom Casmurro: Dom Casmurro narra em primeira pessoa a história de Bentinho que, por circunstância várias, vai se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe. A vida do seminário, no entanto, não o atrai, já enamorado que estava por Capitu, filha dos vizinhos. Apesar de comprometido pela promessa, também D. Glória sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, o agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo. Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita a sua amizade com um ex-colega de seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu. Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e, durante seu enterro, Bentinho julga estranha a forma como Capitu contempla o cadáver. A partir daí, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. Á medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se na separação do casal. Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já moço, volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre o antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em usas dúvidas, passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a escrever sua vida (o romance)".

Mais que a história em si, é o modo de contar que interessa e chama a atenção em Dom Casmurro. Nossa atenção deve voltar-se para o foco narrativo através do qual a história é contada. É essencial não confundir a voz do narrador com a voz do autor. Dom Casmurro é narrado em primeira pessoa pelo protagonista masculino que dá nome ao romance, já velho e solitário, desiludido e amargurado pela casmurrice, conforme seu apelido. A visão, pois, que temos dos fatos é perpassada da sua ótica subjetiva e unilateral: tudo que sabemos do seu passado, de seus amores, de Capitu, só o conhecemos do seu ângulo. Em conseqüência disso, paira dúvida sobre o adultério de Capitu - dúvida que não se tem dissipado ao longo dos anos.

O foco narrativo, ou seja, o tipo de narrador escolhido, é uma das questões centrais da obra de Machado. Em geral utilizando a primeira pessoa (narrador-personagem), o autor subordina tudo o que se conta à visão, à condição psicológica daquele que conta.

O romance é construído a partir de um flash-back, por um cinqüentão solitário e casmurro, "à la recherche de temps perdu" ("à procura do tempo perdido"), o qual procura "atar as duas pontas da vida" ( infância e velhice). Perpassa, pois, o romance uma atmosfera memorialista, representando a autobiografia de Bento Fernandes Santiago.

O título do livro ("Dom Casmurro") reflete uma das características mais marcantes do protagonista masculino no crepúsculo da existência: a visão amarga, doída e ressentida de quem foi traído e machucado pela vida, e, em conseqüência disso vai-se isolando e ensimesmando. "Não consultes dicionários, Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo".

Digressões: na segunda fase de sua obra Machado de Assis passa a utilizar a técnica da digressão: o fluxo da narrativa é interrompido e o narrador se dirige ao leitor para tecer comentários, ironias e observações que parecem deslocar o assunto. Em Dom Casmurro isso serve para: a) disfarçar ou atenuar, com humor irônico, a importância e o drama da história que se conta. b) lembrar ao leitor que os fatos narrados ocorreram no passado do narrador e que a história, portanto, está sujeita ao olhar do velho Bento, que revê sua vida.

A narrativa de Dom Casmurro (como a de Memórias Póstumas) se dá de maneira oblíqua, como

Dom Casmurro pode ser dividido em duas partes assimétricas:

na primeira parte (do capítulo 3 ao capítulo 97) o narrador conta, sem uma ordem temporal rígida e com digressões, sua tentativa de se livrar da promessa da mãe de fazê-lo padre, seus estudos de Direito e seu iminente casamento com Capitu.

na segunda parte (do capítulo 98 ao 146), narra seu casamento com Capitu, o nascimento de Ezequiel, as suspeitas crescentes sobre a fidelidade da esposa (que chegarão ao máximo quando Escobar morrer) e o conseqüente exílio de Capitu e Ezequiel. Essa parte desmonta a primeira, através da psicologia destrutiva do narrador, que substitui Romantismo por Realismo, trocando a juventude lírica pela obscura e amarga vida adulta. Pode-se perceber, então, que a personalidade de Capitu, construída na primeira parte, é uma armadilha narrativa: certas características sugeridas nos capítulos da primeira parte têm o papel de apoiar a traição e o adultério que o narrador da segunda parte quer nos fazer crer.

Capitu é construída para ser uma personagem esférica, complexa, labiríntica. Isso dificulta sua abordagem, não só para o marido, mas também para o leitor curioso. Bento caracteriza Capitu, na primeira parte, como uma jovem racional, inteligente, calculista, que lida facilmente com situações constrangedoras e que demonstra ser maquiavélica: capaz de tudo para atingir seus objetivos. "Olhos de cigana obliqua e dissimulada", "olhos de ressaca", metonímias e metáforas que desenham uma personagem enigmática e sedutora, capaz de trair. É bom lembrar o próprio caráter de Bento: hesitante, fraco, passivo e emotivo, ou seja, o oposto de sua companheira. Some-se a isso a imaginação fértil de Bentinho, sempre pronto a criar alucinações e razões para ter ciúmes.

