O NACIONALISMO NEGRO EM O TRONCO DO IPÊ, DE JOSÉ DE ALENCAR.



Alencar, o autor do nacionalismo indianista, mestre no discurso descritivo, por que atento às imagens plásticas, criador de estratégias estilísticas capazes de aliar o devaneio imaginário ao documento realista, trouxe à luz O Tronco do Ipê, em 1871.

O século XIX foi um tempo de explosão histórica; de um saber descritivo e classificador, passamos a um tipo de saber que apreendia empiricamente os acontecimentos. O conceito de História rompia com a história natural e vinculava-se à história interna dos seres. Na América Latina e, particularmente no Brasil, a necessidade de formular um conceito de identidade foi a principal tarefa. Uma identidade que ora vinculava-se ao amor à pátria, ora amor à natureza. Por excelência, a literatura viu-se comprometida na missão de construir e organizar um projeto nacional. Assim, ela abraçou causas e ideais capazes de compreender a sociedade brasileira.

Alencar, inserido neste cosmo histórico, tratou de representar e documentar regiões brasileiras, descrever hábitos e costumes do sertanejo e do gaúcho, do mundo urbano e do mundo rural. Possuidor de um repertório amplo, acumulado por suas experiências leitoras, somadas às imagens de sua formação familiar, doméstica e escolar, ele "romantizou"o Brasil.

O pequeno romance O Trono do Ipê apresenta-nos vários temas, dentre eles, os aspectos históricos e sociológicos do século XIX, o circulo familiar formado por senhores, escravos e agregados, o ruralismo concentrado, equivalente ao poderio da casa-grande como modelo por onde eram estabelecidas inflexíveis leis morais, impérios tidos como civilizados, regimentados pelo conservadorismo dos nossos colonizadores.

Como não poderia deixar de ser, todos os temas citados circundam o enredo maior — o amor romântico dos jovens Mário e Alice. Mas, ao lado da história de Mário, personagem heróica que nasce e renasce em muitas passagens, e Alice, instrumento de rendição que dá ao herói um modo de ser renovado, encontramos Pai Benedito (benedictus, particípio do verbo latino benedicere que significa louvar, abençoar, dizer o bem), "o feiticeiro de bom coração"(p.58):

"Saía dela um preto velho. De longe, esse vulto dobrado ao meio, parecia-me um grande bugio negro, cujos longos braços eram de perfil representados pelo nodoso bordão em que se arrimavam. As cãs lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão". (p.07)

Nesta personagem cristalizaremos nosso olhar. A figura apresentada, projetada como indivíduo "real", torna-se transparente à nossa visão como um mito, pois cumpre uma função original, intimamente ligada à natureza da tradição negra. Alencardeu a esta personagem a importância particular de abrir e fechar todo o romance — daí ser ele o "Pai", fio racional e emocional de todo o enredo.

A personagem Pai Benedito é a representação factual do sagrado africano que descreve a profunda ligação entre o homem e o cosmos, cuja base é material e concreta. Viver no sagrado para os povos primitivos equivalia viver na realidade por excelência. As reações desses povos diante da natureza eram condicionadas pela cultura. É com a natureza e seus elementos — terra, fogo, ar, água — que os africanos e indígenas articulam sua relação com o sagrado:

"O pai Benedito descera a rocha pelo trilho, que seus passos durante trinta anos haviam cavado, e chegou ao tronco decepado de um ipê gigante que outrora se erguera frondoso na margem do Paraíba. Pareceu-me que abraçava e beijava o esqueleto da árvore; aí ficou aquecendo-se ao sol do meio-dia como um velho jacaré". (p.9)

A hierofania ("algo de sagrado se nos revela") manifesta-se como parte integrante do mundo natural, um tronco ou um lugar não são adorados como um tronco ou um lugar, revelam algo que já não é tronco ou lugar:

" Curioso de ver de perto o tronco do ipê que o preto tratara com tanta veneração, descobri junto às raízes, pequenas cruzes toscas, enegrecidas pelo tempo ou pelo fogo. Do lado do nascente, numa funda caverna do tronco, havia uma imagem de Nossa Senhora em barro, um registro de São Benedito, figas de pau, feitiços de várias espécies, ramos secos de arruda e mentruz, ossos humanos, cascavéis e dentes de cobras". (p.20)

O Ipê é uma árvore do cerrado, tida como símbolo do Brasil, com ele contemplamos, por meio da personagem, as possibilidades apreendidas por Alencar como demonstração dos aparatos culturais que se cercou — diga-se de passagem, instrumentos que totalizam e plenificam a arte ficcional.O mundo simbólico, personificado nesta personagem, articula um retorno à realidade. Os africanos estabelecem sua relação com o sagrado, comunicando-se com os astros, a flora e a fauna circundante, para expressarem suas dificuldades quotidianas:

" Levantando as mãos, invocou o céu em testemunho de seu isolamento, e outra vez, resmoneou com um eco roufenho:

— Boqueirão!" (p.10)

Quer na cultura africana, quer na indígena, o sagrado e a tradição oral são interligados, essa relação é transmitida e realizada pela palavra falada:

"(...) O preto de seu lado, como um instrumento perro a que houvessem dado corda, começou a cantilena soturna e monótona, que é o eterno solilóquio do africano. Essas almas rudes não se compreendem a si mesmas sem falar para ouvirem o que pensam". (p.20)

Ao longo da narrativa, Alencar vai dando mostras de como a imposição dogmática da igreja católica repelia os valores da cultura negra, imprimindo preconceitos. Vejamos:

"E pois, como Benedito era um bonito negro, de elevada estatura e fisionomia agradável, as beatas inventaram outro Benedito à sua feição. A dar-se crédito à palrice das tais velhas, aquele preto bem apessoado, em sendo meia-noite virava anão com uma cabeça enorme, os pés zambos, uma corcunda nas costas, vesgo de um olho e torto do pescoço. " (p.46)

Se, por este lado, tal concepção revela um aspecto do caráter brasileiro de tratar o problema do negro; por outro lado, um novo caráter é-nos transmitido, pois Pai Benedito é pura afeição, força poderosa, alma robusta. Sobre isso, diz-nos Antonio Candido: " A idealização permitiu impor o escravo à sensibilidade burguesa, não como coitado ou mártir, mas, o que é menos fácil, como um ser igual aos demais no amor, no pranto, na maturidade, na ternura" (CANDIDO, 1981, p.274). Neste aspecto, o escravo era tratado como pessoa e não como coisa:

" E o bom preto expandia-se de júbilo, mostrando duas linhas de dentes alvos como jaspe. Ser motivo de alegria para esse menino que ele adorava, não podia ter maior satisfação a alma mais dedicada do africano."(p.33)

Avançando na narrativa, observamos o apuro cultural que Alencar empreendeu ao traçar aspectos relevantes da cultura africana. Nesta sociedade, o sobrenatural está indissoluvelmente ligado ao natural, a Natureza sempre exprime algo que a transcende. Alencar foi buscar no religioso, no sagrado, a textura para uma ficção memorial:"Contentaram-se pois com os indícios, tirados das circunstâncias de ser o ipê visitado pelos urubus sempre que uma nova cruz aparecia fincada na sombra da árvore." (p.56)

A narrativa desliza calma e progressivamente remetendo-nos a um mundo infinitamente rico, por estabelecer o reencontro do ser humano com a sua questão existencial: " A alma, igualmente tolhida pela prática e atenção dos estranhos, carece também como o corpo desses espreguiçamentos íntimos, de uma expansão franca. Para isso procura refúgio. A solidão é alcova para a alma". (p.87)

