Redenção



Ronyvaldo Barros dos Santos

Ao abrir os meus olhos, percebi a compressão da luz sobre eles. Escutava um canto harmonioso e glamoroso. Não poderia avistar o dono daquela voz esplêndida. Aliás, não me recordava onde estava, nem o que me sucedera até então. Tive uma vertigem, porém ela se foi junto à luz. Ao abrir os meus olhos o sol se ia. Pude avistar a beleza dos raios solares batendo contra a janela do aposento. Repentinamente avistei uma ave de beleza extremada, cantarolando uma música ritmada e pura. Os meus olhos nunca avistaram aquilo, pelo menos não me recordava daquela imagem que me vinha. Era um rouxinol à minha janela. Quão perfeita canção e quão bela imagem que se via!

Em seguida levantei-me. Segui em direção ao espelho e avistei pela primeira vez a minha face refletida no espelho. Posso garantir que não me era feio, nem bonito, eram uns olhos meio que cerrados, castanhos. A pele era morena, a fisionomia era inteiramente perfeita: um nariz formoso, uns lábios bem feitos, um cabelo negro e liso. Dali me passou mais de meia hora, a admiração. Ficaria mais naquela descoberta se não me viesse uma criatura de tal perfeição que não pude negar ser mais bela que eu. Era uma mulher um tanto mais morena, de olhos negros, corpo sensual e uma voz que superara o canto do rouxinol. Avistei uma lágrima em seus olhos. Ela sorriu, sussurrou algumas palavras de efeito e chamou-me "Meu amor". Abraçou-me em seguida, comovida. Enxuguei-lhe as lágrimas num ato reflexo e a abracei novamente.

Embora parecesse adequado, não compreendia o que se desenrolava. Eram sentimentos jamais sobrepujados, eram palavras meio soltas, eram opiniões desacertadas. Poderia indagar o porquê daquilo, mas tudo era comoção. Chegaram-me mais com o passar do tempo. Eram homens e mulheres, meninos e meninas e até um velho me veio, um homem que me impressionara. Fiquei observando o senhor que me vinha. Ele era misterioso e sereno. Ficara junto à porta observando-me, fitando-me com um olhar enigmático.

Vale dizer-lhes agora, leitores e leitoras destas memórias, que não sabia quem eu era. Recordava-me tão somente do rouxinol, do sol e das minhas primícias. Não estava contente nem aborrecido, não me havia lágrimas. Mirava ainda aquele velho que jazia inerte ao meu fitar. Todos perceberam da investigação e se retiraram, deixando-me só junto somente daquele senhor tão misterioso. Senti uma nova vertigem, contudo esta foi mais passageira.

— Saiba que não lhe guardo rancor, meu filho. Eu te amo e te quero junto a mim, sorrindo — disse o velho.

Certamente não sabia do que se falava, nem sequer o que havia feito para gerar remorso. Provavelmente eu não estava sóbrio, porque me vinham imagens de mortos e de mortes. Baixava a cabeça a fim de relembrar fatos que me trouxessem reminiscências.

— Ainda não acredito em tudo isto. Estou pasmo, mas sempre serás meu filho amado e nunca deixarás de ser — completou aquele que se dizia meu pai.

Abraçou-me e levou-me até o leito. Sorriu uma vez e acariciou-me. Meus olhos se fecharam sozinhos, sem necessidade de ativá-los. Um devaneio me veio, eram demônios e anjos, eram pássaros e crianças. Ansiei despertar, golpeando a cabeça numa parede sólida. Entretanto eles não queriam ir embora, me agarravam pelo braço e me puxavam até o fim de um túnel. Não havia luz, apenas um crepúsculo que completava todo o espaço. Abruptamente avistei uma luz que vinha em minha direção. Esta luz, ao se aproximar de mim, me guiou até o acesso. Consegui me retirar, fitando a seguir apenas flores e frutos, uma beleza ímpar. Avistava ainda seres alados que sorriam e sussurravam em língua diversa.

Ao amanhecer um novo dia despertei deliciosamente ao som dos pássaros, eles cantarolavam uma música jovial que se assemelhava a uma cantiga pueril.

Longe de mim qualquer recordação, qualquer reminiscência do passado. Não lembrava meu nome, nem quem eu fora. Eram impressões desconhecidas as que eu tinha em relação a tudo o que me cercava. Então escutava a música e refletia o que poderia ter me ocorrido.

Sentia como se nunca tivesse existido antes. Porém me vinham memórias meio logradas acerca de uma vida medíocre. Eram devaneios que não cessavam; eram sentimentos que variavam uma vez e outra.