Adultério? Talvez sim, talvez não. O leitor pode ler Dom Casmurro pelo direito e pelo avesso. Ou seja: a semelhança física (segundo Bento) de Ezequiel e Escobar, a presença de Escobar em casa de Bentinho quando este não está, a reação de Capitu no enterro de Escobar, são indícios da traição. Mas, ao mesmo tempo, o processo psicológico de ciúme doentio do narrador, a falta de provas e de outros testemunhos, bem como a distância no tempo dos fatos narrados em relação à narrativa, tudo isso parece apontar para a inocência de Capitu. Na verdade, muito mais que discutir o adultério, é preciso discutir a ambigüidade da narrativa machadiana, seu caráter "aberto". O processo de construção dessa história cria espaço para discutirmos questões mais profundas: o conceito de verdade e realidade, o dualismo do ser humano, a natureza do ciúme, a relatividade dos conceitos morais, o tédio, a loucura, a vaidade, a contradição entre aparência e essência, a predominância do mal sobre o bem, a psicologia feminina, e muitas outras questões.

Ironia, Pessimismo e Humor: os os romances e contos da segunda fase são perpassados de um sarcasmo e  de uma descrença corrosiva, mas sempre de um humor que torna a visão suportável: "Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens que de um terceiro andar."

O Microrrealismo é a marca registrada do estilo de Machado. O essencial reside no detalhe, exigindo uma leitura atenta, minuciosa. Os segredos se escondem nos detalhes, e os enredos e análises das personagens são mosaicos construídos a partir de cada um desses mínimos pontos.

A prioridade narrativa não é aventura, emoção e suspense, apesar desses elementos também comporem a trama. O que interessa de fato é a especulação filosófica e a análise psicológica de cada personagem. Machado não guarda esperanças com relação ao ser humano. Seus homens são em geral superficiais, medíocres e de baixa inteligência. Suas mulheres são em geral vaidosas, ardilosas, e usam de sedução para atingir objetivos no mais das vezes fúteis.

Metalinguagem: os narradores dialogam principalmente e diretamente com o leitor (ou leitora) e têm em geral uma imensa consciência do processo narrativo: "Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto".

Intertextualidade: Machado era leitor poliglota e intenso, daí talvez sua consciência da anemia literária brasileira e sua tentativa de corrigi-la colocando em suas obras uma rede de conexões, pontes, releituras, citações, paródias e paráfrases de vários autores e obras. Os principais intertextos são feitos com Shakespeare, Cervantes, a Bíblia, Goethe e a filosofia clássica, especialmente Platão.

Quanto ao lugar em que decorre a ação, trata-se do Rio de Janeiro da época do Império: há inúmeras referências a lugares, ruas, bairros, praças, teatros, salões de baile que evocam essa cidade imperial. Por outro lado, há também ligeiras referências a São Paulo, onde foi estudar Direito o ex-seminarista Bentinho, e também à Europa onde morre Capitu, e mesmo aos lugares sagrados, onde morre Ezequiel (Jerusalém). Cronologicamente falando, a narrativa decorre durante o segundo Império. Contudo, construído sob a forma de flash-back. O que domina no livro não é esse tempo cronológico; é o psicológico, que se passa dentro das personagens, dentro da própria vida. Debruçado sobre a reconstrução do passado, o solitário e magoado Dom Casmurro vai reconstituindo o "tempo perdido" de sua existência, filtrando os fatos sob sua ótica de cinqüentão amargurado, revivendo a vida subjacente, que jaz nas suas entranhas.

Em Dom casmurro há basicamente dois caminhos a seguir: deixar-se levar pela ótica de Bentinho, aceitando sua palavra e sua memória como Verdade, ou construir uma Narrativa Paralela, pondo em xeque o próprio narrador, levando em conta a hipótese de ser ele um paranóico-esquizofrênico com acentuado complexo de Édipo, atacado por fantasias geradas por sua profunda insegurança e isolamento. Esse clima de incerteza foi construído com maestria e no fim das contas parece nos dizer que haver ou não traição é o que menos importa: tudo não passa de um bom pretexto (pré-texto) para radiografar as relações humanas e o interior de cada indivíduo.


Autor: Carlos Moreira


Artigos Relacionados


Machado Nosso De Cada Dia

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

Da Poética Libertadora

Centenário Da Morte De Machado De Assis

A Hora Da Estrela - Clarice Lispector

Pasma Imaginação

PolÍtica ComunitÁria