Somando às tradições africanas, Alencar incluiu no romance o conto sobre a Mãe-D'água, o qual figura um palácio de ouro e de brilhantes no fundo do mar. As Sereias estão associadas ao grupo das divindades da morte, como as Harpias e Eumênides. Segundo a lenda, viviam no litoral sul da Itália. Possuíam à princípio, o corpo de um pássaro com busto e rosto de mulher, mas com o tempo mudaram sua aparência. A metade pássaro de seu corpo foi substituída pela cauda de um peixe. Na antiguidade, seu mito ligava-se ao culto dos mortos. Isto também mudou e apenas o documentam as estátuas de sereias nos sepulcros. Em Portugal, de onde nos veio o mito, há duas designações para essa personagem mítica: no litoral do continente, Sereia. E, no arquipélago dos Açores, Feiticeira Marinha.

No capítulo XV, intitulado O Boqueirão, o valor folclórico da água e sua simbologia universalizante estão diretamente ligados ao capítulo Mãe D'água. Alice é arrebatada pelo torvelinho de água, e Mário "descendo a prumo ao fundo do abismo", luta imperiosamente para retirá-la. As águas simbolizam a soma universal das virtualidades. Seu simbolismo implica tanto a morte como o renascimento: " O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado, porque a dissolução é seguida de um "novo nascimento"; por outro lado, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida" (ELIADE, 1991,p.110).

Somos, neste momento, arrebatados por um discurso ao mesmo tempo fotográfico, pela beleza imagética; e de ação, pela veracidade das atitudes. Vejamos a belíssima passagem:

" O menino estorcia-se dentro d'água. Seu corpo parecia romper-se, como o dorso da serpe quando se dilata para estringir a presa. A luta estava indecisa. Às vezes acreditava-se que Mário ia triunfar, arrebatando a vítima ao boqueirão; outras vezes o menino perdia a vantagem adquirida e submergia-se ainda mais. Como era sublime essa cadeia humana que se estendia desde a aba do rochedo até às profundezas do lago, com uma ponta presa à vida, e outra já soldada à morte! Esses corações que se faziam elos de uma corrente, grilhados pelo heroísmo, essa âncora animada, sustendo uma existência prestes a naufragar, devia encher de admiração e orgulho a criatura". (p.99)

E como não poderia deixar de ser, o renascimento moral ocorre:

"Que inextricáveis são os fios dessa urdidura moral, com que tecem as paixões humanas! Esse menino inacessível à compaixão, indiferente ao sofrimento alheio, encerrado no frio egoísmo que formava um orgulho desmedido, essa aberração da infância, acabava de expor a vida, e daria sem hesitar metade dessa vida, para salvar uma criatura de sua aversão! (p.102)

Alencar, ao compor Pai Benedito, selecionou traços que possibilitaram uma observação adequada à concepção cultural do negro africano, que desembarcou no país para tornar-se escravo. Este modo-de-ser revelou-nos uma estrutura lógica, mas que só adquiriu pleno significado num contexto peculiar a este povo, capaz de apontar o manancial folclórico de lendas, cantigas e tradições.

Nossa abordagem buscou decifrar esse espaço de abertura contextual proposto por Alencar, com a figura de Pai Benedito. As obras ricas possibilitam esse movimento plural de sentido, prismatizadas pelo caráter mediador do leitor.

A contemplação dos "Brasis" que Alencar nos revelou por imaginação e memória e, particularmente, o Brasil de O Tronco no Ipê constituem o lugar afetivo de uma nação acolhedora de múltiplas culturas que, na sua totalidade, buscou compreender o universal humano.

A idéia de pátria vinculada à de natureza percorreu inúmeros caminhos, e se as ligações românticas trouxeram o elemento do amor sublime, também implantaram os laços emergentes da liberdade e da multiplicidade cultural no seu sentido mais amplo e fecundo. Alencar permitiu ser o instrumento de descoberta e reconhecimento destes laços que, ainda hoje, ajuda-nos a superar as limitações entre semelhanças e diferenças.

Bibliografia

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_______________e outros. A personagem de ficção. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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Autor: Emilia Passos


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