A seguir comecei a escutar vozes que me sussurravam em linguagem estranha e casta. Deste modo, algumas lágrimas se despontavam dos meus olhos, inertes a uma sensação única e indispensável. Avistei em seguida a mesma luz que havia visto em meus sonhos; todavia, ao meu lado jazia um espírito que se curvava ao meu fitar, sussurrava coisas lúgubres e alumiava a minha visão acerca do meu passado quase que remoto. Eu estava, no entanto, estático. Senti-me sozinho, inabitado, insone e alquebrado. Entretanto a luz insistia e avançava para mais perto de mim, enquanto que o Espírito se curvava mais; ao passo que eu avistei os seus olhos enrubescidos e contrafeitos, as suas mãos negras e intumescidas.

Nestes atos imóveis é que me vieram as lembranças, ainda pouco logradas, mas cheias de verdades e incumbências.

A luz conseguiu me alcançar e me envolver. E o Espírito submergiu em meio a ela.

As lágrimas não cessavam e a luz me enchia de esperança e paz, ao passo que adormeci neste momento. Sonhei que uma voz sublime e bela dizia: "Eis que a tua fortuna será venturosa; pois tornarás o meu seguidor e te atentarás aos meus desígnios, oferecendo-me em oferenda as tuas glórias. O teu passado rescindirá e irás seguir a luz do Espírito. Um dia encontrarás as tuas vítimas e elas o perdoarão a propósito do teu novo intento. Dar-te-ei a espada, a égide, a armadura, o elmo e a lança e guerrearás infundido em minhas palavras. Terás em teus cálculos a erudição divina; estarás munido de uma voz altiva e esplêndida e de uma consciência sublime que imperará sobre os desejos sórdidos."

Não despertei de imediato. Os meus olhos foram se abrindo vagarosamente, como se os fizesse pela primeira vez. A luz mortiça incomodava os meus órgãos, que fechavam meio a meio. Entrementes me habituei à luz e os abri inteiramente. Avistei ao meu lado o meu pai, que dizia:

— Meu filho, por que fizeste isto? Não compreendo o motivo de tanta brutalidade e ódio. Julgo que estás devidamente perdoado, porque Ele é muito maior e benevolente.

Recordei-me a custo das últimas impressões. Eu carregava um ódio veemente de tudo e de todos. Com o passar do tempo havia me tornado um homem ensimesmado e rude. Algo me atraía para estas sensações.

Ocorreu-me há duas semanas que, tendo eu sido vítima de uma iniquidade, tencionei assassinar aquele que me havia trazido uma imensa desventura. E o fiz, uma vez que não compreendia todos os efeitos que me integravam naquele tempo. Então este simples fato não havia me trazido satisfação, de tal modo que planejei uma sequência de assaltos àquelas pessoas que me haviam feito algum mal. E, pois, que pondo este plano em ação, encontrei-me com o meu próprio fado, que não só fora cruel graças ao empecilho que Deus havia colocado aos demônios que me açoitavam.

Uma vez, não me recordo exatamente quando, a minha mãe havia me proposto ler os ensinamentos de Deus. E abrindo o Livro ao acaso, encontrei-me com as seguintes palavras: "Na verdade, que não há homem justo sobre a terra, que faça o bem, e nunca peque." (Ec. 7:20) Ocorreu-me então questionar a um pastor estas palavras, achando-lhes absurdas. Mas me veio dirigir-me ao meu pai e dizer-lhe com uma voz calma e segura:

— Perdoou-me o Senhor, porque me convidou a participar de uma ceia magnífica. Sei que estarei em cárcere, porém ali construirei um refúgio às suas maravilhas e o apresentarei aos meus. Abençoe-me e eu serei o mais bem-aventurado e um dia poderei contar-lhe sobre os meus encargos.

O velho mirou-me fixamente, e com uma lágrima a declinar-lhe de um único olho, estendeu-me as mãos sem proferir palavra; não obstante, os seus olhos enunciavam pensamentos e anseios.

Logo entraram no aposento os meus familiares. Ali estavam a minha esposa, a minha irmã mais velha, alguns dos meus primos, um tio e a minha mãe que, emocionada, derramava as suas lamúrias, observando-me serenamente. Ela correu a me abraçar e abençoou-me prometendo que jamais me desampararia.

Muitos dos que me observavam, faziam-no com reprovação e decepção; todavia, a minha mãe fitava-me com esperança e felicidade por eu estar vivo, apesar do que me havia sucedido: após o primeiro assassínio, um amigo do defunto me recebeu com vários disparos, sendo que um deles me atingiu na cabeça, junto ao córtex frontal. Segundo me contaram dias depois, o neurologista atestara-me morte certa, prenúncio que não adveio, contudo. E agradeci a Deus pelo grande presente, pois renovou o meu coração de tal forma que hoje pertenço senão a Ele.


Autor: Ronyvaldo Barros dos Santos


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